São Paulo, domingo, 16 de março de 2008

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O gordo e o magro

DE ESTILOS OPOSTOS NA EVOLUÇÃO DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, ALBERT UDERZO E ROBERT CRUMB VÊEM A ASCENSÃO METEÓRICA DOS MANGÁS A PARTIR DOS ANOS 90

JOÃO PEQUENO
DA REDAÇÃO

Fundador, em 1993, da editora Conrad, uma das principais responsáveis por alavancar os quadrinhos no mercado brasileiro, Rogério de Campos, 46, vê o sucesso dos mangás japoneses e a consolidação mundial dos livros em preto-e-branco -formato que consagrou Robert Crumb, autor lançado pela editora no país- como a "pá de cal" dos álbuns coloridos consolidados nos anos 50 por expoentes como Albert Uderzo e seu parceiro René Goscinny, criadores de Asterix.
Campos é otimista em relação ao crescimento do mercado nacional e acredita que essa "maturidade" pode se traduzir na criação local.
Embora seja entusiasta de artistas como Laerte, Angeli, Marcatti, Marcelo Quintanilha e Lourenço Mutarelli, ele pondera que os quadrinhos brasileiros sempre se basearam nos movimentos que aconteciam no exterior, sem estabelecer uma "linha evolutiva" própria, conforme explica na entrevista a seguir.  

FOLHA - Qual é a importância de Crumb e Uderzo/Goscinny para os quadrinhos?
ROGÉRIO DE CAMPOS
- Isso nunca tinha me passado pela cabeça, mas acho que representam movimentos opostos. Uderzo significa o impulso pela americanização dos quadrinhos europeus e, Crumb, a europeização dos quadrinhos americanos.
Ainda que faça muitas referências a quadrinhos antigos, a clássicos como Popeye, o universo dele é muito mais europeu, tanto que mora na França. Enquanto isso, Uderzo e Goscinny criaram o grande herói dos quadrinhos franceses, embora Uderzo seja filho de imigrantes italianos e o Goscinny tenha tenha pisado na França já homem. É engraçado que não são dois... franceses.

FOLHA - O curioso é que muitos imaginam Asterix como símbolo antiimperialismo americano. Alguma vez, Uderzo e Goscinny se colocaram nesse sentido?
CAMPOS
- Na verdade, eles sempre foram um tanto alienados. [Asterix] é basicamente nacionalista, com toda aquela xenofobia.

FOLHA - Que características mais se destacam em cada um, Crumb e Uderzo?
CAMPOS
- Uma característica comum aos dois é o gosto pelo desenho. É visível que gostam das figuras desenhadas, o que é uma característica dos grandes artistas dos quadrinhos.
A outra é que o Crumb vive numa verdadeira aldeia gaulesa. Ele, a mulher, o amante da mulher mora na casa em frente e os vizinhos vão chegando. Nesse sentido, o do desenho, eles são comuns, mas, de resto, são de gerações muito diferentes. Uderzo sonha com o "american way of life" dos anos 50 e queria que a França se tornasse um país como os EUA, enquanto Crumb abomina o que eles se tornaram e queria que virassem uma vila francesa [ri].

FOLHA - Os estilos do Crumb e do Uderzo deixaram quais seguidores importantes?
CAMPOS
- As influência de Uderzo e Goscinny mais Hergé [belga francófono, 1907-83], criador do Tintin, moldaram uma indústria no quadrinho francês. Fizeram todos aqueles personagens com o nariz de beterraba que assola o quadrinho francês -e que é um tédio.
É diferente quando você fala do Crumb, que com o passar do tempo vai se afirmando como o grande autor dos quadrinhos ocidentais da segunda metade do século 20. O "Maus", do Art Spiegelman (Cia. das Letras), é obviamente e assumidamente derivado dele...
Agora, essa nova geração francesa, com o David B., de "Epilético" (Conrad), a Marjane Satrapi, de "Persépolis" (Cia. das Letras), tem ligação direta com ele. Tem outros, como o Christophe Blain, de "Isaac, o Pirata" (Conrad), e até o "American Splendor" (de Harvey Pekar, ed. Vertigo).

FOLHA - O Crumb tem muita influência no Brasil?
CAMPOS
- Sem dúvida... o Angeli, o Marcatti, ainda que este diga não gostar do Crumb, têm toda a influência da personalidade dele. Mesmo quando a pessoa não se inspira do traço, ele é uma referência de atitude, de comportamento.
Hoje, dá para considerar que o Crumb e os mangás são as grandes influências do quadrinho mundial. E são o enterro, a pá de cal no projeto de Goscinny e Uderzo. Isso porque Asterix significou o auge de um modelo que os europeus costumavam chamar de 48 c.c. -álbuns de 48 páginas e coloridos: é o formato dele, é o formato de Tintin.
Em torno dele, se montou toda a indústria de álbuns de quadrinhos da França, principal referência na Europa. Quadrinhos de direita, de esquerda, de vanguarda, conservadores, de ficção científica, policiais, infantis ou adultos, eróticos... Todos seguiram esse modelo.

FOLHA - E como ele foi "enterrado" pelo Crumb e pelos mangás?
CAMPOS
- Não é que não existam mais álbuns de 48 páginas, coloridos. Eles continuam sendo produzidos na França e vendem muito, mas o que mais cresce no mundo todo, inclusive nos EUA, é o formato de livro preto-e-branco, ao qual Crumb sempre esteve ligado e também é o formato dos mangás.

FOLHA - O Crumb passa a ser bastante influente nos anos 60 e, ainda mais, nos 70. E os mangás, quando começam a tomar o Ocidente?
CAMPOS
- Nos anos 90. Antes, existiam como curiosidade, para segmentos específicos. O que mudou totalmente a história do mangá no Ocidente foi "Dragonball", que entrou e, em todo lugar onde foi publicado, vendeu mais do que os quadrinhos dos super-heróis americanos -menos nos EUA, é claro. Isso abriu a porteira para todos os outros, o que criou a indústria.

FOLHA - Como vê a evolução dos quadrinhos no Brasil? Existe uma escola própria brasileira?
CAMPOS
- É muito difícil falar de uma linha evolutiva do quadrinho brasileiro, porque ele está aberto ao que acontece lá fora e as gerações se sucedem, ao que parece, sem ter contato com a geração precedente.
O que é diferente, por exemplo, de falar da bossa nova: por mais revolucionária que possa ter sido, todo mundo conhecia Noel Rosa (1910-37) e Ismael Silva (1905-78).
Não é o caso dos quadrinhos: existia uma geração de terror e aventura nos anos 60 que não tinha nada a ver com a turma do "Pasquim". E a ligação desta com a "Balão" [revista fundada por Laerte e Luiz Gê em 1972, na USP] é muito tênue.

FOLHA - Quanto ao "Pasquim", que foi muito forte até para a história brasileira recente, qual foi a maior influência estrangeira?
CAMPOS
- Em primeiro lugar, houve a passagem do Steinberg [Saul Steinberg, desenhista americano, 1914-99] pelo Brasil, que teve uma influência gigante sobre Millôr Fernandes... Eles não eram adolescentes e, mesmo quando ainda eram, já tinham gostos de adultos. Então, as influências foram a "New Yorker" e alguns quadrinhos europeus, mas sem relação com Goscinny e Uderzo.

FOLHA - Qual deve ser, então, o futuro da HQ no Brasil? Para que lado ela vai?
CAMPOS
- Ela tende a seguir o que acontece no resto do mundo. Os quadrinhos são o segmento que mais cresce no mercado editorial. Enquanto livros de referência sofrem bastante com a concorrência da internet, os quadrinhos não param de crescer e de aparecer nas listas de mais vendidos.
Como vai ser o desenvolvimento particular da produção brasileira como linguagem específica, é um pouco difícil saber. Confesso estar curioso, porque o Brasil ficou muito isolado das diversas formas de quadrinhos que aconteciam no mundo. Foram décadas dominadas pelos quadrinhos americanos, exclusivamente super-heróis e patos.
A exceção era o Maurício [de Souza, criador da turma da Mônica], mas que era só para crianças. Até o próprio Crumb foi muito mal publicado no Brasil.
Então, todo esse negócio está sendo descoberto agora, mas, por outro lado, o Brasil também está pulando etapas. A gente [Conrad] está publicando agora o "Jornada Oeste", que é a primeira publicação no Ocidente de uma história em quadrinhos famosíssima na China.
Depois que compramos os direitos, fiquei pensado; "Que maluquice, como é que algo assim, que tem um nível, sei lá, do Príncipe Valente ou do Tarzan, não é publicado?". O desenho é maravilhoso, a história é ótima.
Acho que essa maturidade tende a gerar, no futuro próximo, coisas muito interessantes. E já vejo algumas acontecerem. Sem falar da minha editora, por exemplo, o Marcello Quintanilha, Marcello Gaú [pseudônimo que ele usava], é uma coisa especialmente única.
E os europeus e americanos ficam falando, ficam surpresos... o Marcatti, o Lourenço Mutarelli. Veja o Laerte, como os quadrinhos dele vão rompendo clichês...
Seria muito bom para o Brasil ter um maior desenvolvimento, porque a linguagem de quadrinhos tem tido um papel essencial na indústria pop mundial. É a base de Hollywood, é a base dos games e de tudo mais.


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