São Paulo, domingo, 16 de março de 2008

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"Reflexões sobre o Direito à Propriedade" reaplica ao Estado atual os argumentos liberais contra o Antigo Regime, dos séculos 17 e 18

RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Surgiu no Brasil, nos últimos anos, em parte devido à rotina eleitoral, uma safra de pensadores que reivindicam sua inscrição na estirpe da "direita". Diferenciam-se da direita histórica brasileira pela ausência de vínculos com o regime militar, mas também por sua preocupação em renovar a paleta doutrinária e política dessa corrente.
Os dois articulistas mais ativos do grupo são Olavo de Carvalho e Denis Rosenfield. Apesar da similitude de suas observações sobre a conjuntura, da retórica da Guerra Fria e da pauta comum -um roteiro que pouco difere do apresentado pelo jornalista Ali Kamel-, seus princípios e ideário são bastante distintos.
O epíteto mais adequado a Carvalho seria o de "conservador", por sua defesa da "comunidade religiosa" e rejeição da modernidade.
Já Rosenfield adota uma postura "reformista", em sua militância neoliberal e fundamentalista de mercado. Outra novidade típica desses autores é sua pretensão acadêmica. Rosenfield se apresenta como "professor titular de filosofia e pesquisador 1-A do CNPq" [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico].
O seu novo livro, "Reflexões sobre o Direito à Propriedade", porém, mantém a mixórdia de seus artigos na imprensa, transitando aleatoriamente da formulação de princípios à opinião sobre assuntos do dia.
A tensão entre esses dois gêneros e estilos faz com que o fio teórico do texto, enunciado no título, se encontre amiúde obscurecido pelos exemplos, em geral, aplicações descontextualizadas, contraditórias e panfletárias dos princípios, o que não deixa de ressaltar suas obsessões.

Tábuas da lei
As reflexões do livro acerca da propriedade se restringem à reprodução da argumentação dos clássicos dos séculos 17 e 18, Locke, Paine e Sieyès.
Esses autores, como se sabe, consideram a propriedade como a pedra angular da liberdade e dos direitos civis, em contraposição aos privilégios do Antigo Regime. Acatadas reverentemente como "tábuas da lei", suas ponderações -e o ideal de sociedade que delas emana, a "república dos proprietários"- são erigidas em normas a partir das quais Rosenfield julga a fase atual e a história do capitalismo.
Rosenfield anota várias infrações no Brasil de hoje: a legalização da posse da terra de comunidades quilombolas, o sistema de cotas raciais ou sociais nas universidades, o programa Bolsa Família, o projeto do Estatuto da Igualdade Racial, a desapropriação de latifúndios improdutivos para efeito de reforma agrária, os planos diretores dos municípios etc.
Ele não hesita em afirmar que no Brasil, desde a Constituição de 1988, não vigora o "Estado de Direito": "A lei, no sentido verdadeiro do termo, reside em proteger a liberdade e a propriedade. Logo, não é qualquer lei nem qualquer Constituição que correspondem a essa definição. Há leis, por exemplo, que permitem atentados à propriedade como a da "função social da propriedade"."
Como se vê, Rosenfield, na tipologia definida por T.H. Marshall, aceita os direitos civis e políticos, mas, à maneira de Hayek, rejeita peremptoriamente os "direitos sociais", pilares do Estado de Bem-Estar e alvos prioritários do neoliberalismo. A tópica "direito à propriedade" constitui apenas a arma escolhida em sua batalha contra o Estado.
Não escapa ao autor que tal direito, levado ao extremo, impossibilita qualquer forma de regulação, mesmo a ambiental ou moral. Afinal, como impedir os proprietários das matas de consumi-las ou refrear o tráfico consentido de drogas, mulheres ou órgãos humanos?
A maior parte do livro consiste, assim, em um libelo contra o Estado. Rosenfield reutiliza os argumentos liberais contra o Antigo Regime aplicando-os ao Estado contemporâneo, que designa como "burocrático-distributivo".
Para levar adiante essa analogia tosca e improcedente, Rosenfield ignora solenemente as transformações do capitalismo: o fim da política econômica mercantilista e a incorporação, pelo "capitalismo de Estado", das demandas e reivindicações do "outro" da "república dos proprietários" -o mundo do trabalho.

Sem mediações
O autor passou grande parte de sua vida lendo e ensinando Hegel. No entanto lhe escaparam algumas das mediações dialéticas mais elementares da sociedade atual. A incorporação pelo Estado burguês do planejamento socialista, a regulação keynesiana, deteve o ciclo de crises, guerras e revoluções que ameaçava a continuidade do sistema capitalista.
A luta do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) alterou o uso da propriedade rural no Brasil, contribuindo para a substituição do latifúndio pouco produtivo pelo agronegócio. Por fim, a implementação radical do receituário neoliberal na América Latina, ao destruir um Estado que subsidiava apenas as empresas e a camada mais abastada da população, possibilitou a emergência de governos com coloração mais à esquerda que tendem a ampliar a cobertura social dos despossuídos.


RICARDO MUSSE é professor no departamento de sociologia da USP.

REFLEXÕES SOBRE O DIREITO À PROPRIEDADE
Autor:
Denis Rosenfield
Editora: Campus-Elsevier (tel. 0800-265340)
Quanto: R$ 39 (224 págs.)


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