São Paulo, domingo, 16 de abril de 2000


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pós-escrito

Uma vítima do simplismo ideológico

Juan José Saer
especial para a Folha

Escrito em 1985, o breve artigo acima sobre Roberto Arlt requer talvez algumas observações sobre os vínculos de sua obra com a de Borges e com a política. Na Argentina, desde os anos 30, os intelectuais de esquerda consideram Arlt como um escritor político e Borges como um escritor refinado e escapista, desligado de todo contato com a realidade. A bem da verdade, analisados hoje de uma perspectiva diferente, os fatos demonstram exatamente o contrário: excetuando "Os Sete Loucos" e "Os Lança-Chamas", em que um projeto revolucionário semelhante ao dos niilistas dostoievskianos constitui o nó principal (mas não o único) da intriga, não é difícil comprovar que Arlt não escreveu nenhum texto explicitamente político, e que as idéias políticas e morais implícitas em suas obras suscitaram mais de um problema a seus muitos admiradores, que chegaram a encontrar nelas, o que no meu entender é absurdo, elementos fascistas (talvez a complexidade do mundo arltiano em relação ao simplismo ideológico deste ou daquele partido seja a causa desse enorme equívoco). Em contrapartida, se analisarmos com objetividade a obra borgiana, e não apenas a ensaística, salta aos olhos que, já desde meados dos anos 20, as intervenções políticas são frequentes nela, e a sua evolução a partir de certo nacionalismo populista até uma posição provocativamente conservadora é legível nessas intervenções. Poderíamos definir seu ideal político como uma defesa constante do status quo considerado como a encarnação de um liberalismo imaginário, ameaçado ao mesmo tempo pelo nazismo e pelo comunismo e, no âmbito nacional, pelo peronismo, que, de seu ponto de vista, continha os piores elementos dos outros dois.

Crítica e lugar-comum
Se no artigo de 1985 opus Borges a Arlt, é porque se trata de um lugar-comum da crítica literária argentina, talvez inadequado, já que dois grandes escritores nem se opõem nem se complementam, mas coexistem autônomos e completos, no mesmo espaço literário. Mas a razão principal dessa oposição era a caricatura de si mesmo em que se transformara o personagem público Jorge Luis Borges. Sua agressividade política e literária e seu estatuto de oráculo ideológico de um liberalismo idealizado mereciam, a meu ver, o contraste com a obra de um autor como Arlt, que ardeu nela em plena juventude.
Contemporâneas dos desplantes borgianos, com o retorno da vida constitucional começaram a aparecer as "autocríticas" dos inimigos mortais de Borges, os Montoneros. Essas supostas autocríticas destilavam mais satisfação que verdadeira avaliação objetiva da parte de responsabilidade própria durante os anos de massacres que o país acabava de atravessar.
Parecia-me que, em extremos tão diferentes, o ancião desorbitado e os ex-iconoclastas, munidos de uma duvidosa reescritura da história e decididos a ocupar posições no período que se iniciava, mostravam-se apequenados à luz da inocência arltiana, lançada ao mundo e à sociedade sem outros imperativos que os ditados pelas regras de sua arte, para ser a testemunha de suas cruéis contradições.


O que ler
"Os Sete Loucos & Os Lança-Chamas", trad. de Maria Paula Gurgel Ribeiro, Ed. Iluminuras, 412 págs., preço não definido.
"Armadilha Mortal", Ed. L&PM.
"As Feras", Ed. Iluminuras.
"Viagem Terrível", Ed. Iluminuras.




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