São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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CIDADE INTERIOR

Projetos fazem vivenciar São Paulo por dentro, imune à especulação imobiliária

MARCO GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Espero contribuir a esta homenagem que a Folha faz a Paulo Mendes da Rocha pelo seu merecido Prêmio Pritzker deste ano com uma pequena reflexão sobre dois grandes projetos que fez para São Paulo: a reforma da Pinacoteca do Estado e o projeto do Museu Brasileiro da Escultura.
A partir de 1998, quando fui convidado a ministrar um curso de pintura contemporânea, passei a vivenciar as dependências do Mube. Esse espaço me pareceu cada vez mais instigante e se tornou o fio condutor da minha produção pictórica durante certo período (2001-2004). Tive a oportunidade, então, de conversar um pouco com Mendes da Rocha.
A discussão sobre o modo como a obra contemporânea deve se inserir no espaço público, em diálogo com a arquitetura, se torna cada vez mais importante. Penso, entretanto, que todo grande museu oferece um lugar de resistência, onde o lugar-comum da vida deve se transfigurar em outra coisa, em uma vivência estética, e não em um mero lugar de convivência.
Merleau-Ponty [1908-1961], falando sobre as pinturas rupestres de Lascaux [França], nos diz que a primeira pintura certamente nos leva também à última a ser feita no futuro. Creio que o Mube nos dá a mesma sensação de atemporalidade incrustada no presente. Ao falarmos a respeito do Mube, Mendes da Rocha mostrou algumas figuras de Stonehenge [Inglaterra], talvez o primeiro monumento construído pelo homem. As imagens sugerem uma nostalgia metafísica, proporcionando talvez a impressão de um presente expandido.
Wolhein nos diz que os artistas, ao utilizarem imagens arquitetônicas, estão buscando metáforas do corpo.
Nesse caso, a imagem do corpo é uma forma em construção. É possível observar uma aparente contradição entre a vontade de conjugar uma representação arquitetônica e uma paisagem obtusa, que transforma os ângulos e linhas retas novamente em estruturas orgânicas ou formas naturais. Não podemos distinguir assim o que é arquitetura e o que é paisagem nesse museu. Aprecio particularmente a forma como Mendes da Rocha desafia os planos ortogonais, criando uma perspectiva abissal. As sucessões de planos convidam a que a luz incida sobre a superfície de modo diverso, como em um templo, cujas colunatas estão lá para que a luz se manifeste.
A arquitetura de um museu sempre coloca a questão do lugar a ser ocupado pelo observador, como ele deve se posicionar no espaço construído. No caso do Mube, o espaço nunca se revela por completo, indicando uma força tectônica maior do que podemos percorrer com um só golpe de vista. Essa força é que Rothko admirava na escadaria da biblioteca Laurenciana, projetada por Michelangelo: uma imagem mental que escapa do enquadramento.
A tensão estabelecida pela laje em suspensão nos eleva a uma verticalidade semelhante à do nosso corpo em relação à paisagem.
Por outro lado, há a força bruta do concreto, exemplo marcante da presença física do material empregado, mas que ao mesmo tempo possibilita curvaturas de uma leveza inimaginável (por isso que Mendes da Rocha sempre se referiu a Niemeyer, em nosso breve diálogo, com grande respeito). O Mube oferece uma experiência em si, e sua força perdura apesar da política curatorial desastrosa do museu.
No seu atual estado, ele é mais belo vazio do que empilhado pelos badulaques da feira de antiguidades instaladas durante o fim de semana.

Inserção urbana
Caso diverso e bem menos dramático é o da Pinacoteca do Estado. O problema, nesse caso, não está na habitação do museu, mas na sua inserção no próprio tecido urbano, bastante esgarçado, e que precisava ser urbanizado para que as pessoas pudessem voltar a conviver lá, e não apenas visitar os museus e salas de concerto. Ao entrarmos no seu interior temos a sensação de esquecer a cidade em que vivemos.
Atualmente, a Pinacoteca é o único lugar em que podemos ter o prazer estético de um espaço em perfeita harmonia com as obras de arte, principalmente tendo em vista as exposições extraordinárias dos últimos anos. Exemplo igual na história de São Paulo somente na época do Masp aos cuidados de Pietro Maria Bardi e Lina Bo Bardi.
A experiência mais marcante que tive na Pinacoteca foi durante uma exposição de um ciclo de gravuras intitulados "Carceri". Piranese fez os mais fantásticos, sombrios, estranhos cárceres, que parecem destruídos pelo seu imaginário.
Mais do que labirintos, é o espaço inteiro que parece se desintegrar: não há figuras nem personagens, apenas vestígios, sombras, lembranças de uma presença humana: máquinas de tortura, correntes, cadafalsos, escadas, plataformas, candelabros, janelas aprisionadas. As gravuras só poderiam ser em preto-e-branco: um mundo de contrastes, luz e sombra, esperança e solidão, desespero e liberdade. Parecem ter existido desde sempre e provavelmente, mesmo desabando, jamais deixarão de existir.
O que me pareceu notável foi como essas gravuras monumentais na sua escala reverberavam no espaço inteiro da Pinacoteca. As passarelas que vazam o espaço blindado da Pinacoteca se espelhavam no "Carceri" e vice-versa.
Ao habitar São Paulo com esses projetos, a força de Mendes da Rocha se faz evidente, pois esses monumentos, labirínticos, fechados para a paisagem exterior, nos ensinam cada vez mais a vivenciar a cidade a partir da sua perspectiva interna, resistente à especulação voraz do mercado imobilário. Uma segunda natureza reaparece, assim, no horizonte da nossa cidade.


Marco Giannotti é pintor e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.


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