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CIDADE INTERIOR
Projetos fazem vivenciar São Paulo por dentro, imune à especulação imobiliária
MARCO GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Espero contribuir a esta homenagem que a Folha faz a Paulo
Mendes da Rocha pelo seu
merecido Prêmio Pritzker
deste ano com uma pequena reflexão sobre dois grandes projetos que
fez para São Paulo: a reforma da Pinacoteca do Estado e o projeto do
Museu Brasileiro da Escultura.
A partir de 1998, quando fui convidado a ministrar um curso de pintura contemporânea, passei a vivenciar as dependências do Mube. Esse
espaço me pareceu cada vez mais
instigante e se tornou o fio condutor
da minha produção pictórica durante certo período (2001-2004). Tive a
oportunidade, então, de conversar
um pouco com Mendes da Rocha.
A discussão sobre o modo como a
obra contemporânea deve se inserir
no espaço público, em diálogo com a
arquitetura, se torna cada vez mais
importante. Penso, entretanto, que
todo grande museu oferece um lugar de resistência, onde o lugar-comum da vida deve se transfigurar
em outra coisa, em uma vivência estética, e não em um mero lugar de
convivência.
Merleau-Ponty [1908-1961], falando sobre as pinturas rupestres de
Lascaux [França], nos diz que a primeira pintura certamente nos leva
também à última a ser feita no futuro. Creio que o Mube nos dá a mesma sensação de atemporalidade incrustada no presente. Ao falarmos a
respeito do Mube, Mendes da Rocha
mostrou algumas figuras de Stonehenge [Inglaterra], talvez o primeiro
monumento construído pelo homem. As imagens sugerem uma
nostalgia metafísica, proporcionando talvez a impressão de um presente expandido.
Wolhein nos diz que os artistas, ao
utilizarem imagens arquitetônicas,
estão buscando metáforas do corpo.
Nesse caso, a imagem do corpo é
uma forma em construção. É possível observar uma aparente contradição entre a vontade de conjugar uma
representação arquitetônica e uma
paisagem obtusa, que transforma os
ângulos e linhas retas novamente em
estruturas orgânicas ou formas naturais. Não podemos distinguir assim o que é arquitetura e o que é paisagem nesse museu. Aprecio particularmente a forma como Mendes
da Rocha desafia os planos ortogonais, criando uma perspectiva abissal. As sucessões de planos convidam a que a luz incida sobre a superfície de modo diverso, como em um
templo, cujas colunatas estão lá para
que a luz se manifeste.
A arquitetura de um museu sempre coloca a questão do lugar a ser
ocupado pelo observador, como ele
deve se posicionar no espaço construído. No caso do Mube, o espaço
nunca se revela por completo, indicando uma força tectônica maior do
que podemos percorrer com um só
golpe de vista. Essa força é que Rothko admirava na escadaria da biblioteca Laurenciana, projetada por Michelangelo: uma imagem mental
que escapa do enquadramento.
A tensão estabelecida pela laje em
suspensão nos eleva a uma verticalidade semelhante à do nosso corpo
em relação à paisagem.
Por outro lado, há a força bruta do
concreto, exemplo marcante da presença física do material empregado,
mas que ao mesmo tempo possibilita curvaturas de uma leveza inimaginável (por isso que Mendes da Rocha sempre se referiu a Niemeyer,
em nosso breve diálogo, com grande
respeito). O Mube oferece uma experiência em si, e sua força perdura
apesar da política curatorial desastrosa do museu.
No seu atual estado, ele é mais belo
vazio do que empilhado pelos badulaques da feira de antiguidades instaladas durante o fim de semana.
Inserção urbana
Caso diverso e bem menos dramático é o da Pinacoteca do Estado. O
problema, nesse caso, não está na
habitação do museu, mas na sua inserção no próprio tecido urbano,
bastante esgarçado, e que precisava
ser urbanizado para que as pessoas
pudessem voltar a conviver lá, e não
apenas visitar os museus e salas de
concerto. Ao entrarmos no seu interior temos a sensação de esquecer a
cidade em que vivemos.
Atualmente, a Pinacoteca é o único lugar em que podemos ter o prazer estético de um espaço em perfeita harmonia com as obras de arte,
principalmente tendo em vista as exposições extraordinárias dos últimos anos. Exemplo igual na história
de São Paulo somente na época do
Masp aos cuidados de Pietro Maria
Bardi e Lina Bo Bardi.
A experiência mais marcante que
tive na Pinacoteca foi durante uma
exposição de um ciclo de gravuras
intitulados "Carceri". Piranese fez os
mais fantásticos, sombrios, estranhos cárceres, que parecem destruídos pelo seu imaginário.
Mais do que labirintos, é o espaço
inteiro que parece se desintegrar:
não há figuras nem personagens,
apenas vestígios, sombras, lembranças de uma presença humana: máquinas de tortura, correntes, cadafalsos, escadas, plataformas, candelabros, janelas aprisionadas. As gravuras só poderiam ser em preto-e-branco: um mundo de contrastes,
luz e sombra, esperança e solidão,
desespero e liberdade. Parecem ter
existido desde sempre e provavelmente, mesmo desabando, jamais
deixarão de existir.
O que me pareceu notável foi como essas gravuras monumentais na
sua escala reverberavam no espaço
inteiro da Pinacoteca. As passarelas
que vazam o espaço blindado da Pinacoteca se espelhavam no "Carceri" e vice-versa.
Ao habitar São Paulo com esses
projetos, a força de Mendes da Rocha se faz evidente, pois esses monumentos, labirínticos, fechados para a
paisagem exterior, nos ensinam cada vez mais a vivenciar a cidade a
partir da sua perspectiva interna, resistente à especulação voraz do mercado imobilário. Uma segunda natureza reaparece, assim, no horizonte da nossa cidade.
Marco Giannotti é pintor e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.
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