São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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Duas obras pintam um retrato impiedoso do ditador e seu projeto de poder baseado no terror, embora ressaltem sua inteligência

Stálin, o terrível

FRANCISCO DORATIOTO
ESPECIAL PARA FOLHA

Há 50 anos, em fevereiro de 1956, no 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Kruschev apresentou devastadora denúncia dos crimes cometidos por seu antecessor, Josef Stálin, de quem fora colaborador. Morto três anos antes, Stálin fora o senhor absoluto da União Soviética por três décadas, e sua repressão matou, no mínimo, 20 milhões de pessoas. Parte deles era de militantes comunistas, inclusive líderes revolucionários, motivando a observação, de humor negro, de que Stálin matou mais comunistas do que o nazi-fascismo.
Denúncias anteriores contra o regime stalinista tinham sido recebidas como propaganda e falsificações da direita. Em 1956, contudo, a denúncia vinha de Moscou e constituiu verdadeiro cataclismo político no universo comunista. Desde então, muitos foram os estudos para compreender a personalidade de Stálin e os mecanismos de funcionamento do seu regime de terror.
Essa tarefa foi facilitada após o fim da União Soviética, em 1991, com a abertura de arquivos e a liberdade para testemunhar, por parte de sobreviventes do stalinismo.
Os resultados começam a aparecer, como se vê em "Stálin - A Corte do Czar Vermelho", do historiador inglês Simon Sebag Montefiore, e "Um Stálin Desconhecido", dos irmãos russos Zhores e Roy Medvedev, respectivamente biólogo e historiador. Roy foi expulso do Partido Comunista na época de Brejnev e reincorporado quando Gorbatchov tentou reformar o sistema soviético.

Confiança em Hitler
O livro de Montefiore é impiedoso com Stálin, enquanto os irmãos Medvedev tratam-no, em certos trechos, com alguma indulgência.
Assim, ao analisar o ataque alemão à União Soviética, Roy descreve um Stálin competente nos preparativos para enfrentar a invasão do antigo aliado -em 1939 a Alemanha e a União Soviética tinham assinado um pacto de não-agressão e partilha de territórios-, enquanto Montefiore é mais convincente em demonstrar o contrário. Este mostra que o ditador tinha desarticulado o Exército Vermelho, ao ordenar a prisão e o assassinato de milhares de oficiais, na segunda metade da década de 1930.
Ademais, Stálin confiou que Hitler cumpriria o pacto de não-agressão e, por isso, não acreditou na informação da invasão, inclusive do dia, vinda de diferentes fontes, como Mao Tse-tung e o espião Richard Sorge, adido de imprensa da Embaixada Alemã em Tóquio. À meia-noite e meia de 22 de junho de 1941, horas antes do início do ataque, um soldado alemão comunista, Alfred Liskov, desertou, atravessou a fronteira e comunicou aos soviéticos que, em sua unidade, fora lida para a tropa a ordem da invasão.
Era o terceiro desertor com idêntica informação, mas Stálin se recusou a crer e ordenou seu fuzilamento por "desinformação". Confrontado com a invasão, Stálin desapareceu por dois dias, afirmando antes: "Tudo está perdido. Eu desisto. Lênin fundou nosso Estado e nós fodemos com tudo".
Montefiore utiliza impressionante base documental, inclusive o arquivo presidencial de Stálin, aberto à pesquisa há seis anos. Seu livro, de mais de 900 páginas, abrange do início da militância política à morte do ditador, e o estilo narrativo torna a leitura agradável.
Dele emerge uma figura complexa, um Stálin paranóico, vingativo, sádico, amoral mesmo para a ética bolchevique, de que os fins justificam os meios -pai amoroso, leitor de obras de história, escritor, apreciador do Concerto para Piano nº 23 de Mozart, admirador de Perón, loquaz e socialmente agradável.
Tinha tal força de vontade que recusou trocar o marechal Von Paulus, que se rendeu aos soviéticos, pelo filho Iákov, tenente de artilharia, capturado pelos alemães e que terminou morrendo no campo de prisioneiros de guerra. Conhecer a intimidade de Stálin é desvendar os mecanismos de imposição de seu poder e do próprio funcionamento do sistema político bolchevique.
É o que Montefiore faz com maestria, expondo as vísceras da engrenagem stalinista de dominação, com nomes, datas e responsabilidades, alertando que havia um sistema maior, que "estimulava o espírito empreendedor do terrorismo". Afinal, o assassinato sistemático dos inimigos -ou tidos como tal- da Revolução começou com Lênin, a partir da lógica de que torturas e homicídios no presente se justificavam a partir do objetivo de construir o futuro socialista.
Além da convicção ideológica, as regalias -mansões, carros oficiais, jantares, escolas especiais para os filhos etc.- ajudam a explicar a cumplicidade da "corte" de Stálin com seu sistema de terror.
"Stálin - A Corte do Czar Vermelho" também é esclarecedor sobre as relações internacionais a partir do desencadear da Segunda Guerra Mundial. Talvez incomode a alguns o uso da ironia e de adjetivações como "quadrilha", "bêbados", "porcino", dadas aos protagonistas do livro. Linguagem essa ausente de "Um Stálin Desconhecido", no qual os capítulos são temáticos e podem ser lidos isoladamente.

Calculista e trabalhador
Também os irmãos Medvedev classificam Stálin de tirano cruel e vingativo, mas Roy ressalva que ele "tinha qualidades", sendo "inteligente, calculista e trabalhador", além de "patriota", "preocupado com a preservação do poder de Estado russo". Descrição distante de um internacionalista marxista -para o qual não se encaixa o patriotismo-, mas próxima de Hitler, que, afinal, também nela se enquadraria.
"Um Stálin Desconhecido" faz esclarecedora análise do caso Lysenko, mostrando como os motivos ideológicos atrasaram o estudo da genética na União Soviética. Em outro capítulo, os autores afirmam que foi "benéfica para o país" a destruição de parte do arquivo pessoal de Stálin, por contribuir "para todo o processo de superação do stalinismo". Ora, não será a destruição de documentos que eliminará as conseqüências do passado ou alterará a história.

Gulag atômico
Um dos melhores estudos do livro é sobre o desenvolvimento, pela União Soviética, das bombas atômicas e de hidrogênio e sobre o funcionamento de um "gulag atômico". Em 1950, 700 mil pessoas trabalhavam no programa nuclear atômico soviético, sendo mais da metade prisioneiros escravizados; apenas 10% eram "trabalhadores livres" e os restantes, militares.
No capítulo "O Herdeiro Secreto de Stálin", Zhores contradiz a alegação de Kruschev de que o culto stalinista à personalidade se apoiara no terror e na falsificação da história.
Argumenta que, para construir esse culto, o personagem necessita ter realizações concretas e carisma, cuja ausência, no entanto, pode ser substituída por um "pseudocarisma". Este pode ser conseguido pela "megapropaganda" que fabrica falsos líderes, já que desprovidos de "intelecto extraordinário". Foi a megapropaganda, conclui esse autor, que contribuiu para criar uma aura de carisma ao redor de Hitler e Stálin.
É uma boa lembrança, a de que, afinal, o marketing político tem suas origens nos totalitarismos políticos da primeira metade do século 20.
Tornou-se corrente apresentar Stálin como uma aberração. Este é um erro grosseiro, alerta Montefiore, pois suas práticas se ajustavam às do movimento bolchevique, do qual era espelho em "virtudes e defeitos". De fato, mas os defeitos bolcheviques foram, com ele, largamente exacerbados.


Francisco Doratioto é professor no curso de relações internacionais da Universidade Católica de Brasília e no mestrado em diplomacia do Instituto Rio Branco (DF). É autor de "Maldita Guerra - Nova História da Guerra do Paraguai" (Companhia das Letras).

Stálin - A Corte do Czar Vermelho
912 págs., R$ 69 de Simon Sebag Montefiore. Tradução de Pedro Maia Soares. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500).

Um Stálin Desconhecido
448 págs., R$ 53,90 de Zhores A. Medvedev e Roy A. Medvedev. Tradução de Clóvis Marques. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2585-2000).



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