|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
Duas obras pintam um retrato impiedoso
do ditador e seu projeto de poder baseado no
terror, embora ressaltem sua inteligência
Stálin, o terrível
FRANCISCO DORATIOTO
ESPECIAL PARA FOLHA
Há 50 anos, em fevereiro de
1956, no 20º Congresso do
Partido Comunista da
União Soviética, Nikita
Kruschev apresentou devastadora
denúncia dos crimes cometidos por
seu antecessor, Josef Stálin, de quem
fora colaborador. Morto três anos
antes, Stálin fora o senhor absoluto
da União Soviética por três décadas,
e sua repressão matou, no mínimo,
20 milhões de pessoas. Parte deles
era de militantes comunistas, inclusive líderes revolucionários, motivando a observação, de humor negro, de que Stálin matou mais comunistas do que o nazi-fascismo.
Denúncias anteriores contra o regime stalinista tinham sido recebidas como propaganda e falsificações
da direita. Em 1956, contudo, a denúncia vinha de Moscou e constituiu verdadeiro cataclismo político
no universo comunista. Desde então, muitos foram os estudos para
compreender a personalidade de
Stálin e os mecanismos de funcionamento do seu regime de terror.
Essa tarefa foi facilitada após o fim
da União Soviética, em 1991, com a
abertura de arquivos e a liberdade
para testemunhar, por parte de sobreviventes do stalinismo.
Os resultados começam a aparecer, como se vê em "Stálin - A Corte
do Czar Vermelho", do historiador
inglês Simon Sebag Montefiore, e
"Um Stálin Desconhecido", dos irmãos russos Zhores e Roy Medvedev, respectivamente biólogo e historiador. Roy foi expulso do Partido
Comunista na época de Brejnev e
reincorporado quando Gorbatchov
tentou reformar o sistema soviético.
Confiança em Hitler
O livro de Montefiore é impiedoso
com Stálin, enquanto os irmãos
Medvedev tratam-no, em certos trechos, com alguma indulgência.
Assim, ao analisar o ataque alemão
à União Soviética, Roy descreve um
Stálin competente nos preparativos
para enfrentar a invasão do antigo
aliado -em 1939 a Alemanha e a
União Soviética tinham assinado
um pacto de não-agressão e partilha
de territórios-, enquanto Montefiore é mais convincente em demonstrar o contrário. Este mostra
que o ditador tinha desarticulado o
Exército Vermelho, ao ordenar a
prisão e o assassinato de milhares de
oficiais, na segunda metade da década de 1930.
Ademais, Stálin confiou que Hitler
cumpriria o pacto de não-agressão e,
por isso, não acreditou na informação da invasão, inclusive do dia, vinda de diferentes fontes, como Mao
Tse-tung e o espião Richard Sorge,
adido de imprensa da Embaixada
Alemã em Tóquio. À meia-noite e
meia de 22 de junho de 1941, horas
antes do início do ataque, um soldado alemão comunista, Alfred Liskov, desertou, atravessou a fronteira
e comunicou aos soviéticos que, em
sua unidade, fora lida para a tropa a
ordem da invasão.
Era o terceiro desertor com idêntica informação, mas Stálin se recusou
a crer e ordenou seu fuzilamento por
"desinformação". Confrontado com
a invasão, Stálin desapareceu por
dois dias, afirmando antes: "Tudo
está perdido. Eu desisto. Lênin fundou nosso Estado e nós fodemos
com tudo".
Montefiore utiliza impressionante
base documental, inclusive o arquivo presidencial de Stálin, aberto à
pesquisa há seis anos. Seu livro, de
mais de 900 páginas, abrange do início da militância política à morte do
ditador, e o estilo narrativo torna a
leitura agradável.
Dele emerge uma figura complexa,
um Stálin paranóico, vingativo, sádico, amoral mesmo para a ética
bolchevique, de que os fins justificam os meios -pai amoroso, leitor
de obras de história, escritor, apreciador do Concerto para Piano nº 23
de Mozart, admirador de Perón, loquaz e socialmente agradável.
Tinha tal força de vontade que recusou trocar o marechal Von Paulus, que se rendeu aos soviéticos, pelo filho Iákov, tenente de artilharia,
capturado pelos alemães e que terminou morrendo no campo de prisioneiros de guerra. Conhecer a intimidade de Stálin é desvendar os mecanismos de imposição de seu poder
e do próprio funcionamento do sistema político bolchevique.
É o que Montefiore faz com maestria, expondo as vísceras da engrenagem stalinista de dominação, com
nomes, datas e responsabilidades,
alertando que havia um sistema
maior, que "estimulava o espírito
empreendedor do terrorismo". Afinal, o assassinato sistemático dos
inimigos -ou tidos como tal- da
Revolução começou com Lênin, a
partir da lógica de que torturas e homicídios no presente se justificavam
a partir do objetivo de construir o futuro socialista.
Além da convicção ideológica, as
regalias -mansões, carros oficiais,
jantares, escolas especiais para os filhos etc.- ajudam a explicar a cumplicidade da "corte" de Stálin com
seu sistema de terror.
"Stálin - A Corte do Czar Vermelho" também é esclarecedor sobre as
relações internacionais a partir do
desencadear da Segunda Guerra
Mundial. Talvez incomode a alguns
o uso da ironia e de adjetivações como "quadrilha", "bêbados", "porcino", dadas aos protagonistas do livro. Linguagem essa ausente de
"Um Stálin Desconhecido", no qual
os capítulos são temáticos e podem
ser lidos isoladamente.
Calculista e trabalhador
Também os irmãos Medvedev
classificam Stálin de tirano cruel e
vingativo, mas Roy ressalva que ele
"tinha qualidades", sendo "inteligente, calculista e trabalhador",
além de "patriota", "preocupado
com a preservação do poder de Estado russo". Descrição distante de um
internacionalista marxista -para o
qual não se encaixa o patriotismo-,
mas próxima de Hitler, que, afinal,
também nela se enquadraria.
"Um Stálin Desconhecido" faz esclarecedora análise do caso Lysenko,
mostrando como os motivos ideológicos atrasaram o estudo da genética
na União Soviética. Em outro capítulo, os autores afirmam que foi "benéfica para o país" a destruição de
parte do arquivo pessoal de Stálin,
por contribuir "para todo o processo
de superação do stalinismo". Ora,
não será a destruição de documentos que eliminará as conseqüências
do passado ou alterará a história.
Gulag atômico
Um dos melhores estudos do livro
é sobre o desenvolvimento, pela
União Soviética, das bombas atômicas e de hidrogênio e sobre o funcionamento de um "gulag atômico".
Em 1950, 700 mil pessoas trabalhavam no programa nuclear atômico
soviético, sendo mais da metade prisioneiros escravizados; apenas 10%
eram "trabalhadores livres" e os restantes, militares.
No capítulo "O Herdeiro Secreto
de Stálin", Zhores contradiz a alegação de Kruschev de que o culto stalinista à personalidade se apoiara no
terror e na falsificação da história.
Argumenta que, para construir esse culto, o personagem necessita ter
realizações concretas e carisma, cuja
ausência, no entanto, pode ser substituída por um "pseudocarisma".
Este pode ser conseguido pela "megapropaganda" que fabrica falsos líderes, já que desprovidos de "intelecto extraordinário". Foi a megapropaganda, conclui esse autor, que
contribuiu para criar uma aura de
carisma ao redor de Hitler e Stálin.
É uma boa lembrança, a de que,
afinal, o marketing político tem suas
origens nos totalitarismos políticos
da primeira metade do século 20.
Tornou-se corrente apresentar
Stálin como uma aberração. Este é
um erro grosseiro, alerta Montefiore, pois suas práticas se ajustavam às
do movimento bolchevique, do qual
era espelho em "virtudes e defeitos".
De fato, mas os defeitos bolcheviques foram, com ele, largamente
exacerbados.
Francisco Doratioto é professor no curso
de relações internacionais da Universidade
Católica de Brasília e no mestrado em diplomacia do Instituto Rio Branco (DF). É autor
de "Maldita Guerra - Nova História da Guerra do Paraguai" (Companhia das Letras).
Stálin - A Corte do Czar Vermelho
912 págs., R$ 69
de Simon Sebag Montefiore. Tradução de
Pedro Maia Soares. Companhia das Letras (r.
Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP
04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500).
Um Stálin Desconhecido
448 págs., R$ 53,90
de Zhores A. Medvedev e Roy A. Medvedev.
Tradução de Clóvis Marques. Ed. Record (r.
Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2585-2000).
Texto Anterior: Cidade interior Próximo Texto: + livros: Um herói de nosso tempo Índice
|