São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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Polêmica intelectual divide os historiadores franceses sobre a participação do país na 1ª Guerra e coloca em questão a forma divergente como soldados e a sociedade civil vivenciaram os horrores dos combates

A guerra da memória

JEAN BIRNBAUM

A guerra de 1914-1918 não pára de recomeçar entre os historiadores. Noventa anos após a batalha de Verdun (fevereiro-dezembro de 1916), esse campo de estudos se assemelha a um verdadeiro campo de batalha. Duas tropas opostas se enfrentam incessantemente, defendendo suas posições passo a passo, decididas a conquistar ao mesmo tempo as praças-fortes da universidade e da opinião pública maior.
Essa guerra não é travada com luvas brancas, não mais do que acontece com qualquer outra. Colóquios fortificados e emboscadas editoriais, assassinatos acadêmicos e relatórios alvejados, artilharia pesada na mídia e pequenas sabotagens colaterais: desde a memorável polêmica em torno da Revolução Francesa -que opôs os partidários de Albert Soboul e os de François Furet nos anos 1970-1980-, o mundo não havia testemunhado investida semelhante. Os traidores farão bem em tomar cuidado, e o azar é dos indecisos.


O ódio ao inimigo, o espírito de cruzada existiram, mas o essencial é compreen-der como o consenti- mento se construiu social- mente


"É consternador. Um estudante que quiser debruçar-se sobre a Primeira Guerra hoje precisa escolher seu campo de antemão. Se quiser se conservar neutro, não encontrará ninguém para orientar sua tese", lamenta Antoine Prost, professor emérito da Universidade de Paris 1.
Para que o embate pudesse acontecer, foi preciso que as forças opostas se encontrassem sobre o mesmo terreno: abandonando as abordagens tradicionais da guerra (diplomática ou econômica), os dois esquadrões rivais se aprofundaram no estudo de uma história cultural na qual o essencial não é compreender a abrangência deste tratado ou daquela crise conjuntural, mas apreender a vivência íntima dos combatentes. Assim, para todos os protagonistas da batalha historiográfica atual, a questão chave é hoje idêntica: na lama ou sob o fogo dos obuses, como diabos os soldados puderam suportar sua provação?
Para a maioria esmagadora deles, o sacrifício tinha o valor de evidência, respondem, em essência, os historiadores reunidos em torno do "Historial de la Grande Guerre", museu inaugurado em 1992 em Péronne, na região francesa de Somme, e cujo centro de pesquisas é presidido por Jean-Jacques Becker (www.historial.org).

Os valentões
Criados numa sociedade ocidental em via de "brutalização", os "poilus" ("peludos" ou "valentões", como eram conhecidos os soldados franceses da Primeira Guerra Mundial) teriam se banhado numa "cultura de guerra" -messianismo patriótico, ódio do inimigo, espírito de cruzada- que os teria levado ao "consentimento" generalizado.
"As tréguas e os motins foram mínimos. Todo o mistério consiste nisso: as buchas de canhão aceitaram, em massa, ser buchas de canhão", resume Annette Becker, filha de Jean-Jacques e professora da Universidade de Paris 10-Nanterre que dirige o centro de pesquisas de Péronne em conjunto com Stéphane Audoin-Rouzeau, diretor de estudos da Escola de Estudos Superiores de Ciências Sociais, em Paris. Contatado pelo "Le Monde", este respondeu que não desejava mergulhar "nem seu dedo mínimo nessa polêmica".
Os dois historiadores assinaram juntos um ensaio decisivo, intitulado "14-18, Retrouver la Guerre" (14-18, Reencontrar a Guerra) e publicado em 2000 pela editora Gallimard. Definindo o primeiro conflito mundial como a "matriz" do século 20 e de sua violência totalitária, eles lembraram as cerimônias comemorativas que, em 1998, recordaram os 80 anos do armistício, criticando a "confusão intelectual" e a sensibilidade "vitimizadora" que teriam prevalecido na consciência comum da época: "Não apenas os combatentes não foram apenas vítimas não consentidoras como, mais ainda, os revoltados passaram a ser os únicos heróis de fato. Afinal, os "motins" de 1917 não foram, por sua própria revolta, os precursores da unidade européia?", ironizaram.

Contra-ataque
Foi esse livro que ateou fogo à discussão. Com seu lançamento, aqueles que combatiam seus conceitos se dispersaram. Agora, porém, estão reunidos, avançando em fileiras cerradas, prestes a lançar sua investida contra a fortaleza "Péronne".
De fato, em 21 de fevereiro, na ocasião do aniversário de Verdun, eles divulgaram o nascimento do Coletivo de Pesquisas e Debates Internacionais sobre a guerra de 1914-18 (www.crid1418.org). Composto por pesquisadores universitários mas também outros não-profissionais, o Crid 14-18 espera reunir associações locais e sociedades de estudo em torno de um projeto historiador oposto à linha "péronnista".
Enquanto esta analisa mentalidades e discursos para identificar as origens antropológicas do "consentimento" com a guerra, o Crid 14-18 prefere destacar as experiências concretas que explicariam a "tenacidade" dos combatentes.
"Nossos trabalhos são especialmente sensíveis às práticas ordinárias dos "valentões". Assim, quando lemos correspondências da época, chama a nossa atenção o número de soldados que valorizam as estratégias que lhes permitem escapar das trincheiras. "Que bom, estou com a ferida certa!", dizem, por exemplo, os soldados que não foram gravemente feridos, mas cujo ferimento, mesmo assim, lhes permite afastar-se do front. Em muitos casos eles também se alegram quando seus parentes ou amigos não são colocados em unidades que correm o risco de ir à primeira linha de combate", explica Nicholas Offenstadt, mestre de conferências em Paris 1, que dirigiu "Le Chemin des Dames - De l'Événement à la Mémoire" (O Chemin des Dames. Do Acontecimento à Memória, ed. Stock), manifesto coletivo de que o Crid 14-18 representa o prolongamento direto.
"Trezentos mil mortos -isso dá quantas lágrimas?", perguntou o escritor Roland Dorgelès, fazendo referência ao Chemin des Dames [estrada do norte da França que foi tomada pela Alemanha na Primeira Guerra e foi palco de várias batalhas entre os dois países]. Simbolicamente, o Crid 14-18 optou por criar seu reduto no povoado de Craonne, um dos pontos mais altos da "ofensiva Nivelle", no mesmo lugar onde, em 1998, o então primeiro-ministro Lionel Jospin [socialista] pronunciou seu famoso discurso propondo reintegrar à memória nacional amotinados e fuzilados de 1917.
De fato, essa matança gigantesca foi seguida de um enorme movimento de indisciplina: "Todo "valentão" exige o fim da guerra. Assinado: um "valentão" que está mais do que farto", podia-se ler escrito em um trem em julho de 1917. Pois, insistem os integrantes do Crid 14-18, de estratégias de esquiva à recusa em obedecer, das mutilações voluntárias à deserção, havia uma gama de sentimentos e gestos encontrados entre a maioria dos soldados, inclusive entre aqueles que, não obstante, tinham um discurso nacionalista.
Nesse sentido, a tarefa do historiador consistiria, em primeiro lugar, em se questionar sobre as múltiplas formas de pressão que se ocultavam detrás do "consentimento" patriótico. "A cultura da guerra, tal como é apresentada por Péronne, é uma cultura das elites e daqueles que vinham atrás delas", explica Frédéric Rousseau, presidente do Crid 14-18 e autor de "La Guerra Censurée" (A Guerra Censurada, ed. Seuil).
"É a dos políticos e dos formadores de opinião, que não pode ser comparada à cultura daqueles que tinham os pés mergulhados na merda, que morriam sob o fogo dos obuses. O ódio ao inimigo, o espírito de cruzada existiram, sim, mas o essencial é compreender como o consentimento se construiu socialmente, por meio da pressão do grupo e do vínculo com os camaradas, por exemplo, muito além da polícia e das cortes marciais apenas. Mesmo assim, os motins envolveram dois terços do Exército francês. Essa dimensão é esvaziada nos trabalhos do Historial. Se reintroduzi-la é ser de esquerda, que seja!"

Duelo de slogans
De esquerda? Aqui chegamos à linha do front. Aqui triunfam os slogans, e as velhas divisões retomam a primazia: partidários do "consentimento" contra militantes da "coação", "patrioteiros" contra "neopacifistas", mandarins parisienses contra marginais de província.
"Foram injetadas no debate coisas que têm pouco a ver com a Primeira Guerra", observa o historiador Christophe Prochasson, autor de "Les Intellectuels, le Socialisme et la Guerre" (Os Intelectuais, o Socialismo e a Guerra, editora Seuil) e integrante da direção do Historial.
"Além das antipatias pessoais, percebe-se que as pessoas que circulam em torno de Péronne são legítimas. Elas podem ser encontradas em Paris 10 ou na Escola de Altos Estudos. O pessoal do Chemin des Dames -vamos chamá-lo assim- está mais à margem da história oficial. Essas pessoas trabalham pelo lado do "campo", a proximidade com a memória das bases etc. Existe entre elas o desejo de desmontar, desejo esse que fica claro pela terminologia adotada: a palavra "coletivo" não remete ao campo dos estudiosos, e sim a um grupo formado para lutar. Se eu fosse cruel, falaria de uma espécie de esquerdismo científico."
Tanto aqui como em outros pontos, os antagonismos teóricos se articulam com questões de afinidade pessoal. E também com um sentimento de afronta acadêmica: "Péronne quer controlar todo o território. Seus membros disparam contra qualquer um que mergulhe em seu tema sem declarar fidelidade a eles", lamenta Rémy Cazals, professor da Universidade de Toulouse-Le Mirail. Ao lado de Frédéric Rousseau, mestre de conferências na Universidade Paul-Valéry de Montpellier, Rémy Cazals é a principal figura tutelar do Crid 14-18.
Os dois têm o sentimento de serem alvos de uma certa soberba "parisianista". Afinal, na capital francesa, ele e seus alunos não costumam ser designados, em bloco, como "o pessoal do Midi"? Subentendido: esse pessoal não tem peso diante do Historial de Péronne, animado pela fina flor das universidades parisienses.
"De um ponto de vista institucional, Becker e Audoin-Rouzeau são arquidominadores. Eles recusam o debate e só dialogam com os mortos. No que diz respeito à guerra de 14-18, eles controlam não apenas os livros didáticos escolares mas também os temas que acompanham o estudo da guerra e a bibliografia ligada a ela. Além disso, apóiam-se em uma estrutura poderosa: o Historial dispõe de recursos importantes para financiar bolsas de estudos, colóquios e uma revista internacional. Em termos de orçamento, não há comparação!", diz Philippe Olivera.
Membro do Crid 14-18, esse especialista em história intelectual lecionou durante anos em escolas secundárias. Ele gosta de relatar como ele e seus amigos se encontravam em Craonne para trabalhar em salas pouco aquecidas, acampar na antiga escola da aldeia e passar as noites nas casas de moradores.

Definição de papéis
Dominantes e dominados, agressores e agredidos, carrascos e vítimas... Entretanto os papéis não são tão nítidos e claros quanto pode parecer. A guerra historiográfica em torno da guerra de 14-18 se trava em frentes invertidas, sendo que cada campo desenvolve sua patologia minoritária própria. Embora os animadores do Crid 14-18 se digam assediados do ponto de vista universitário, os pesquisadores do Historial têm o sentimento de terem perdido definitivamente a batalha pela opinião pública.
"Quando somos chamados a falar em público sobre um romance ou um filme popularizado pela memória pacifista, percebemos que um discurso nuançado e não-"vitimizador" é totalmente inaudível", afirma Bruno Cabanes, professor associado da Universidade Yale (EUA) e autor de "La Victoire Endeuillée" (A Vitória Enlutada, ed. Seuil). "Existe entre determinados jovens uma identificação espetacular com os soldados da Primeira Guerra."
A equipe do Historial enxerga os sinais de sua derrota inexorável -em outras palavras, da crescente hegemonia de uma memória que quer reduzir a Primeira Guerra Mundial a um teatro de sombras, em que uma implacável máquina de Estado teria enviado milhões de homens à guerra.
"Os que nos criticam não são muitos, e seus trabalhos me interessam pouco", avisa Annette Becker. "Mas, do o ponto de vista do espaço público, está claro que já perdemos há muito tempo. Para o público, é mais fácil acreditar que nossos queridos avós foram forçados a fazer a guerra por um Exército de oficiais assassinos. Felizmente, tenho a sorte de trabalhar com colegas do exterior, longe dessas pequenas querelas franco-francesas."

Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.


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