São Paulo, domingo, 16 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Vozes do povo

Recordações inventadas, fofocas e diálogos derivados da tradição popular impregnam a ficção de Jorge Luis Borges, que morreu há 20 anos

BEATRIZ SARLO

As datas de centenários e de festas/ não fazem com que este homem solitário seja", escreveu Jorge Luis Borges [1899-1986] sobre Sarmiento e advertiu também, com cético realismo, que o futuro dos diários é o esquecimento -ou que sirvam como tema a um distraído bate-papo vespertino.
Ele o afirmou no início de um conto singular que desejo reler, ainda que a observação inclua, evidentemente, estas linhas. Trata-se de "O Encontro", publicado em "O Informe de Brodie" [ed. Globo].
"O Encontro" faz parte da série de confrontos nos quais os inimigos se batem como representantes vicários de outros homens já mortos, usando suas armas. Mas é também uma ficção de aprendizado, escrita não no começo de uma vida literária, mas sim em seu final, e talvez por isso apresente com liberdade o argumento de um narrador que, para relatar sua história, se vê obrigado a praticar uma traição.
Duelos de faca e desafios que reproduzem rivalidades do passado são temas tão borgianos que não valeria a pena voltar a eles, já que esses contos, hoje, praticamente não necessitam de interpretações e estão simplesmente a esperar que os anos passem para desencadear outras leituras, distintas do cânone crítico estabelecido.
No momento, tudo já foi dito sobre uma das máquinas de ficção que Borges manteve em atividade dos anos 30 a 60.
Mesmo assim, Borges não é um epígono de si mesmo nesses contos que ecoam trabalhos anteriores, porque um segundo plano (que é capaz de disputar com o primeiro o foco da leitura) nos conduz a outra direção. Como vanguardista e como bom espadachim "criollo", Borges nunca está exatamente no lugar onde se acredita que será encontrado. Ele se afasta do lugar-comum que, para assegurar sua compreensão, procura convertê-lo em homem de espelhos, labirintos e objetos imaginários.

Proust do Prata
Na origem da literatura está a literatura. Borges seria o mestre. Mesmo assim, na origem de muitos de seus relatos se podem ouvir as vozes daqueles que os haviam narrado. Proustiano às margens do Prata, Borges escuta as fofocas: em "A Intrusa", seu amigo Santiago Dabove lhe conta a história escandalosa que circulava em um velório suburbano, ocasião que serve como modelo altamente preciso da transmissão oral.
Borges compõe com citações, mas imagina, no caso de suas histórias, que tenha escutado "o que escutou", no sentido de que ocasionalmente atribui à fala alheia histórias que ele mesmo inventou por completo.
O que fica claro é que a máquina Borges funciona citando discursos referidos e necessita de lembranças próprias ou alheias.
Como em Walter Benjamin, há alguma coisa em Borges que reconhece a primazia do gesto e da voz sobre a escrita, porque neles resta um traço do que foi vivido, e se sabe que Borges sente arrependimento e lastima não ter participado, como seu avô, da batalha de Junín [1824], em uma era que exigia dos homens virtudes cardeais como a coragem. O presente decai, "o presente está só".
Assim como em Benjamin, a viagem é tanto propulsora quanto tema do relato: a jornada maravilhosa de Ulisses ou os acampamentos indígenas para onde foge Martín Fierro, o sul ao qual se precipita Dahlman, os deslocamentos mais modestos do narrador que encontra histórias no Uruguai, onde Funes recorda de modo infinito, mas interrompido, e onde os "gauchos" degolados de "O Outro Duelo" disputam uma última corrida, como galinhas sem cabeça, esbaforidas.
Mesmo no que tange a "Martín Fierro", que serve como origem a diversos textos borgianos, é preciso pensar de que maneira esses textos passaram pela voz. Não só a entonação da poesia "criolla", não só o fato de que esse poema tradicionalmente tenha sido aprendido e recitado de memória e dessa forma chegado a funcionar como livro (ou seja, fonte de sabedoria e consolo) durante décadas, as décadas de formação de Borges, na cultura argentina.
Também é preciso imaginar Borges recitando o poema de José Hernández [1834-1886], com a hipótese quase óbvia de que um argentino nascido no último ano do século 19 saberia de memória centenas de versos do "Martín Fierro".
Sua própria voz repetia a de Fierro, misteriosamente tocada pela tradição oral de que Hernández desfrutou. Borges copiou fragmentos dessas sextilhas em alguns de seus contos e as classificou como "estrofes límpidas", e fez delas prosa -sua prosa. A oralidade da tradição "gaucha" traça uma curva que cruza ou tangencia a da literatura mais culta escrita na Argentina.

Afastamento do realismo
Borges procurava um tom; por isso uma poética se condensa na famosa história sobre o final de "A Intrusa": encontrar a linha de diálogo que pudesse encerrar sem reconciliação e sem truculência um assassinato e a disputa fraterna por uma mulher.
Uma pessoa transmite um relato, outra pessoa pode escrevê-lo, ainda outra pode corrigir a história três décadas mais tarde. Nesse movimento, que vai de "Homem da Esquina Rosada" a "História de Rosendo Juárez", se revela a origem oral dos contos.
Durante três décadas, Borges explorou outras formas, mas mesmo nos casos em que um texto escrito é fundamental, como em "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius", na origem da ficção está a recordação de um diálogo, de algo que Bioy Casares [1914-1999] havia dito a Borges. Tudo começa com a invenção dessa conversa repleta de amizade e desconfiança.
Um livro ou um diálogo servem ao mesmo propósito: afastar o relato da literatura realista, que renuncia a essas mediações para produzir o efeito de um imediatismo do mundo. Em troca, o relato emoldurado coloca em primeiro plano o narrador e expõe a máquina de fazer histórias.
"O Encontro" é um relato de aprendizado escrito por um homem velho. É evidente que não se escrevem romances de aprendizado aos 60 anos, a idade que tinha Borges quando foram publicados os contos que compõem "O Informe de Brodie", e isso confere uma qualidade madura, quase definitiva, à recordação (ou à invenção da recordação).
O autor Borges está muito distante da infância invocada pelo narrador, nascido, como ele, no limiar do século 20.

Ficção de origem
Por volta de 1910, um menino acompanha um primo, cujo apelido é Lafinur (como o primo do narrador mencionado em "O Aleph") a uma chácara ao norte de Buenos Aires. Chegam ao entardecer, para comer um assado; mais tarde, dois dos convidados se desafiam para uma partida de pôquer, e desentendimentos no jogo resultam em um duelo a faca, no qual um dos duelistas morre.
Mas, na realidade, como infere o menino que testemunhou o incidente, depois de uma conversa em 1929 com um comissário que conhecia bem o mundo dos "criollos" ardilosos, quem se enfrentou em duelo por meio das facas usadas naquela noite foram dois "gauchos" inimigos, já mortos: Juan Almanza e Juan Almada.
Depois de 29, o menino, que, como todos os demais, jurara segredo, decide romper o silêncio, impressionado por essa história de possessão "criolla".
Duas coisas importam: a traição ao juramento e a ficção de aprendizado que precede o "relato central" da partida de cartas, da ofensa e do duelo, ainda que essa posição central se veja prejudicada pela moldura, que termina por ser mais sugestiva do que a conhecida história de inimigos que, por meio de outros homens, continuam lutando depois da morte.
A memória do menino evoca um mundo remoto. Trata-se, na realidade, de um assado em uma chácara que já foi sede de uma vasta fazenda. Cito: "Havia começado a escurecer quando atravessamos os portões da chácara. Estavam presentes ali, eu sentia, as antigas coisas elementares: o odor da carne a dourar, as árvores, os cachorros, os ramos secos, o fogo que reúne os homens".
As antigas coisas elementares, aquelas que Ulisses encontra ao chegar a uma das ilhas, em seu périplo de retorno a Ítaca: uma abstração do tempo, porque as margens da pradaria "criolla" tocam uma era arcaica, em que o homem e os elementos viviam unidos por uma relação imediata.
A modernidade está suspensa, na frase de Borges que acabo de copiar. Antes e depois, há estradas de ferro ou rapazes da boa sociedade de Buenos Aires, mas, apesar de seu paradoxal potencial descritivo, essa frase perfeita não pertence a época nenhuma.

Ajuste de contas
O menino ouve alguém recitando versos em lunfardo, poesia "criolla", e, quando evoca a cena noturna, cita Lugones: a trilogia elementar de uma cultura do rio da Prata em que coexistem (coexistem?) a pobreza do lunfardo e o poeta nacional que Borges satirizou nos anos 20. O dono da chácara se chama Acevedo (como a mãe de Borges) ou Acébal e por capricho havia montado uma vasta coleção de facas "criollas".
O menino as examina e pergunta se alguma havia pertencido a Juan Moreira, "o arquétipo do "gaucho", como mais tarde o foram Martín Fierro e don Segundo Sombra". O menino é notoriamente um devoto dos folhetins "gauchos" e, já adulto, se permite a ironia de colocar Moreira no topo do que viria a ser a canonização de um tipo de "criollo" desaparecido.
Além disso, essa ironia é um ajuste de contas com a leitura culta do poema de Hernández, promovida por Rojas e Lugones, e com a criação de uma estética criolla por Güiraldes. O duelista morto se chama Duncan, como o rei que Macbeth assassinou. Os livros da biblioteca borgiana estão presentes nesse texto classificado como ficção de aprendizado mas que também poderia ser definido como ficção de origem de um relato, romance familiar de uma literatura. O menino, assustado, observa aquilo que contará anos mais tarde, quando às suas lembranças (e às suas invenções) agregará alguns dos nomes que mencionei. Vejamos outra dimensão de aprendizagem: a traição,exatamente o contrário do que aprende o pequeno peão em "Don Segundo Sombra", que se torna homem ao exercer as virtudes "gauchas" e a lealdade.
Como expliquei, os presentes juraram ocultar os detalhes do duelo e da morte de Duncan, mas o menino que testemunhou os acontecimentos precisa trair esse voto de silêncio para contar sua história. Imitando os adultos, ele também fizera um juramento, mas, muito mais tarde, em gesto consciente e deliberado contra a ética do grupo, viola sua palavra. Aquele que deseja contar não pode respeitar os limites impostos por uma cultura -no caso, a cultura masculina da boa sociedade, que garantia, além disso, a cumplicidade da polícia.

Traição
Aquele que conta se coloca fora da lei do grupo. Para se converter em escritor, deixa o grupo de iguais e o atraiçoa. "E essa é a história", escreve Borges, com as mudanças trazidas pelo "tempo e a boa ou má literatura". Com isso, a história de aprendizado se conclui. O narrador torna públicas as circunstâncias da morte de Duncan e rompe a fidelidade ao pequeno grupo, jurada com o romantismo e o desejo de identificação de alguém que, aos dez anos, estava aprendendo os nomes e o peso fatal dos objetos. Ao trair a lealdade de quem se faz homem ao jurar junto com os demais homens de sua classe, Borges se separa deles para que possa surgir a ficção.


BEATRIZ SARLO é ensaísta e crítica literária argentina, professora da Universidade de Buenos Aires. É autora de, entre outros, "Cenas da Vida Pós-Moderna" (ed. UFRJ). A íntegra deste texto foi publicada no "Clarín".
Tradução de Paulo Migliacci.


Texto Anterior: Crítico influente, Eco já estudou HQs e romances populares
Próximo Texto: O pensador nômade
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.