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Vozes do povo
Recordações
inventadas,
fofocas e diálogos
derivados da
tradição popular
impregnam a
ficção de Jorge
Luis Borges,
que morreu
há 20 anos
BEATRIZ SARLO
As datas de centenários e de festas/ não
fazem com que este
homem solitário seja", escreveu Jorge
Luis Borges [1899-1986] sobre
Sarmiento e advertiu também,
com cético realismo, que o futuro dos diários é o esquecimento -ou que sirvam como
tema a um distraído bate-papo
vespertino.
Ele o afirmou no início de
um conto singular que desejo
reler, ainda que a observação
inclua, evidentemente, estas linhas. Trata-se de "O Encontro", publicado em "O Informe
de Brodie" [ed. Globo].
"O Encontro" faz parte da série de confrontos nos quais os
inimigos se batem como representantes vicários de outros
homens já mortos, usando suas
armas. Mas é também uma ficção de aprendizado, escrita não
no começo de uma vida literária, mas sim em seu final, e talvez por isso apresente com liberdade o argumento de um
narrador que, para relatar sua
história, se vê obrigado a praticar uma traição.
Duelos de faca e desafios que
reproduzem rivalidades do
passado são temas tão borgianos que não valeria a pena voltar a eles, já que esses contos,
hoje, praticamente não necessitam de interpretações e estão
simplesmente a esperar que os
anos passem para desencadear
outras leituras, distintas do cânone crítico estabelecido.
No momento, tudo já foi dito
sobre uma das máquinas de ficção que Borges manteve em
atividade dos anos 30 a 60.
Mesmo assim, Borges não é
um epígono de si mesmo nesses contos que ecoam trabalhos anteriores, porque um segundo plano (que é capaz de
disputar com o primeiro o foco
da leitura) nos conduz a outra
direção. Como vanguardista e
como bom espadachim "criollo", Borges nunca está exatamente no lugar onde se acredita que será encontrado. Ele se
afasta do lugar-comum que,
para assegurar sua compreensão, procura convertê-lo em
homem de espelhos, labirintos
e objetos imaginários.
Proust do Prata
Na origem da literatura está a
literatura. Borges seria o mestre. Mesmo assim, na origem de
muitos de seus relatos se podem ouvir as vozes daqueles
que os haviam narrado. Proustiano às margens do Prata, Borges escuta as fofocas: em "A Intrusa", seu amigo Santiago Dabove lhe conta a história escandalosa que circulava em um velório suburbano, ocasião que
serve como modelo altamente
preciso da transmissão oral.
Borges compõe com citações,
mas imagina, no caso de suas
histórias, que tenha escutado
"o que escutou", no sentido de
que ocasionalmente atribui à
fala alheia histórias que ele
mesmo inventou por completo.
O que fica claro é que a máquina Borges funciona citando
discursos referidos e necessita
de lembranças próprias ou
alheias.
Como em Walter Benjamin,
há alguma coisa em Borges que
reconhece a primazia do gesto e
da voz sobre a escrita, porque
neles resta um traço do que foi
vivido, e se sabe que Borges
sente arrependimento e lastima não ter participado, como
seu avô, da batalha de Junín
[1824], em uma era que exigia
dos homens virtudes cardeais
como a coragem. O presente
decai, "o presente está só".
Assim como em Benjamin, a
viagem é tanto propulsora
quanto tema do relato: a jornada maravilhosa de Ulisses ou os
acampamentos indígenas para
onde foge Martín Fierro, o sul
ao qual se precipita Dahlman,
os deslocamentos mais modestos do narrador que encontra
histórias no Uruguai, onde Funes recorda de modo infinito,
mas interrompido, e onde os
"gauchos" degolados de "O Outro Duelo" disputam uma última corrida, como galinhas sem
cabeça, esbaforidas.
Mesmo no que tange a "Martín Fierro", que serve como origem a diversos textos borgianos, é preciso pensar de que
maneira esses textos passaram
pela voz. Não só a entonação da
poesia "criolla", não só o fato de
que esse poema tradicionalmente tenha sido aprendido e
recitado de memória e dessa
forma chegado a funcionar como livro (ou seja, fonte de sabedoria e consolo) durante décadas, as décadas de formação de
Borges, na cultura argentina.
Também é preciso imaginar
Borges recitando o poema de
José Hernández [1834-1886],
com a hipótese quase óbvia de
que um argentino nascido no
último ano do século 19 saberia
de memória centenas de versos
do "Martín Fierro".
Sua própria voz repetia a de
Fierro, misteriosamente tocada pela tradição oral de que
Hernández desfrutou. Borges
copiou fragmentos dessas sextilhas em alguns de seus contos
e as classificou como "estrofes
límpidas", e fez delas prosa
-sua prosa. A oralidade da tradição "gaucha" traça uma curva
que cruza ou tangencia a da literatura mais culta escrita na
Argentina.
Afastamento do realismo
Borges procurava um tom;
por isso uma poética se condensa na famosa história sobre
o final de "A Intrusa": encontrar a linha de diálogo que pudesse encerrar sem reconciliação e sem truculência um assassinato e a disputa fraterna
por uma mulher.
Uma pessoa transmite um
relato, outra pessoa pode escrevê-lo, ainda outra pode corrigir
a história três décadas mais tarde. Nesse movimento, que vai
de "Homem da Esquina Rosada" a "História de Rosendo
Juárez", se revela a origem oral
dos contos.
Durante três décadas, Borges
explorou outras formas, mas
mesmo nos casos em que um
texto escrito é fundamental,
como em "Tlön, Uqbar, Orbis
Tertius", na origem da ficção
está a recordação de um diálogo, de algo que Bioy Casares
[1914-1999] havia dito a Borges.
Tudo começa com a invenção
dessa conversa repleta de amizade e desconfiança.
Um livro ou um diálogo servem ao mesmo propósito: afastar o relato da literatura realista, que renuncia a essas mediações para produzir o efeito de
um imediatismo do mundo.
Em troca, o relato emoldurado
coloca em primeiro plano o
narrador e expõe a máquina de
fazer histórias.
"O Encontro" é um relato de
aprendizado escrito por um homem velho. É evidente que não
se escrevem romances de
aprendizado aos 60 anos, a idade que tinha Borges quando foram publicados os contos que
compõem "O Informe de Brodie", e isso confere uma qualidade madura, quase definitiva,
à recordação (ou à invenção da
recordação).
O autor Borges está muito
distante da infância invocada
pelo narrador, nascido, como
ele, no limiar do século 20.
Ficção de origem
Por volta de 1910, um menino
acompanha um primo, cujo
apelido é Lafinur (como o primo do narrador mencionado
em "O Aleph") a uma chácara
ao norte de Buenos Aires. Chegam ao entardecer, para comer
um assado; mais tarde, dois dos
convidados se desafiam para
uma partida de pôquer, e desentendimentos no jogo resultam em um duelo a faca, no
qual um dos duelistas morre.
Mas, na realidade, como infere o menino que testemunhou
o incidente, depois de uma conversa em 1929 com um comissário que conhecia bem o mundo dos "criollos" ardilosos,
quem se enfrentou em duelo
por meio das facas usadas naquela noite foram dois "gauchos" inimigos, já mortos: Juan
Almanza e Juan Almada.
Depois de 29, o menino, que,
como todos os demais, jurara
segredo, decide romper o silêncio, impressionado por essa
história de possessão "criolla".
Duas coisas importam: a traição ao juramento e a ficção de
aprendizado que precede o "relato central" da partida de cartas, da ofensa e do duelo, ainda
que essa posição central se veja
prejudicada pela moldura, que
termina por ser mais sugestiva
do que a conhecida história de
inimigos que, por meio de outros homens, continuam lutando depois da morte.
A memória do menino evoca
um mundo remoto. Trata-se,
na realidade, de um assado em
uma chácara que já foi sede de
uma vasta fazenda. Cito: "Havia
começado a escurecer quando
atravessamos os portões da
chácara. Estavam presentes ali,
eu sentia, as antigas coisas elementares: o odor da carne a
dourar, as árvores, os cachorros, os ramos secos, o fogo que
reúne os homens".
As antigas coisas elementares, aquelas que Ulisses encontra ao chegar a uma das ilhas,
em seu périplo de retorno a Ítaca: uma abstração do tempo,
porque as margens da pradaria
"criolla" tocam uma era arcaica, em que o homem e os elementos viviam unidos por uma
relação imediata.
A modernidade está suspensa, na frase de Borges que acabo
de copiar. Antes e depois, há estradas de ferro ou rapazes da
boa sociedade de Buenos Aires,
mas, apesar de seu paradoxal
potencial descritivo, essa frase
perfeita não pertence a época
nenhuma.
Ajuste de contas
O menino ouve alguém recitando versos em lunfardo, poesia "criolla", e, quando evoca a
cena noturna, cita Lugones: a
trilogia elementar de uma cultura do rio da Prata em que coexistem (coexistem?) a pobreza
do lunfardo e o poeta nacional
que Borges satirizou nos anos
20. O dono da chácara se chama
Acevedo (como a mãe de Borges) ou Acébal e por capricho
havia montado uma vasta coleção de facas "criollas".
O menino as examina e pergunta se alguma havia pertencido a Juan Moreira, "o arquétipo do "gaucho", como mais
tarde o foram Martín Fierro e
don Segundo Sombra". O menino é notoriamente um devoto
dos folhetins "gauchos" e, já
adulto, se permite a ironia de
colocar Moreira no topo do que
viria a ser a canonização de um
tipo de "criollo" desaparecido.
Além disso, essa ironia é um
ajuste de contas com a leitura
culta do poema de Hernández,
promovida por Rojas e Lugones, e com a criação de
uma estética criolla por Güiraldes. O duelista morto se chama
Duncan, como o rei que Macbeth assassinou.
Os livros da biblioteca borgiana estão presentes nesse
texto classificado como ficção
de aprendizado mas que também poderia ser definido como
ficção de origem de um relato,
romance familiar de uma literatura. O menino, assustado,
observa aquilo que contará
anos mais tarde, quando às suas
lembranças (e às suas invenções) agregará alguns dos nomes que mencionei.
Vejamos outra dimensão de
aprendizagem: a traição,exatamente o contrário do que
aprende o pequeno peão em
"Don Segundo Sombra", que se
torna homem ao exercer as virtudes "gauchas" e a lealdade.
Como expliquei, os presentes
juraram ocultar os detalhes do
duelo e da morte de Duncan,
mas o menino que testemunhou os acontecimentos precisa trair esse voto de silêncio para contar sua história.
Imitando os adultos, ele também fizera um juramento, mas,
muito mais tarde, em gesto
consciente e deliberado contra
a ética do grupo, viola sua palavra. Aquele que deseja contar
não pode respeitar os limites
impostos por uma cultura -no
caso, a cultura masculina da
boa sociedade, que garantia,
além disso, a cumplicidade da
polícia.
Traição
Aquele que conta se coloca
fora da lei do grupo. Para se
converter em escritor, deixa o
grupo de iguais e o atraiçoa. "E
essa é a história", escreve Borges, com as mudanças trazidas
pelo "tempo e a boa ou má literatura". Com isso, a história de
aprendizado se conclui.
O narrador torna públicas as
circunstâncias da morte de
Duncan e rompe a fidelidade ao
pequeno grupo, jurada com o
romantismo e o desejo de identificação de alguém que, aos dez
anos, estava aprendendo os nomes e o peso fatal dos objetos.
Ao trair a lealdade de quem
se faz homem ao jurar junto
com os demais homens de sua
classe, Borges se separa deles
para que possa surgir a ficção.
BEATRIZ SARLO é ensaísta e crítica literária argentina, professora da Universidade de Buenos
Aires. É autora de, entre outros, "Cenas da Vida
Pós-Moderna" (ed. UFRJ). A íntegra deste texto
foi publicada no "Clarín".
Tradução de Paulo Migliacci.
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