São Paulo, domingo, 16 de julho de 2006

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O pensador nômade

"A Filosofia e Sua História" reúne textos do francês Gérard Lebrun, que formou várias gerações de intelectuais na USP

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O professor sabia que, para ensinar, era preciso atuar na sala de aula. À semelhança da irmã nos palcos parisienses, era ator. Os alunos percebiam o jogo teatral na atividade docente. O prefaciador de "A Filosofia e Sua História" sabe que há de se referir primeiro ao professor Gérard Lebrun e só depois ao filósofo e autor do livro. O comediante, como diz Sartre em citação do professor, "não é outra coisa que suas palavras e seus gestos".
Os alunos batiam palmas por terem tido acesso a uma dupla intimidade. Acesso à docência da filosofia e ao pensamento filosófico. Faltou-lhes a intimidade com a experiência de vida? Meia palavra não lhes teria sido suficiente?

Foucault, Deleuze
Por que filósofo? pergunta Lebrun no pórtico da coletânea de ensaios e, como bom ator, encarna a resposta escrita por outro. Segundo David Hume, o filósofo "sempre permanece, junto de toda a humanidade, na ofensiva e não possui qualquer estação fixa, nenhuma residência, que estivesse obrigado a defender em todas as estações!".
Ratifica o autor do prefácio. Ressoam nos ouvidos idéias de Foucault e Deleuze: o filósofo é o espírito livre nietzschiano. Acrescenta que o filósofo nunca deixa de variar as perspectivas, não se prende a convicções definitivas, faz do pensamento uma experimentação continuada, prefere a vida de auto-extravio do nômade ao repouso convicto do sectário.
Aproximar-se do múltiplo Lebrun, ainda que em poucas linhas, significa elevar à enésima potência o conceito de "desdobramento". Desdobramento que se arma desde sempre na infância, essa "fileira de armadilhas", que é "a origem traumatizante do que mais tarde acreditamos ser nossa singularidade infinita". Ao assumir o teatro como metáfora da docência, do texto filosófico e da própria vida, Lebrun incorpora ao infinito o desdobramento. Não se encenava na sala de aula uma ópera-bufa, já sabemos pelo prefaciador.

Comédia de costumes
Sugiro que nela se estivesse encenando uma comédia de costumes, bem ao estilo de Terêncio. Por exemplo, "O Carrasco de Si Mesmo", para retomar o título que foi dado a uma delas por Charles Baudelaire. Escreveu Terêncio: "Sou homem: não julgo alheio a mim nada do que é humano". Na cena final, num gestual masoquista, o ator retira a máscara de professor e filósofo. E cita uma vez mais Sartre: "A gente se desfaz de uma neurose, mas não se cura de si próprio", para acrescentar pouco depois: "A gente se cura menos ainda de sua filosofia, quando se é um grande pensador". A máscara permanece quase imperceptível no pronome indefinido "on" (a gente).
Como no filme "Teorema", de Pasolini, o público se escandaliza com a nudez do ator francês no palco dos trópicos. A nudez do ator corrói por fora aulas e escritos. A metáfora teatral passará a recobrir Gérard Lebrun com os múltiplos véus de que se valeu o pintor Francis Bacon para fragmentar dramaturgicamente o "portrait" do papa Inocêncio 10º, tal como pintado por Velásquez. Bacon laiciza o papa, Lebrun humaniza o filósofo, ambos em nítido gestual de derrisão e arrogância aos valores do rebanho. Como em fatos jornalísticos recentes, o privado é público. Leia-se o caso do galã Hugh Grant e do cantor pop George Michael.

Duplo exílio
Ficamos diante do filósofo francês nômade, duplamente exilado. E ao nômade duplamente exilado é que ouso repetir a pergunta inaugural: por que filósofo?
Não há resposta. Há uma aproximação -esta pelo viés temerário de duas traduções. A do título do romance "Quincas Borba" para o inglês: "Philosopher or Dog?" (Filósofo ou Cachorro?). E a do conceito de "eidos" (aparência, natureza constitutiva) dos filósofos cínicos tal como traduzido por Didier Deleule. Este se valeu do anglicismo "look". Somem-se as duas traduções: o "look" do filósofo-cachorro. Não se trata do sofista-cachorro que vigia e conduz a manada ao curral. Trata-se do cínico-cachorro (perdão pelo pleonasmo) que, pelo latido, debocha do espírito de rebanho. No estrondo da manada, ele pode vir a ser pisoteado pelos animais ou esfolado vivo pelos guardiões do rebanho.
Que lhes parece se suspendêssemos a leitura das passagens onde Lebrun analisa -de mãos dadas com Leibniz, Aristóteles, Platão, Hegel e Nietzsche- "o conceito de paixão"?
Se parássemos à entrada dos estóicos para acolher os filósofos plebeus que os antecedem -os cínicos. Dos estóicos dirá Lebrun, descartando o indefinido "on": "Toda paixão, desde o seu despertar, já infringe a lei que me constitui como um ser razoável; todas as paixões, na sua origem, já me conduzem "para fora de mim mesmo'". Fora de si mesmo, o estóico continua "um ator experiente que permanece sempre distante das peripécias do drama que representa"?
Ou, à imagem do cínico, se adaptaria às circunstâncias? Observa o já citado Deleule que a metáfora do ator está nos textos cínicos: ele se adapta às circunstâncias como um ator se adapta aos diferentes papéis que interpreta. O estudioso dos gregos nos lembra, a seguir, que esse tema vem atado ao do exílio, uma constante na vida e na reflexão dos cínicos. Leiamos a meia palavra do pensador: "Na vida há sempre um momento em que cabe apenas a mim não contrair maus hábitos. Posteriormente, é tarde demais: é como se eu tivesse lançado uma pedra que não posso mais recuperar". Escutemo-la ao mesmo tempo em que terminamos por esta inscrição tomada às telas, "A Traição das Imagens", do pintor Magritte: "Isto não é uma resenha".


SILVIANO SANTIAGO é crítico literário, autor de "Ora (Direis) Puxar Conversa!" (ed. UFMG).

A FILOSOFIA E SUA HISTÓRIA
Autor:
Gérard Lebrun Org. e prefácio: Carlos Alberto Ribeiro de Moura
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 79 (608 págs.)


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