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O pensador nômade
"A Filosofia e Sua História"
reúne textos do
francês Gérard Lebrun,
que formou várias gerações
de intelectuais na USP
SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O professor sabia
que, para ensinar,
era preciso atuar
na sala de aula. À
semelhança da irmã nos palcos parisienses, era
ator. Os alunos percebiam o jogo teatral na atividade docente.
O prefaciador de "A Filosofia
e Sua História" sabe que há de
se referir primeiro ao professor
Gérard Lebrun e só depois ao
filósofo e autor do livro. O comediante, como diz Sartre em
citação do professor, "não é outra coisa que suas palavras e
seus gestos".
Os alunos batiam palmas por
terem tido acesso a uma dupla
intimidade. Acesso à docência
da filosofia e ao pensamento filosófico. Faltou-lhes a intimidade com a experiência de vida? Meia palavra não lhes teria
sido suficiente?
Foucault, Deleuze
Por que filósofo? pergunta
Lebrun no pórtico da coletânea
de ensaios e, como bom ator,
encarna a resposta escrita por
outro. Segundo David Hume, o
filósofo "sempre permanece,
junto de toda a humanidade, na
ofensiva e não possui qualquer
estação fixa, nenhuma residência, que estivesse obrigado a defender em todas as estações!".
Ratifica o autor do prefácio.
Ressoam nos ouvidos idéias de
Foucault e Deleuze: o filósofo é
o espírito livre nietzschiano.
Acrescenta que o filósofo
nunca deixa de variar as perspectivas, não se prende a convicções definitivas, faz do pensamento uma experimentação
continuada, prefere a vida de
auto-extravio do nômade ao repouso convicto do sectário.
Aproximar-se do múltiplo
Lebrun, ainda que em poucas
linhas, significa elevar à enésima potência o conceito de "desdobramento". Desdobramento
que se arma desde sempre na
infância, essa "fileira de armadilhas", que é "a origem traumatizante do que mais tarde
acreditamos ser nossa singularidade infinita". Ao assumir o
teatro como metáfora da docência, do texto filosófico e da
própria vida, Lebrun incorpora
ao infinito o desdobramento.
Não se encenava na sala de
aula uma ópera-bufa, já sabemos pelo prefaciador.
Comédia de costumes
Sugiro que nela se estivesse
encenando uma comédia de
costumes, bem ao estilo de Terêncio. Por exemplo, "O Carrasco de Si Mesmo", para retomar o título que foi dado a uma
delas por Charles Baudelaire.
Escreveu Terêncio: "Sou homem: não julgo alheio a mim
nada do que é humano".
Na cena final, num gestual
masoquista, o ator retira a máscara de professor e filósofo. E
cita uma vez mais Sartre: "A
gente se desfaz de uma neurose, mas não se cura de si próprio", para acrescentar pouco
depois: "A gente se cura menos
ainda de sua filosofia, quando
se é um grande pensador". A
máscara permanece quase imperceptível no pronome indefinido "on" (a gente).
Como no filme "Teorema",
de Pasolini, o público se escandaliza com a nudez do ator
francês no palco dos trópicos. A
nudez do ator corrói por fora
aulas e escritos.
A metáfora teatral passará a
recobrir Gérard Lebrun com os
múltiplos véus de que se valeu o
pintor Francis Bacon para fragmentar dramaturgicamente o
"portrait" do papa Inocêncio
10º, tal como pintado por Velásquez. Bacon laiciza o papa,
Lebrun humaniza o filósofo,
ambos em nítido gestual de
derrisão e arrogância aos valores do rebanho. Como em fatos
jornalísticos recentes, o privado é público. Leia-se o caso do
galã Hugh Grant e do cantor
pop George Michael.
Duplo exílio
Ficamos diante do filósofo
francês nômade, duplamente
exilado. E ao nômade duplamente exilado é que ouso repetir a pergunta inaugural: por
que filósofo?
Não há resposta. Há uma
aproximação -esta pelo viés
temerário de duas traduções. A
do título do romance "Quincas
Borba" para o inglês: "Philosopher or Dog?" (Filósofo ou Cachorro?). E a do conceito de "eidos" (aparência, natureza constitutiva) dos filósofos cínicos
tal como traduzido por Didier
Deleule. Este se valeu do anglicismo "look". Somem-se as
duas traduções: o "look" do filósofo-cachorro.
Não se trata do sofista-cachorro que vigia e conduz a manada ao curral. Trata-se do cínico-cachorro (perdão pelo
pleonasmo) que, pelo latido,
debocha do espírito de rebanho. No estrondo da manada,
ele pode vir a ser pisoteado pelos animais ou esfolado vivo pelos guardiões do rebanho.
Que lhes parece se suspendêssemos a leitura das passagens onde Lebrun analisa -de
mãos dadas com Leibniz, Aristóteles, Platão, Hegel e Nietzsche- "o conceito de paixão"?
Se parássemos à entrada dos
estóicos para acolher os filósofos plebeus que os antecedem
-os cínicos.
Dos estóicos dirá Lebrun,
descartando o indefinido "on":
"Toda paixão, desde o seu despertar, já infringe a lei que me
constitui como um ser razoável; todas as paixões, na sua origem, já me conduzem "para fora
de mim mesmo'". Fora de si
mesmo, o estóico continua "um
ator experiente que permanece
sempre distante das peripécias
do drama que representa"?
Ou, à imagem do cínico, se
adaptaria às circunstâncias?
Observa o já citado Deleule que
a metáfora do ator está nos textos cínicos: ele se adapta às circunstâncias como um ator se
adapta aos diferentes papéis
que interpreta. O estudioso dos
gregos nos lembra, a seguir, que
esse tema vem atado ao do exílio, uma constante na vida e na
reflexão dos cínicos.
Leiamos a meia palavra do
pensador: "Na vida há sempre
um momento em que cabe apenas a mim não contrair maus
hábitos. Posteriormente, é tarde demais: é como se eu tivesse
lançado uma pedra que não
posso mais recuperar". Escutemo-la ao mesmo tempo em que
terminamos por esta inscrição
tomada às telas, "A Traição das
Imagens", do pintor Magritte:
"Isto não é uma resenha".
SILVIANO SANTIAGO é crítico literário, autor
de "Ora (Direis) Puxar Conversa!" (ed. UFMG).
A FILOSOFIA E SUA HISTÓRIA
Autor: Gérard Lebrun
Org. e prefácio: Carlos Alberto
Ribeiro de Moura
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 79 (608 págs.)
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