São Paulo, domingo, 16 de setembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Filósofo rejeita dinâmica capitalista como a única possível e afirma ser preciso imaginar novas formas de relações entre os homens

Entre o intelectual e o profeta

Denis Rosenfield
especial para a Folha

"Política", de Roberto Mangabeira Unger, é um livro surpreendente, pois junta dois estilos num único pensamento: o do filósofo que pensa o seu tempo e o do profeta que vislumbra e propõe um projeto de transformação da sociedade. Filosoficamente, podemos dizer que o seu pensamento se articula em razão de dois conceitos centrais, o de artefato e o de imaginação, que remetem, respectivamente, a Thomas Hobbes (1588-1679) e a Cornelius Castoriadis (1922-1997). De Hobbes, o autor recupera a idéia de sociedade como um "artefato" (pág. 25), ou seja, todo agrupamento humano é fruto de uma combinação instituída, isto é, artificial, de regras e instituições que recortam os mais diferentes campos da vida humana. O poder político, as relações sociais, as diferentes formas de instituição jurídica e o mercado em seus distintos modos de existência são o resultado de um agenciamento contingente, produzido pela ação humana sob determinadas condições históricas. Não há, segundo ele, nenhum tipo de necessidade embutida na história que nos tenha conduzido à situação presente. A forma de existência da atual sociedade capitalista é nada mais do que o resultado ocasional de algo que se ofereceu à práxis humana a partir de um determinado entendimento que os homens então tiveram do que seriam ou deveriam ser as suas relações. Se a sociedade atual é artificial, se ela é o resultado de um "trabalho de colagem" (pág. 136), ela poderia ter sido -como pode ser hoje- diferentemente fabricada. Por que não colar diferentemente os seus elementos constitutivos ou mesmo inventar outros? Radicalização da sociedade como artefato
Adotando a idéia de uma radicalização da sociedade como artefato, Mangabeira Unger vai se insurgir igualmente contra toda idéia de naturalização das relações sociais e políticas, abrindo precisamente espaço para sua transformação. Essa idéia, bastante simples do ponto de vista da história da filosofia, não deixa, no entanto, de ter relevância atual, na medida em que vivemos numa época em que as atuais relações capitalistas foram, por assim dizer, "naturalizadas". Nossa sociedade tende a se apresentar, após a falência estrondosa do "socialismo real", como a única possível, como se a acomodação fosse a única saída. Ora, sendo a sociedade o fruto de uma "colagem", sendo um "artefato", coloca-se a questão daquele que "cola", do "artífice" dessa coisa feita. Não há, na sua visão, nenhuma estrutura profunda, nenhuma lógica escondida atrás de nossos atos, que conduza imperceptivelmente a ação de cada um de nós e a atuação da coletividade como um todo. Nesse sentido, Mangabeira Unger recusa uma oposição, aos seus olhos falsa, entre a lógica do marxismo e a do liberalismo econômico, pois ambos estariam fundados numa mesma concepção de uma estrutura que determinaria todo ato humano, seja a história com o seu partido redentor, seja o mercado como solução de todos os males. Isso equivale, portanto, a sustentar que a "história nunca deixa de ser política, seja nas formas maiores ou menores" (pág. 152). Fazer política, no entanto, significa romper com as representações que as sociedades têm de si, significa trazer as regras e instituições existentes ao seu modo de elaboração. Toda relação sociopolítica só se conserva pela crença que temos nos seus valores, pela adesão às suas formas de existência social, política, religiosa e cultural no sentido mais amplo do termo. Uma sociedade se solda por suas idéias, crenças e representações. No momento em que estas vacilam, surgem os períodos de sua transformação possível. O autor recupera aqui, como Richard Rorty já o assinalou, o conceito de imaginário de Cornelius Castoriadis. A compreensão de que idéias, símbolos e representações são fatores de identificação de uma sociedade consigo, elementos essenciais de sua conservação -ao contrário do que sustentava o marxismo ao insistir no papel estrutural das relações econômicas- permite precisamente colocar a questão de como podemos imaginar novas formas de relações entre os homens.

Duplo registro
Aqui, o filósofo Mangabeira Unger adota a voz do profeta. Hegel dizia que a tarefa da filosofia consistia em apreender o seu tempo no pensamento, não cabendo ao filósofo predizer nem programar o futuro, devendo ater-se ao presente. Marx, numa outra perspectiva, voltou-se para o futuro, fazendo inclusive o "manifesto" de uma sociedade por vir. O Marx visionário é uma outra face do Marx pensador do capitalismo de sua época. Mangabeira Unger, por sua vez, reata, nesse ponto, com a tradição marxista. O título de seu livro -"Política"- é revelador, pois deve ser lido num duplo registro: o de crítica do presente e o de profecia do futuro.
Hoje, no Brasil, não se pode dissociar o nome de Mangabeira Unger do de Ciro Gomes. O autor é muito conhecido nos círculos acadêmicos americanos e pouco conhecido nos círculos europeu e brasileiro. Sua entrada no país é principalmente política, na qualidade de conselheiro de um candidato a presidente da República. A sua política é, então, a de um virtual "conselheiro do príncipe". Poderíamos mesmo dizer que sua obra acadêmica como que pede a sua realização efetiva, o que significa ser adotada por um governante disposto a aplicá-la.
As coisas tornam-se, assim, complicadas, pois "Política" é um livro que revela um grande conhecimento dos temas tratados, uma imaginação tão intensa que, às vezes, parece fugir do controle do autor e um forte componente voluntarista ou, mesmo, bonapartista. É como se o autor estivesse procurando um homem providencial, um homem capaz de se relacionar criativamente e diretamente com o conjunto dos cidadãos, sem necessariamente seguir os caminhos da representação política. E isso porque a própria democracia representativa, nos moldes existentes, pode ser também um entrave ao trabalho reformador, uma espécie de colchão que amortece, retarda ou mesmo impede a eclosão das ações "transformadoras de contexto".
A democracia representativa é recente e, inclusive, frágil em nosso país. Desde o processo de democratização, no final do governo militar e depois deste, temos observado um processo constante, pleno de sinuosidades, senão de retrocessos, na afirmação das instituições representativas. Grandes problemas sociais não encontraram ainda solução e vários partidos políticos também jogam no quanto pior, melhor, como se a democracia fosse um meio entre outros, e não um fim em si mesmo. Da mesma maneira, os problemas éticos, que cada vez mais se manifestam na vida política, mostram o enorme caminho a ser percorrido.
Estas curtas observações sobre a vida brasileira atual têm o propósito de contextualizar um livro como o de Mangabeira Unger. Com efeito, o autor preconiza discussões que perpassam os diferentes estratos da vida humana, de modo que estas suscitem e desenvolvam um "impulso visionário" que sustente o seu programa (pág. 294). Ou ainda, "as propostas institucionais têm de ser apresentadas em termos que sejam suficientemente modestos e concretos para dar espaço para ligação com os debates e preocupações atuais. Mas também têm de ter um alcance suficientemente longo para exercer uma atração visionária" (pág. 294). Uma sociedade que encontra dificuldades em afirmar-se interna e externamente pode ser um terreno fértil tanto para propostas visionárias quanto para propostas concretas que reinventem soluções para a situação atual. O problema, no entanto, reside em que as fronteiras entre ambas, em "Política", são tênues.
O autor, no final de seu livro, apregoa, inclusive, uma revolução cultural (pág. 383), uma mudança de mentalidades, como condição da transformação social. Inventar uma nova sociedade exige o abandono de nossos hábitos e costumes, exige uma reapropriação da política propriamente dita, para além do seu sentido restritivo de vida partidária.
Fica, porém, a pergunta: será que o impulso do profeta não é mais forte do que o do filósofo?


Denis Lerrer Rosenfield é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, editor da revista "Filosofia Política" e autor de, entre outros livros, "Política e Liberdade em Hegel".


Texto Anterior: Richard Rorty: Rorty sobre Unger
Próximo Texto: + teatro - Boris Schnaiderman: Cena da peça "Vassah, a Dama de Ferro"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.