São Paulo, domingo, 16 de setembro de 2007

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O olhar muçulmano

No até então perdido "Deleite do Estrangeiro em Tudo o Que É Espantoso e Maravilhoso", o imã Al-Baghdádi narra suas experiências no país e se contrapõe ao eurocentrismo

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

Entre viagens ao Oriente Médio e à Europa e discussões com pesquisadores, o diretor do Centro de Estudos Árabes da USP Paulo Daniel Farah conseguiu devolver à luz um documento raro sobre a história do Brasil: o relato sobre os costumes locais escrito por um imã que, vindo num navio do Império Otomano, decidiu aqui permanecer.
Em 1865, após um desvio de rota imposto por tempestades, aportou no Rio de Janeiro o imã Abdurrahman bin Abdullah al-Baghdádi ad-Dimachqi.
Quando ficou sabendo que o país abrigava milhares de muçulmanos -escravos ou libertos-, o religioso foi investigar a situação dessas populações de origem africana. Os reiterados pedidos de instrução no islã o teriam convencido a ficar.
Em "Deleite do Estrangeiro em Tudo o que É Espantoso e Maravilhoso", (Biblioteca América do Sul-Países Árabes, 476 págs., ainda sem distribuição comercial), Al-Baghdádi descreve minuciosamente práticas religiosas, sociais e culturais das regiões por que passou [leia texto abaixo].
Em entrevista concedida à Folha, Farah conta como chegou ao manuscrito, depois de três anos de busca. Para o responsável pela edição trilíngüe do texto (em árabe, português e espanhol), esse documento, além de representar o único olhar muçulmano para o Brasil do século 19 de que se tem registro, mostra como a cultura árabe podia ser mais esclarecida do que a européia ao tratar de povos estrangeiros.



FOLHA - Como como conseguiu o manuscrito do imã Al-Baghdádi?
PAULO DANIEL FARAH -
Trabalho com manuscritos há anos. Coleciono obras raras, especialmente as de fora do espaço da eurofonia -em árabe, turco otomano, persa, em línguas africanas grafadas em árabe.
No caso desse manuscrito em particular, foi uma longa trajetória. Durante uma viagem de pesquisa à Turquia, vi uma referência ao autor e sua passagem por "um país sul-americano". Já interessado por ele, tive depois a grata surpresa de que fosse o Brasil.
Do século 19, é o único registro conhecido de um olhar árabe muçulmano sobre o Brasil.

FOLHA - Quanto tempo levou para obter o documento?
FARAH -
Três anos. Pesquisei bastante em bibliotecas da Turquia, Síria e do Iraque, que eram a região de vivência de Al-Baghdádi. Ele nasceu em Bagdá, mas cresceu em Damasco, no contexto do Império Otomano, centrado em Istambul.
Passei a conversar com colegas acadêmicos. Uma dificuldade foi a de que a maioria dos pesquisadores turcos não lê árabe -o idioma turco deixou de ser escrito em árabe, pois a escrita turca foi latinizada no início do século 20.
Encontrei uma referência com um colega da Turquia. Indicava uma biblioteca de Istambul. Finalmente, soube que a Biblioteca de Berlim tinha adquirido o manuscrito.

FOLHA - Não há referência na historiografia brasileira ao manuscrito ou à permanência desse religioso?
FARAH -
Não. É uma fonte nova, esse manuscrito ficou perdido. Acredita-se que ele deve abrir todo um novo campo de pesquisa. O texto não é útil só para o estudo dos muçulmanos. Os estudos da escravidão e da religião em geral, por exemplo, também se beneficiam.

FOLHA - Ao tratar do índio e do negro, ele era mais esclarecido do que os luso-brasileiros do tempo?
FARAH -
Sem dúvida nenhuma, principalmente no caso dos africanos muçulmanos escravizados. São pessoas que lideraram vários movimentos de libertação de escravos no país.
O olhar que ele tem é aquele sobre uma comunidade muçulmana -num país distante, de maioria cristã, mas sem conferir à etnia um papel central.
É uma grande diferença. Retrata a repressão a que foram submetidos esses muçulmanos, a coibição da prática religiosa, com um olhar muito distinto do europeu. O texto valoriza os elementos africano e indígena na formação da identidade brasileira e trata a multiplicidade sem gradações.

FOLHA - Como interpreta a parcialidade do narrador?
FARAH -
É um narrador como outro qualquer. Como imã, ele é representante de uma visão ortodoxa, para dizer o mínimo.
Sua vertente da religião não é africana, por isso ele condena parte da comunidade por consumir bebida alcoólica, por exemplo, e condena outras práticas próprias da prática muçulmana africana, como os amuletos, os quadrados mágicos de proteção.
Ele as descreve condenando, mas com muito detalhamento.

FOLHA - Nesse sentido, seu etnocentrismo é comparável ao dos naturalistas europeus, que condenam as práticas "selvagens" com que se deparam?
FARAH -
Não, é muito diferente da crítica européia. Sua comparação não é baseada em uma superioridade. Ele reconhece uma situação em que são aceitas práticas diferentes e vê como missão defender a vertente que ele entende como melhor. Sua reação é distinta daqueles que se viam como representantes de uma categoria superior.

FOLHA - Esse bagdali pode ser descrito como "pensador diplomático"?
FARAH -
Ele segue o "hadith" [um dos dizeres] de Maomé que diz: "O islã começou como um estrangeiro e irá voltar como começou, um estrangeiro. Abençoados sejam os estrangeiros". Ele procurou fazer uma mediação entre o islã que ele defendia e a realidade cultural africana e brasileira.
Outra grande novidade desse documento é tratar da relação entre o Império Otomano e o império brasileiro.

FOLHA - Saad Eskander, diretor da Biblioteca Nacional do Iraque, disse ao Mais! (de 19/8) que não lhe ocorria um texto iraquiano que fosse uma boa influência para acabar com a guerra -preferiu indicar o indiano Gandhi. Os iraquianos não são herdeiros dessa tradição esclarecida que deu origem a um personagem como Al-Baghdádi?
FARAH -
A sociedade iraquiana é conhecida no mundo árabe pelo apreço pela leitura. E quando há cultura, normalmente há propensão à tolerância. Apesar dos contextos históricos que levaram a dificuldades como ditadura e ocupação, eles integram uma sociedade que tem uma tradição de tolerância muito forte, de respeito ao estrangeiro. Al-Baghdádi é representante dessa tradição.


Mais informações sobre o livro podem obtidas no site www.bibliaspa.com.br



NA INTERNET - Leia a íntegra da entrevista e outros trechos de "Deleite do Estrangeiro em Tudo o Que É Espantoso e Maravilhoso" no site www.folha.com.br/072564

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