São Paulo, domingo, 16 de setembro de 2007

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História

Floresta encantada

"O Rio da Dúvida" narra a viagem pela Amazônia realizada pelo coronel Rondon e o ex-presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, em 1914

Reprodução
O presidente dos EUA Theodore Roosevelt aponta para mapa; abaixo, índios nhambiquaras


COLUNISTA DA FOLHA

De certa maneira, é surpreendente que a expedição Roosevelt-Rondon, em 1913, tenha terminado tão bem, com apenas três mortos. Da vaidade ianque à inutilidade estratégica, a viagem tinha tudo para terminar em desastre não só logístico mas diplomático.
Só não sucumbiram um ex-presidente e o futuro marechal porque foram salvos do rio que "puseram no mapa" e dos índios de suas margens pelos outros homens que lá viviam, bravos seringueiros.
É essa história maluca que a jornalista americana Candice Millard narra com profusão de detalhes nas 395 páginas de "O Rio da Dúvida - A Sombria Viagem de Theodore Roosevelt e Rondon pela Amazônia" (Cia. das Letras, trad. José Geraldo Couto, 416 págs., R$ 53).
Primeiro livro da autora, que carrega bagagem de anos como editora na lendária "National Geographic", exibe a cada página a minuciosa pesquisa que lhe dá suporte. Como a história é muito, muito boa, um bom levantamento já é meio caminho andado, se não mais. Vale a leitura, com lucro.

Fuga do ostracismo
O popular herói de guerra "Teddy" Roosevelt (1858-1919), depois de governar os Estados Unidos por dois mandatos, de 1901 a 1909, abandonou o leito seguro do Partido Republicano e concorreu a um novo mandato em 1912, pelo Progressista.
Perdeu. Aos 54 anos, planejou escapar do ostracismo como um dos últimos exploradores de uma virada de século que já produzira Scott, Shackleton e Amundsen. Problema: quase não sobravam mais territórios incógnitos e inóspitos.
A não ser, claro, pela mãe de todas as selvas, no coração da América do Sul.
Quando um amigo e padre jesuíta propuseram a Roosevelt uma viagem tão mirabolante quanto mal planejada ao subcontinente, o ex-presidente embarcou de cabeça. O roteiro fluvial inicialmente previsto, mais turístico que exploratório, foi abandonado em favor de outro mais interessante -e arriscado: percorrer e mapear um rio desconhecido.
A idéia imprudente partiu do ministro das Relações Exteriores do Brasil na época, Lauro Müller. Ele teve, porém, o cuidado de incluir no convite um guia experimentado, o franzino coronel Cândido Maria da Silva Rondon, positivista que já havia percorrido mais de 22 mil km de floresta na tarefa de estender uma linha de telégrafo pelo interior do país.

Rota para o fracasso
Em suas lendárias andanças pelo mato, Rondon havia topado com as cabeceiras de um rio que não se sabia aonde ia dar. Batizou-o, por isso, como rio da Dúvida. Não sem alguma relutância, aceitou depois a missão de pajear o ex-presidente na tarefa de fazer seu levantamento.
A narrativa de Millard emprega várias páginas para mostrar como quase tudo na expedição, do equipamento às provisões e à escolha das equipes, parecia escolhido a dedo para conduzir a tropa em rota segura para o fracasso.
O forte da história, no entanto, está na reconstituição das agruras por que passaram os expedicionários, da penosa travessia do cerrado, por terra, à enervante sucessão de cachoeiras e corredeiras que enfrentaram nos 1.600 km do rio da Dúvida, obrigando-os a varações em que as pesadas canoas eram arrastadas sobre roletes.
Na expedição que não progredia, Roosevelt e o filho Kermit estiveram à beira da morte, por doença, afogamento ou inanição. Não terminaram numa cova rasa em solo amazônico porque os índios cintas-largas, que os espreitavam, enigmaticamente desistiram de atacar.
Millard atribui o fato a uma divisão de opiniões entre os índios da época, que reconstituiu com base em entrevistas com cintas-largas de hoje, quase um século depois, numa das passagens da obra que soam menos verossímeis.
Há outros trechos problemáticos no livro, como afirmações contraditórias sobre a (in)fertilidade do solo amazônico, a implicância da autora com as "primitivas" canoas de um tronco só do Brasil e explicações capengas sobre a origem da biodiversidade amazônica. Nada, porém, que prejudique a fruição pelo não-especialista.
Teddy e Kermit saíram combalidos da aventura amazônica, com marcas que nunca se apagaram. Rondon, nem tanto. Alguns dos momentos mais belos saltam da torrente de experiências partilhadas para a rede de seus escritos e memórias.
É o caso da descoberta da nobreza e da força recônditas nos "camaradas" brasileiros, como narra Rondon: "Dizem que os brasileiros são indolentes!", disse-lhe Roosevelt um dia. "Bem, meu caro coronel, um país que dispõem de homens como estes tem um grande futuro diante de si, e certamente levará a cabo as maiores realizações do mundo."
Hoje ninguém mais se importa com o rio Roosevelt, a não ser talvez pescadores aficionados. Mais que emoções, a aventura canhestra que o pôs no mapa traz muitas lições -a começar pela constatação de que, na selva, estatura e humildade constituem grandezas no mínimo relativas. (MARCELO LEITE)

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