São Paulo, domingo, 16 de setembro de 2007

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Livros

Guerra verde

"O Ecologismo dos Pobres" analisa o crescente embate pelas reservas ambientais entre o 1º e o 3º mundos

JOSÉ AUGUSTO PÁDUA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos anos 70, quando a questão ecológica começou a motivar o surgimento de organizações e mobilizações sociais de alto perfil público, ganhando um espaço importante na mídia, vários analistas interpretaram o fenômeno como sendo resultado de uma agenda aquisitiva cada vez mais sofisticada.
A teoria de Abraham Maslow sobre a existência de uma "hierarquia das necessidades" foi bastante utilizada naquele contexto. Segundo Maslow, os seres humanos buscavam satisfazer suas necessidades com base em uma escala que vai do mais ao menos material. Ou seja, primeiro se cuida de encher a barriga e bem mais tarde, se for possível, pode-se pensar em objetivos como sentir prazer estético e auto-realização.
Para o cientista político Ronald Inglehart, cuja teorização marcou época, o ecologismo da época era cultivado fundamentalmente por jovens que cresceram no contexto das ricas sociedades ocidentais do pós-guerra.
A superação das carências materiais básicas abria espaço para o aparecimento de demandas "pós-materiais" por um ambiente com menos barulho, poluição e feiúra. Os pobres precisavam se ocupar com a busca por comida, emprego e moradia.
As inquietações com a qualidade de vida, para não falar em valores universais como a sobrevivência da humanidade e a conservação da biodiversidade, eram privilégio dos mais ricos.
Nas últimas décadas, porém, uma série de dinâmicas sociais concretas ajudou a demolir o componente mecanicista e, em grande parte, preconceituoso dessa leitura.
O quadro tornou-se mais complexo quando, em paralelo com o ecologismo de classe média, mas com ele interagindo de diversas maneiras, observou-se o surgimento de um vibrante ecologismo popular.
Nas mais diferentes latitudes, em contextos rurais ou urbanos, comunidades pobres começaram a envolver-se em intensos conflitos socioambientais, produzindo sua própria interpretação da questão ecológica.
Na geografia desses conflitos, aliás, o Brasil tem sido um espaço de grande relevância.
O movimento dos seringueiros acreanos contra a destruição florestal, liderado nos anos 1980 por Chico Mendes, se tornou um ícone internacional no aparecimento dessa corrente, juntamente com o movimento de mulheres camponesas em defesa das florestas do Himalaia indiano, que recebeu o nome de Chipko (abraço).

Esforço de síntese
De lá para cá, os exemplos não pararam de se multiplicar, como no caso das lutas de pescadores pobres das regiões tropicais, inclusive no Nordeste, contra a destruição de manguezais pelas empresas de criação de camarões.
Ou no caso dos inúmeros embates nas zonas industriais das grandes cidades contra a contaminação do espaço vivido por emissões industriais ou depósitos de lixo tóxico.
"O Ecologismo dos Pobres", do economista Joan Martinez Alier, professor da Universidade Autônoma de Barcelona, vem causando bastante impacto por representar uma das primeiras tentativas de fôlego no sentido de realizar um inventário global do fenômeno e refletir sobre o seu significado. Poucos autores estariam tão preparados como Alier para empreender esse esforço inicial de síntese.
Em primeiro lugar, por sua sólida e erudita formação como cientista social, estimulada pela ira democrática do antifranquismo catalão e lapidada no ambiente investigativo e multicultural do Saint Antony's College, da Universidade de Oxford [Reino Unido].
Em segundo lugar, pela disposição para colocar os pés na lama das favelas e no húmus das florestas, buscando observar diretamente os "conflitos ecológicos distributivos" que ocorrem nos mais diversos países e regiões.
Uma observação sempre participante e solidária, demonstrando que a boa produção de conhecimento não requer uma atitude de cinismo e indiferença diante dos sofrimentos e esperanças dos seres humanos.

Conflitos e iniciativas
"O Ecologismo dos Pobres" alterna capítulos mais teóricos e mais empíricos, sempre buscando uma ponte entre as duas dimensões. Um dos pontos altos do trabalho está no vasto repertório de conflitos e iniciativas que ele analisa, do nível local ao global.
O livro nos faz conhecer a mobilização de comunidades e organizações populares diante dos impactos produzidos, entre outros fatores, pela mineração a céu aberto, pela extração de petróleo, pela construção de represas (inclusive no Brasil, onde há um forte Movimento dos Atingidos por Barragens) ou pela transposição de rios (como no caso do São Francisco).
Um item recorrente são os conflitos pelo uso da água para fins empresariais ou para consumo das populações.
Um capítulo inteiro é dedicado ao megaconflito entre os países ricos e pobres pelo uso do espaço ambiental planetário, já que os primeiros, no exemplo mais notório, vêm se apropriando de uma parcela desproporcional da atmosfera para a emissão dos seus gases, gerando uma dívida ecológica com o restante da humanidade, que sofre as conseqüências da mudança climática.
Para Alier, o ecologismo dos pobres produz uma terceira opção diante das duas grandes correntes que, de maneira muito geral, organizam a cultura ecologista contemporânea: o culto à vida silvestre (que vê a natureza -ou, pelo menos, suas paisagens mais exuberantes- como um valor intrínseco a ser preservado da ação humana) e a ecoeficiência (que vê a natureza como um conjunto de recursos a serem utilizados por meio de tecnologias mais cuidadosas e sustentáveis).
A terceira opção constrói uma ecologia das condições cotidianas de vida, vendo o ambiente como espaço de afirmação de direitos e de luta pela "justiça ambiental".
Basta fazer um pequeno esforço de observação geográfica para notar que as fábricas mais poluentes, os depósitos de lixo mais perigoso e o barulho das motosserras não costumam estar presentes na proximidade de onde vivem os ricos.

Politização
O autor ironiza o uso da idéia de pós-material quando as sociedades e economias se imbricam cada vez mais nos gigantescos fluxos de matéria e energia mobilizados pela civilização urbano-industrial.
O que está ocorrendo, de fato, é uma crescente politização do mundo material, em que o ambiente natural/social se torna lugar de embate entre diferentes visões culturais, critérios de valoração, modelos tecnológicos, objetivos socioeconômicos etc. Ao defender a qualidade ambiental como um direito social coletivo, o ecologismo dos pobres amplia os horizontes da democracia, criando barreiras à apropriação autoritária do território e à degradação do espaço comum para favorecer poderosos interesses privados.

JOSÉ AUGUSTO PÁDUA é pesquisador visitante na Universidade de Oxford e professor do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro.



O ECOLOGISMO DOS POBRES
Autor: Joan Martinez Alier
Tradução: Maurício Waldman
Editora: Contexto
(tel. 0/xx/11/ 3832-5838)
Quanto: R$ 53 (384 págs.)


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