São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2008

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Ponto de Fuga

Paraíso e pecado



Sem martíni, sem Bond girl, sem glamour, 007 deixou de ser o espião playboy; seu nobre heroísmo tem paralelo na história do cinema: o justiceiro do western spaghetti


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Para os americanos, há um tema fundamental, uma verdadeira obsessão: a idéia de partir para o estrangeiro muda a vida completamente. A Europa nos fascina; a nós, os americanos, ela nos parece mágica, misteriosa e, é claro, romântica. Minhas heroínas descobrem ali seu potencial erótico, assim como sentimentos poderosos, violentos." Woody Allen, nesta declaração sobre seu filme "Vicky Cristina Barcelona", toca num tema que a literatura norte-americana sublinhou, do "Fauno de Mármore", de Hawthorne, a "The American" [O Americano], de Henry James, a "A Era da Inocência", de Edith Wharton, ou "Le Divorce", de Diane Johnson. Cândidos e castos cidadãos dos Estados Unidos contaminam-se com a atmosfera erótica e deletéria que respiram no Velho Mundo.
Há uma diferença, porém. Os romances carregam algo de mórbido. "Vicky Cristina Barcelona", ao contrário, é feito de leveza, graças à ironia delicada. A trama se precipita: mal termina uma situação imprevista e outra, ainda mais desconcertante, já se desencadeia. O tom local pouco tem de verdadeiro, tudo são clichês: monumentos de Gaudí; "latin lover" irresistível; vida boêmia dos meios artísticos. Não interessa. O que conta é a fábula narrada pelo diretor, no estilo mais inteligente e sensível, com o qual retoma seus temas favoritos: o acaso e a inconstância nas relações humanas.

007
"Quantum of Solace", de Marc Forster, tem ares de conto filosófico. Negócios internacionais que resultam de estratégias criminosas em grande escala desestabilizam governos (não é indiferente que o pivô da história esteja na Bolívia), insensíveis ao padecimento das populações pobres e à devastação ecológica do planeta. Há um pacto entre as hipócritas autoridades internacionais para deixar as coisas seguirem seu curso, sem bulir nos vespeiros.
Essa exposição pouco otimista do mundo lembra o "Cândido" de Voltaire. Mas é conduzida por um personagem enérgico, com românticas cicatrizes na alma. Bond, marcado pela perda de amadas e amigos, assume a integridade de suas missões. Levar tudo às últimas conseqüências é a única e verdadeira razão para riscos e sacrifícios. Sem martíni, sem Bond girl, sem glamour, ele deixou de ser o espião playboy. Seu nobre heroísmo encontra paralelos na história do cinema: o justiceiro dos western spaghetti, que Clint Eastwood levou ao apogeu, age de modo semelhante. As cenas de perseguição ligam-se pouco à trama, nem sempre se sabe, ou com freqüência se esquece, quem persegue e por quê; não importa, elas são magistrais.

Vissi d'arte
O excelente "Quantum of Solace" é bem sofisticado. A seqüência do festival de Bregenz, que apresenta óperas num teatro flutuante sobre o lago de Constança, é a de um Hitchcock no século 21. O filme entra ali em sintonia com uma formidável montagem para a "Tosca", de Puccini, dominada por uma imensa íris azul: quem conhece essa ópera sabe o que representam nela os "occhi azzurri".

Jacaré
Andamento do barco sobre o rio, deriva calma da câmera, música ondulando com as águas. Paisagem saturada pelo ocre alaranjado. "Morte Súbita", filme de Greg Mclean, tem marca pessoal, bela e forte. Turistas, calor, moscas, passeio de barco, um crocodilo gigantesco e enraivecido. Tudo se termina numa furna: o filme atinge os terrores mais primitivos e os modos míticos de são Jorge contra o dragão salvando a princesa, de Perseu e Andrômeda, de Rogério e Angélica.

jorgecoli@uol.com.br


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