São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2008

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A arte mal-nascida

Em "Moderno?", Jacques Aumont investiga o estatuto do cinema desde seu surgimento, no século 19

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Já em seu título, este pequeno livro de Jacques Aumont ("Moderno? -Por Que o Cinema Se Tornou a Mais Singular das Artes") abriga uma interrogação angustiante, espécie de variação daquela outra: o que é o cinema? Seu interesse vem, em parte, dessa interrogação, já que o cinema surge no fim do século 19 como atividade intrinsecamente moderna: a luz, o movimento, a mecânica, a percepção do provisório do mundo estão, por assim dizer, em sua natureza.
Mas não será o cinema, ao mesmo tempo, uma arte mal-nascida, mero registro mecânico da realidade, sem valor estético, invenção sem futuro -para retomar o que disseram os próprios irmãos Lumière? Ou seja, na concepção clássica da própria história do cinema, enquanto outras artes viviam o apogeu do modernismo, no começo do século 20, o cinema vivia sua infância, sua "era primitiva" e, depois do experimentalismo da década de 20, encontraria finalmente um chão "clássico" com o surgimento do sonoro, no fim dos anos 1920.
Se havia encontrado sólida resistência do mundo artístico em sua era muda, devido à natureza "bastarda" (isto é, de mero reprodutor de realidade), os próprios adeptos haveriam de condenar essa submissão, no período sonoro.
A crer nessa evolução, no mais, o cinema chegaria à sua modernidade entre 1940 e 1945, com Rossellini na Europa (libertando-se do roteiro, dos estúdios, da técnica) e Welles nos EUA (impondo o autor ao estúdio, criando relações som/ imagem não meramente miméticas).
Seja na teoria concebida ainda no cinema mudo (com Rudolf Arnheim em "A Arte do Cinema", por exemplo), seja na do pós-guerra (com exceção de André Bazin), existe um aspecto defensivo quase permanente: o cinema precisa se justificar, demonstrar sua pertinência estética, provar que não está em atraso em relação às demais artes. É esse trajeto que o autor refaz. Em linhas gerais, Aumont discute o moderno até chegar ao seu ponto de esgotamento, o contemporâneo, em que o cinema se mostraria capaz de encarnar "a virtude contemporânea" por seu caráter múltiplo: arte do tempo, do espaço, das imagens em movimento, da narrativa, mas também arte de massa, de tecnologia.
Nessa medida, o cinema que chega ao século 21 "já não é o cinema: é um conjunto de idéias, de forças, de potências, de propriedades, de mitos, de histórias, [conjunto] que obviamente atravessa os filmes produzidos pela indústria ao longo de um século, mas que atravessa também (...) todo o século, até fora dos filmes". Arte, enfim, que segue como tal no ano 2000, ora apoiando-se em sua natureza realista, ora inspirando-se em outras artes, ou, ainda, fundindo-se com elas.
No entanto (e aqui vemos em Aumont um legítimo herdeiro do pensamento dos "Cahiers du Cinéma" da chamada "fase amarela"), ao comparar, ao final de seu trajeto, o destino do cinema com o de outras artes, e sustentar como que o triunfo do "eterno contemporâneo" cinematográfico, diante de uma música dividida entre a moda e a herança das elites, ou à pintura, onde as exposições de público de massa esgotaram-se em meados do século 20: "Essa, aliás, talvez só seja outra maneira de fazer a mesma observação: o cinema não muda, posso ver na mesma noite um Ford ou um Hitchcock e um John Woo ou um Kiarostami. Terei menos o sentimento de ter viajado no tempo do que nos estilos."
O que distingue o cinema das outras artes, conclui Aumont, é que o cinema permanece hoje igual a si mesmo. Ao longo do século 20, as artes plásticas, a música, a dança afastaram-se "do público de amadores para só se dirigir a conhecedores sérios. Outras práticas simbólicas tomaram o lugar delas na difusão de massa (...), sem contar a televisão, que substitui tudo".
O cinema, ao contrário, continuaria estruturado sobre uma divisão que data dos anos 20, entre cinema de arte (ou de autor ou de ensaio) e cinema comercial (ou de massa ou industrial). Desde então, sustenta Aumont, eles se mostram inconciliáveis. Desde então, continua a existir, ao menos, a hipótese de aproximá-los.


MODERNO?
Autor: Jacques Aumont
Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro
Editora: Papirus (tel. 0/ xx/19/3272-4500)
Quanto: R$ 29,90 (96 págs.)



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