São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2007

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Na companhia de dom João

Opiniões opostas sobre a vinda da família real ao Brasil, que faz cem anos em 2008, revelam a complexidade desse evento

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

A chamada transmigração da família real para o Brasil, que completa 200 anos em 2008, dará lugar às costumeiras historinhas, como a voracidade de dom João 6º ou a "maldade" da imperatriz Carlota Joaquina.
Porém poderá também propiciar uma controvérsia historiográfica importante, em torno não só do episódio como das raízes da Independência e seu significado.
Deixando de lado outras interpretações menos significativas, há duas visões básicas e em confronto acerca daquele período, que abrangem temas vitais: a construção do Estado brasileiro, a unidade do país, a formação da identidade nacional. Ambas destacam a importância da vinda da família real para o Brasil, mas com sinais trocados.
Comecemos pela primeira versão -a mais tradicional, a mais assentada-, que tem como expressão ilustre o historiador José Murilo de Carvalho, curiosamente, um dos principais renovadores da nossa historiografia.
Os pontos de vista de José Murilo estão até certo ponto expressos na entrevista publicada no Mais! [de 25/11].
Diz ele que, se dom João 6º, naquela altura príncipe regente, tivesse decidido ficar em Portugal, o Brasil com certeza não existiria -a colônia se fragmentaria, como ocorreu com a América ibérica.
Ao contrário, em resultado das circunstâncias e da ação humana, num processo que só se consolidaria em meados do século 19, com o fim da Revolução Praieira (Pernambuco, 1848), a vinda de dom João 6º e da família real foi uma condição necessária para que se forjasse a unidade da antiga colônia portuguesa e se instituísse a monarquia.
Na entrevista, não fosse um bom mineiro, José Murilo diz que desse processo resultou o Brasil de hoje; se para bem ou para mal, é Guimarães Rosa quem decide: "Pãos ou pães, questão de opiniães". Mas quem leu seus importantes trabalhos sabe que ele vê com bons olhos os anos em que "a colônia virou metrópole".
Mais ainda, o entusiasmo de José Murilo pela figura de dom Pedro 2º, manifestado claramente na biografia que escreveu sobre o monarca ("Dom Pedro 2º", Companhia das Letras), contrastando-a com os barões conservadores do Império, leva-o a valorizar o Segundo Reinado na comparação com a República, nascida com a mácula da intervenção militar.

Visão negativa
A segunda versão do período tem como principal figura outro historiador de primeira linha, o pernambucano Evaldo Cabral de Mello. Presente no mesmo número do Mais!, Evaldo bate de frente com as comemorações pela vinda da família real para o Brasil.
Em seus livros ("A Outra Independência", ed. 34, "A Ferida de Narciso - Ensaio de História Regional", Senac-SP), Cabral de Mello lança dúvidas sobre os postulados da unidade do país e da construção da identidade nacional, pela via de um projeto extremamente conservador.
Ele tem uma visão francamente negativa da presença de dom João 6º no Rio de Janeiro, afirmando que o Rio se transformou, em seu tempo, numa cidade portuguesa, enquanto uma corte parasitária explorou as Províncias, como aliás iria ocorrer também ao longo do Império.
O ponto de vista de Cabral de Mello tem antigas raízes regionais, como se vê com o exemplo do republicano Afonso de Albuquerque Melo, que publicou no Recife, em 1864, "A Liberdade no Brasil - Seu Nascimento, Vida, Morte e Sepultura". Em "A Ferida de Narciso", ele cita vários trechos demolidores desse trabalho.
É curioso como, num período de estabilidade do Segundo Reinado, investe contra a "fatalidade" lastimável da vinda da corte para o Brasil, lamentando que fosse ela "hoje bendita", a ponto de agradecer à providência divina que nos dera assim "uma monarquia, um povo feliz e não sei que mais", poupando-nos à sorte das vizinhas repúblicas espanholas.
Cabral de Mello acentua que a Independência do Brasil, na forma como se deu, foi um projeto da burocracia da corte e das elites econômicas do centro-sul.
Entre outras coisas -diz ele-, a Independência implicou a sufocação dos movimentos regionais, em especial os do Nordeste, cujas bandeiras eram, com gradações e variações, o republicanismo, a extinção da escravatura, a implantação de um regime federativo e a autonomia provincial, sem ignorar a composição heterogênea desses movimentos. Entre outros exemplos, cita o caso da Revolução Praieira, que agregou senhores de engenho e a plebe urbana, com reivindicações díspares.

Razões
Quem tem razão? -perguntaria o leitor, insatisfeito com a saída pela porta das "opiniães". Seria irresponsável, da minha parte, enveredar em poucas linhas por uma apreciação que merece um ensaio. Com essa ressalva, creio que ambas as interpretações têm virtudes e problemas.
Exemplificando, há boas razões para acreditar que a fragmentação da colônia levaria a um quadro de guerras e de caos que, comparativamente, atrasou a formação da Argentina moderna, antes de aquele país empreender um crescimento extraordinário.
Ao mesmo tempo, não é possível visualizar o Segundo Reinado pelas lentes de dom Pedro 2º. A erudição, o espírito liberal, as maneiras simples do imperador não servem para ocultar o atraso de um país de analfabetos, clientelista, manchado por um sistema escravista encravado na sociedade.


BORIS FAUSTO , historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outros, "A Revolução de 30" (Cia. das Letras).


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