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Na companhia de dom João
Opiniões opostas sobre a vinda da família real ao Brasil, que faz cem anos em 2008, revelam a complexidade desse evento
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
A chamada transmigração da família
real para o Brasil,
que completa 200
anos em 2008, dará
lugar às costumeiras historinhas, como a voracidade de
dom João 6º ou a "maldade" da
imperatriz Carlota Joaquina.
Porém poderá também propiciar uma controvérsia historiográfica importante, em torno não só do episódio como das raízes da Independência e seu
significado.
Deixando de lado outras interpretações menos significativas, há duas visões básicas e em
confronto acerca daquele período, que abrangem temas vitais: a construção do Estado
brasileiro, a unidade do país, a
formação da identidade nacional. Ambas destacam a importância da vinda da família real
para o Brasil, mas com sinais
trocados.
Comecemos pela primeira
versão -a mais tradicional, a
mais assentada-, que tem como expressão ilustre o historiador José Murilo de Carvalho, curiosamente, um dos principais renovadores da nossa historiografia.
Os pontos de vista de José
Murilo estão até certo ponto
expressos na entrevista publicada no Mais! [de 25/11].
Diz ele que, se dom João 6º,
naquela altura príncipe regente, tivesse decidido ficar em
Portugal, o Brasil com certeza
não existiria -a colônia se fragmentaria, como ocorreu com a
América ibérica.
Ao contrário, em resultado
das circunstâncias e da ação
humana, num processo que só
se consolidaria em meados do
século 19, com o fim da Revolução Praieira (Pernambuco,
1848), a vinda de dom João 6º e
da família real foi uma condição necessária para que se forjasse a unidade da antiga colônia portuguesa e se instituísse
a monarquia.
Na entrevista, não fosse um
bom mineiro, José Murilo diz
que desse processo resultou o
Brasil de hoje; se para bem ou
para mal, é Guimarães Rosa
quem decide: "Pãos ou pães,
questão de opiniães". Mas
quem leu seus importantes trabalhos sabe que ele vê com
bons olhos os anos em que "a
colônia virou metrópole".
Mais ainda, o entusiasmo de
José Murilo pela figura de dom
Pedro 2º, manifestado claramente na biografia que escreveu sobre o monarca ("Dom
Pedro 2º", Companhia das Letras), contrastando-a com os
barões conservadores do Império, leva-o a valorizar o Segundo Reinado na comparação
com a República, nascida com a
mácula da intervenção militar.
Visão negativa
A segunda versão do período
tem como principal figura outro historiador de primeira linha, o pernambucano Evaldo
Cabral de Mello. Presente no
mesmo número do Mais!,
Evaldo bate de frente com as
comemorações pela vinda da
família real para o Brasil.
Em seus livros ("A Outra Independência", ed. 34, "A Ferida
de Narciso - Ensaio de História
Regional", Senac-SP), Cabral
de Mello lança dúvidas sobre os
postulados da unidade do país
e da construção da identidade
nacional, pela via de um projeto extremamente conservador.
Ele tem uma visão francamente negativa da presença de
dom João 6º no Rio de Janeiro,
afirmando que o Rio se transformou, em seu tempo, numa
cidade portuguesa, enquanto
uma corte parasitária explorou
as Províncias, como aliás iria
ocorrer também ao longo do
Império.
O ponto de vista de Cabral de
Mello tem antigas raízes regionais, como se vê com o exemplo do republicano Afonso de
Albuquerque Melo, que publicou no Recife, em 1864, "A Liberdade no Brasil - Seu Nascimento, Vida, Morte e Sepultura". Em "A Ferida de Narciso",
ele cita vários trechos demolidores desse trabalho.
É curioso como, num período de estabilidade do Segundo
Reinado, investe contra a "fatalidade" lastimável da vinda da
corte para o Brasil, lamentando
que fosse ela "hoje bendita", a
ponto de agradecer à providência divina que nos dera assim
"uma monarquia, um povo feliz e não sei que mais", poupando-nos à sorte das vizinhas repúblicas espanholas.
Cabral de Mello acentua que
a Independência do Brasil, na
forma como se deu, foi um projeto da burocracia da corte e
das elites econômicas do centro-sul.
Entre outras coisas -diz
ele-, a Independência implicou a sufocação dos movimentos regionais, em especial os do
Nordeste, cujas bandeiras
eram, com gradações e variações, o republicanismo, a extinção da escravatura, a implantação de um regime federativo e a
autonomia provincial, sem ignorar a composição heterogênea desses movimentos.
Entre outros exemplos, cita
o caso da Revolução Praieira,
que agregou senhores de engenho e a plebe urbana, com reivindicações díspares.
Razões
Quem tem razão? -perguntaria o leitor, insatisfeito com a
saída pela porta das "opiniães".
Seria irresponsável, da minha
parte, enveredar em poucas linhas por uma apreciação que
merece um ensaio. Com essa
ressalva, creio que ambas as interpretações têm virtudes e
problemas.
Exemplificando, há boas razões para acreditar que a fragmentação da colônia levaria a
um quadro de guerras e de caos
que, comparativamente, atrasou a formação da Argentina
moderna, antes de aquele país
empreender um crescimento
extraordinário.
Ao mesmo tempo, não é possível visualizar o Segundo Reinado pelas lentes de dom Pedro
2º. A erudição, o espírito liberal, as maneiras simples do imperador não servem para ocultar o atraso de um país de analfabetos, clientelista, manchado
por um sistema escravista encravado na sociedade.
BORIS FAUSTO , historiador, é presidente do
Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre
outros, "A Revolução de 30" (Cia. das Letras).
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