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Sob o céu de Amsterdã
A Holanda é cenário para autobiografia
e ensaio que discutem os limites
da tolerância na sociedade ocidental
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
Caíram-me na mão
dois livros que me fizeram refletir, e com
muita preocupação,
sobre os limites da
tolerância no mundo contemporâneo. O primeiro é "Infiel"
escrito por Ayaan Hirsi Ali, que
acaba de sair; o segundo é
"Murder in Amsterdam - The
Death of Theo van Gogh and
the Limits of Tolerance", de
Ian Buruma [Assassinato em
Amsterdã - A Morte de Theo
van Gogh e os Limites da Tolerância, Penguin Press].
Estrategicamente, o livro de
Hirsi Ali começa referindo-se
ao assassinato de Theo van
Gogh, morto pelo marroquino,
de nacionalidade holandesa,
Muhammad Bouyeri. Este, depois de ter atirado em Van
Gogh e o degolado ritualmente,
deixa cravada no corpo morto
uma carta a ela endereçada.
Justifica seu ato: ambos tinham insultado Alá, ela escrevendo o roteiro, ele filmando o
curta-metragem intitulado
"Submission, Part 1". O filme
mostra uma seqüência de mulheres humilhadas, tendo inscritas em seus corpos frases do
Alcorão, mas que, ao invés de
se submeterem, erguem o rosto
num ato de desafio.
"Infiel" é um livro direto.
Conta a história de uma mulher decidida que, paulatinamente, rompe com o islã e se
transforma num ícone da libertação feminina, cuja prática,
porém, coloca em questão a tolerância enraizada na sociedade holandesa desde o século 17.
A primeira parte trata da infância da escritora: seu nascimento na Somália, de como é
obrigada a passar longos períodos no Quênia e na Arábia Saudita, mudando-se ao sabor das
vicissitudes políticas desses
países. Traça um retrato muito
vivo das mazelas provocadas
pela dominação impiedosa dos
clãs e de Estados totalitários.
A segunda parte desafia a
própria estrutura da convivência ocidental.
Hirsi Ali, em vez de ir para o
Canadá ao encontro do marido
arranjado por seu pai, aproveita a oportunidade de estar na
Alemanha arrumando os papéis de imigração para pedir
asilo à Holanda e se livrar da
dominação familiar.
Ao absorver os valores do
Ocidente, transforma-se numa
ativista que, em defesa da integridade e dos direitos da mulher muçulmana, aos poucos se
desencanta com a social-democracia e, para chegar ao Parlamento, se inscreve num partido de direita.
Convivência
Em dez anos, de uma emigrante pobre se transforma numa ativista política que, ao lutar pelos direitos dos emigrantes em geral, termina descobrindo como estes configuram
núcleos impermeáveis ao Estado holandês. Nessa batalha ela
se ocidentaliza, progressivamente se afasta do islã e passa a
ter consciência da importância
de um país ter passado pelas
críticas do iluminismo.
Não é depois de Voltaire e de
Sade, por exemplo, que se torna
possível a convivência de grupos cujas crenças mais profundas são negadas por outros?
Mas Hirsi Ali, além de perder
sua religião, passa a denunciá-la com palavras muito duras,
criticando tanto o modo de
convivência islâmica como certas condutas do profeta. Não é
apenas infiel mas ainda iconoclasta, cujos crimes, segundo a
sharia (direito muçulmano acima do Estado nacional), devem
ser punidos com a morte.
No fundo, Hirsi Ali me parece colocar uma questão fundamental: uma fé religiosa não
traz um conteúdo de violência?
Seleciona textos do Alcorão
que explicitamente condenam
à morte o infiel. Mas o islã seria,
como ela acredita, mais violento do que o judaísmo e o cristianismo? É possível encontrar na
Bíblia passagens em que judeus
mataram infiéis porque não
acreditavam no Deus de Israel.
E o amor cristão não impediu
a guerra contra os hereges nem
as fogueiras da Inquisição. Não
me convencem os argumentos,
inclusive aqueles do papa Bento 16, tentando mostrar que o
islã é mais violento do que outras religiões.
Cabe levar em consideração
o contexto histórico e como os
princípios religiosos são interpretados para regular práticas
cotidianas e políticas.
Os textos sagrados são ambíguos, servindo tanto para justificar a paz como a guerra, tudo
dependendo de como os fiéis se
organizam em instituições
mais ou menos permeáveis a
uma alteridade radical.
Parece-me que cada religião
já traz um fundo de violência,
na medida em que a verdade de
uma é incompatível com a verdade de outra.
O autêntico ecumenismo não
necessita admitir que o outro
crente, a despeito de formular
suas crenças em termos diferentes, passa por uma autêntica experiência religiosa? A fé
não é então mais importante do
que suas formulações?
Mas isso implica reconhecer
que a palavra divina não descreve nenhum estado de coisa,
apenas orienta aqueles que necessitam regrar suas vidas tendo no horizonte princípios
transcendentes.
No entanto não cabe menosprezar a importância do aspecto político do livro de Hirsi Ali,
que descreve uma situação-limite que ameaça toda a Europa. Os princípios dos Estados
nacionais são sistematicamente contestados por uma população imigrada, que continua
submissa a uma forma religiosa
de legalidade acima dos princípios desenhados pelo Estado de
direito.
É nesse ponto que o livro de
Ian Buruma se torna imprescindível para compreender
uma situação em que a alteridade se torna radical.
Choque multicultural
Como outros países da Europa, a Holanda recebeu enorme
quantidade de imigrantes muçulmanos que não admitem a
separação entre a igreja e o Estado. Do ponto de vista do Estado holandês, eles são holandeses, possuem o direito de ter fé
e praticá-la como bem lhes
aprouver, desde que não ultrapassem os limites da liberdade
alheia. Mas esse princípio multiculturalista se choca com práticas de uma população que não
admite a livre expressão de
qualquer crítica à santidade
dos dogmas islâmicos.
Buñuel pode fazer Cristo sair
de um prostíbulo. Muitos cristãos são profundamente ofendidos por essas imagens, mas,
vivendo sob a proteção do Estado nacional assegurando para
todos um espaço público neutro, não imaginam que devam
se vingar da afronta sofrida.
Os fundamentalistas, porém,
não admitem práticas ofensivas a suas crenças. Se a imagem
de Nossa Senhora vem a ser denegrida, isso pode desencadear
os protestos mais violentos.
Mas, se uma professora deixa
seus alunos batizarem um boneco com o nome de Maomé,
ela merece ser morta segundo a
sharia. A convivência não se
torna assim impossível? Até
quando somos capazes de tolerar uma prática religiosa alheia
cujos princípios nos condenam
não mais ao inferno, mas à
morte na terra?
Para assegurar a neutralidade do espaço público, o Estado
não passa então a ter o direito
de se precaver contra as crenças que o negam? Mas isso não
ameaça os direitos de cada um?
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e coordenador da área de filosofia do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.
INFIEL
Autora: Ayaan Hirsi Ali
Tradução: Luiz Antônio de Araújo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 49 (512 págs.)
MURDER IN AMSTERDAM
Autor: Ian Buruma
Editora: Penguin
Quanto: US$ 24,95, R$ 44 (288 págs.)
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inglês podem ser encomendados pelo site www.amazon.com
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