São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2007

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Sob o céu de Amsterdã

A Holanda é cenário para autobiografia e ensaio que discutem os limites da tolerância na sociedade ocidental

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

Caíram-me na mão dois livros que me fizeram refletir, e com muita preocupação, sobre os limites da tolerância no mundo contemporâneo. O primeiro é "Infiel" escrito por Ayaan Hirsi Ali, que acaba de sair; o segundo é "Murder in Amsterdam - The Death of Theo van Gogh and the Limits of Tolerance", de Ian Buruma [Assassinato em Amsterdã - A Morte de Theo van Gogh e os Limites da Tolerância, Penguin Press].
Estrategicamente, o livro de Hirsi Ali começa referindo-se ao assassinato de Theo van Gogh, morto pelo marroquino, de nacionalidade holandesa, Muhammad Bouyeri. Este, depois de ter atirado em Van Gogh e o degolado ritualmente, deixa cravada no corpo morto uma carta a ela endereçada.
Justifica seu ato: ambos tinham insultado Alá, ela escrevendo o roteiro, ele filmando o curta-metragem intitulado "Submission, Part 1". O filme mostra uma seqüência de mulheres humilhadas, tendo inscritas em seus corpos frases do Alcorão, mas que, ao invés de se submeterem, erguem o rosto num ato de desafio. "Infiel" é um livro direto. Conta a história de uma mulher decidida que, paulatinamente, rompe com o islã e se transforma num ícone da libertação feminina, cuja prática, porém, coloca em questão a tolerância enraizada na sociedade holandesa desde o século 17.
A primeira parte trata da infância da escritora: seu nascimento na Somália, de como é obrigada a passar longos períodos no Quênia e na Arábia Saudita, mudando-se ao sabor das vicissitudes políticas desses países. Traça um retrato muito vivo das mazelas provocadas pela dominação impiedosa dos clãs e de Estados totalitários.
A segunda parte desafia a própria estrutura da convivência ocidental. Hirsi Ali, em vez de ir para o Canadá ao encontro do marido arranjado por seu pai, aproveita a oportunidade de estar na Alemanha arrumando os papéis de imigração para pedir asilo à Holanda e se livrar da dominação familiar.
Ao absorver os valores do Ocidente, transforma-se numa ativista que, em defesa da integridade e dos direitos da mulher muçulmana, aos poucos se desencanta com a social-democracia e, para chegar ao Parlamento, se inscreve num partido de direita.

Convivência
Em dez anos, de uma emigrante pobre se transforma numa ativista política que, ao lutar pelos direitos dos emigrantes em geral, termina descobrindo como estes configuram núcleos impermeáveis ao Estado holandês. Nessa batalha ela se ocidentaliza, progressivamente se afasta do islã e passa a ter consciência da importância de um país ter passado pelas críticas do iluminismo. Não é depois de Voltaire e de Sade, por exemplo, que se torna possível a convivência de grupos cujas crenças mais profundas são negadas por outros?
Mas Hirsi Ali, além de perder sua religião, passa a denunciá-la com palavras muito duras, criticando tanto o modo de convivência islâmica como certas condutas do profeta. Não é apenas infiel mas ainda iconoclasta, cujos crimes, segundo a sharia (direito muçulmano acima do Estado nacional), devem ser punidos com a morte. No fundo, Hirsi Ali me parece colocar uma questão fundamental: uma fé religiosa não traz um conteúdo de violência?
Seleciona textos do Alcorão que explicitamente condenam à morte o infiel. Mas o islã seria, como ela acredita, mais violento do que o judaísmo e o cristianismo? É possível encontrar na Bíblia passagens em que judeus mataram infiéis porque não acreditavam no Deus de Israel.
E o amor cristão não impediu a guerra contra os hereges nem as fogueiras da Inquisição. Não me convencem os argumentos, inclusive aqueles do papa Bento 16, tentando mostrar que o islã é mais violento do que outras religiões.
Cabe levar em consideração o contexto histórico e como os princípios religiosos são interpretados para regular práticas cotidianas e políticas.
Os textos sagrados são ambíguos, servindo tanto para justificar a paz como a guerra, tudo dependendo de como os fiéis se organizam em instituições mais ou menos permeáveis a uma alteridade radical.
Parece-me que cada religião já traz um fundo de violência, na medida em que a verdade de uma é incompatível com a verdade de outra.
O autêntico ecumenismo não necessita admitir que o outro crente, a despeito de formular suas crenças em termos diferentes, passa por uma autêntica experiência religiosa? A fé não é então mais importante do que suas formulações?
Mas isso implica reconhecer que a palavra divina não descreve nenhum estado de coisa, apenas orienta aqueles que necessitam regrar suas vidas tendo no horizonte princípios transcendentes.
No entanto não cabe menosprezar a importância do aspecto político do livro de Hirsi Ali, que descreve uma situação-limite que ameaça toda a Europa. Os princípios dos Estados nacionais são sistematicamente contestados por uma população imigrada, que continua submissa a uma forma religiosa de legalidade acima dos princípios desenhados pelo Estado de direito.
É nesse ponto que o livro de Ian Buruma se torna imprescindível para compreender uma situação em que a alteridade se torna radical.

Choque multicultural
Como outros países da Europa, a Holanda recebeu enorme quantidade de imigrantes muçulmanos que não admitem a separação entre a igreja e o Estado. Do ponto de vista do Estado holandês, eles são holandeses, possuem o direito de ter fé e praticá-la como bem lhes aprouver, desde que não ultrapassem os limites da liberdade alheia. Mas esse princípio multiculturalista se choca com práticas de uma população que não admite a livre expressão de qualquer crítica à santidade dos dogmas islâmicos.
Buñuel pode fazer Cristo sair de um prostíbulo. Muitos cristãos são profundamente ofendidos por essas imagens, mas, vivendo sob a proteção do Estado nacional assegurando para todos um espaço público neutro, não imaginam que devam se vingar da afronta sofrida.
Os fundamentalistas, porém, não admitem práticas ofensivas a suas crenças. Se a imagem de Nossa Senhora vem a ser denegrida, isso pode desencadear os protestos mais violentos.
Mas, se uma professora deixa seus alunos batizarem um boneco com o nome de Maomé, ela merece ser morta segundo a sharia. A convivência não se torna assim impossível? Até quando somos capazes de tolerar uma prática religiosa alheia cujos princípios nos condenam não mais ao inferno, mas à morte na terra?
Para assegurar a neutralidade do espaço público, o Estado não passa então a ter o direito de se precaver contra as crenças que o negam? Mas isso não ameaça os direitos de cada um?


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.

INFIEL
Autora:
Ayaan Hirsi Ali
Tradução: Luiz Antônio de Araújo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 49 (512 págs.)

MURDER IN AMSTERDAM
Autor:
Ian Buruma
Editora: Penguin
Quanto: US$ 24,95, R$ 44 (288 págs.)

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