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Breve solidariedade
Comoção mundial provocada pelo terremoto
no Haiti, na terça, não irá se transformar
em programa político para tirar o país da miséria
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
Há comportamentos
humanos que nos
lavam a alma. Um
dos mais belos é a
solidariedade. Ficamos comovidos quando as
pessoas se mobilizam para ajudar o próximo, ou melhor, fazer
do outro um próximo, alguém
com o qual compartilhamos
nosso destino.
Quanto maior a tragédia,
quase sempre maior é a reação
solidária. O terremoto que destruiu o Haiti desde logo mobilizou todo mundo e ficamos orgulhosos de nossas tropas lá estacionadas. Esquecemo-nos de
que a missão tem um cunho
político e nos demoramos nos
elogios de sua bravura.
O retrato de cada perda foi
desenhado, cada soldado morto foi enaltecido e a grandeza
dos trabalhos da Pastoral da
Criança foi divulgada aos quatro ventos. Todos nos irmanamos num mesmo sentimento.
Alguns escritores mais politizados lembraram as mazelas
de uma nação que nasceu de
uma revolta de escravos, mas
que, talvez por isso mesmo, tenha sido neutralizada, coibida
no seu desenvolvimento, para
que não servisse de exemplo
para a América Latina.
No Brasil escravocrata, muitos temeram que uma maioria
de escravos pudesse, num golpe violento, se liberar de seus
ferros.
Mas no momento da grande
catástrofe natural tudo isso se
olvida. Vale a reafirmação de
nossa humanidade, de nossa
espiritualidade.
Não somos como as placas
tectônicas que se chocam sem
levar em conta os estragos na
vida daqueles que vivem sobre
elas. Não somos como os outros seres vivos que se entredevoram, com as raras exceções
daquelas espécies que entram
em simbiose ou daqueles animais que, pelo menos, caçam
conjuntamente.
Abrimo-nos para estarmos
juntos e nos abrimos para irmos além de nós mesmos, para
a transcendência.
Vingança da natureza
A presença da morte nos une
por laços que vão além daqueles já institucionalizados. Nem
sempre essa presença nos articula, em geral tratamos de esquecê-la, como se não passasse
de um acidente inesperado.
Se o homem é aquele ser que
fala e sabe que morre, também
aprendeu a dizer sem falar e a
morrer sem saber. A morte no
hospital quase sempre não se
transforma num incidente de
uma biografia que haveria de
durar para sempre?
Quando a natureza interrompe essas fronteiras pacificadoras -o terremoto, o tsunami, a erupção vulcânica e outros horrores-, é como se ela se
vingasse. É como se o lado negro do espírito acuasse seu lado
luminoso.
Nas guerras das estrelas, esse
conflito não comparece como
se desdobrasse duas forças, de
tal modo transformadas pela
técnica que se resolvem numa
luta entre o espírito do mal
contra o espírito do bem?
A noção de espírito anda
meio desmoralizada entre os filósofos profissionais. É quase
impossível depurá-la de seu
ranço romântico, da exaltação a
que foi submetida pelos idealistas alemães, como Hegel e
Schelling. Este, no início do século 19, teve enorme sucesso
pregando que a natureza, no
fundo, seguia os caminhos traçados pelo espírito.
Hegel o define como a ideia
efetiva que se sabe para si mesma. Um saber que junta o teórico e o prático e que, por isso
mesmo, pratica a verdade da
natureza, mostra que essa natureza é apenas a passagem de
uma verdade superior.
Crise ambiental
O terremoto de Lisboa, de
1755, foi sempre uma pedra no
sapato desses otimistas.
Igualmente, a crise ambiental em nosso século mostra os
limites físicos muito palpáveis
de um capital que se apresentou como espírito puro. Seja como for, há momentos na história em que as pessoas se tomam
como cidadãos de um mundo
do espírito, tecendo entre si
fortes laços de solidariedade.
Essa trama admirável, porém, dura pouco, a não ser que
se institucionalize como "Pastoral da Criança", "Comunidade Solidária" e tantos outros
institutos. No entanto cabe
perguntar: como uma instituição pode se manter solidária
quando só pode subsistir enfrentando a rotina e os percalços da burocratização?
Às vezes se costuma afirmar
que no maior perigo se encontra a salvação. Que não se faça
desse enunciado uma fórmula,
mas me parece que existe uma
atividade humana que entremeia o maior perigo com a semente da salvação. Não é ela a
política? Muito diferente, por
certo, da atividade cotidiana do
político, chata e repetitiva, que,
particularmente no Brasil, dificilmente escapa da corrupção.
Mas aquelas ações refundadoras do Estado, instauradoras
do novo e que, por isso mesmo,
escapam de qualquer análise
científica.
Nunca me canso de citar o
pensamento de Maquiavel afirmando que o estadista pode
perder sua alma para salvar o
Estado. Há momentos em que
alguns homens abrem o espaço
onde se tecem novas formas de
sociabilidade.
O marquês de Pombal reconstruindo Lisboa. Robespierre levando o terror ao limite e, assim, criando um paradigma da destruição da própria
política. Abraham Lincoln conferindo nova unidade aos EUA.
Até que ponto o nosso Getúlio Vargas não criou igualmente
um novo Estado brasileiro a
despeito dos desastres do Estado Novo?
A política, no seu limite, é
uma guerra das estrelas desdobrando-se nas fronteiras da
Terra. O desastre do Haiti nos
mostra a possibilidade de uma
solidariedade capaz de capturar toda a população da América Latina.
Rotina de pobreza
Mas não vejo nela muitas forças capazes de transformar essa solidariedade numa política.
Da mesma forma que estamos passando por uma grande
crise sem aproveitar as chances
de cortar certas raízes da desordem capitalista, tudo indica
que, depois da tempestade, o
Haiti voltará à sua rotina de miséria, como tantos outros povos
do globo.
E os políticos muito seguros
voltarão a se ocupar de suas almas -ou melhor, da alma de
suas finanças. Tristes tempos.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e pesquisador do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .
jagiannotti@uol.com.br
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