São Paulo, domingo, 17 de janeiro de 2010

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+(s)ociedade

Os anos loucos


Livro relaciona a ascensão do consumo de cocaína na década de 1920 ao caráter acelerado da vida moderna


THOMAS WIEDER

No jargão do jornalismo, o termo usado seria "requentado" -um assunto que retorna oportunamente à primeira página de um jornal quando não há assuntos quentes em debate. Depois da Primeira Guerra [1914-18], as drogas exerceram esse papel.
A imprensa francesa multiplicou suas reportagens sensacionalistas sobre o que era então descrito como "o perigo tóxico". "A "coca" semeia a loucura e a morte no mundo atual", era a inquietação expressa por "Le Petit Journal" em 1925. "É necessário agir rápido, porque, em caso de demora, o comércio de "neve" ganhará tanta força que, no próximo 14 de julho, pode ser que a cocaína seja usada pelas multidões em desfile para celebrar a queda da Bastilha", afirmava um artigo no jornal "Le Matin" três anos mais tarde.
A droga, observa a historiadora Emmanuelle Retaillaud-Bajac, se impôs como "tema banal na produção midiática e cultural dos anos 20". Curiosamente, no entanto, esse período vem sendo há muito negligenciado pelos pesquisadores, que preferiram se interessar pelo surgimento da figura do "drogado", no século 19, ou, posteriormente, pelas novas formas de toxicomania surgidas no final do século 20, simbolizadas pelo LSD, ecstasy ou o crack.
Dando continuidade ao trabalho de Jean-Jacques Yvorel ("Les Poisons de l'Esprit - Drogues et Drogués au XIXe Siècle", Os Venenos do Espírito -Drogas e Drogados do Século 19, de 1992), o instigante estudo de Emmanuelle Retaillaud-Bajac, que serviu como tema ao seu doutorado, vai muito além de preencher um vazio historiográfico.
Em "Les Paradis Perdus -Drogues et Usagers de Drogues dans la France de l'Entre-Deux-Guerres" [Os Paraísos Perdidos - Drogas e Usuários de Drogas na França do Entreguerras, Presses Universitaires de Rennes, 467 págs., 22, R$ 55], a pesquisadora aponta para a inflexão histórica que o período do entreguerras representa para a história dos estupefacientes.
Do ponto de vista legislativo, para começar. Ao traçar as origens da lei de 1916, o primeiro artigo judicial a penalizar o comércio, uso e posse de "substâncias venenosas" na França, a historiadora revela que os efeitos perversos de uma política fundada exclusivamente sobre o princípio da proibição haviam sido antecipados.

Declínio do ópio
"Não tenho ilusões sobre os resultados que a lei propiciará", declarou o senador Emile (não Félix, como ela escreveu) Goy, durante os debates que precederam a aprovação da lei. "Talvez consigamos reduzir o número de casas de ópio, porque elas se localizam em ambientes especiais (...); mas como isso influenciará os hábitos solitários do cocainômano, do morfinômano, que aplica suas injeções solitariamente?"
A visão do senador foi precisa. Não somente porque ele pressentiu que a proibição transferiria o consumo da droga à clandestinidade, com efeitos que incluiriam o tráfico clandestino, o surgimento do traficante, a elevação no volume de produtos adulterados e o surgimento de bairros dedicados ao comércio de drogas nas grandes cidades, mas porque ele também adivinhou uma das tendências dominantes do entreguerras: o declínio do ópio e a ascensão da cocaína.
Retaillaud-Bajac consagrou belas páginas a essa tendência. Ela demonstra, na prática, que aquilo que parecia ser uma simples mudança de moda estava conectado a evoluções mais profundas. Se houve um "ciclo da cocaína" nos anos 1920 (acompanhado, na década seguinte, por um "ciclo da heroína"), foi porque aquela substância, dita estimulante, se coadunava bem com o clima dos anos loucos. "A embriaguez fria e solitária que esse pó brilhante, tão fácil de absorver, propicia se enquadra bem ao caráter da vida moderna", afirmavam em 1924 o doutor Bergé e o jornalista Victor Cyril.
Se as práticas se tornaram mais clandestinas, o uso se tornou mais democrático (nos anos 1920, era comum ver operários misturados aos burgueses nos centros de desintoxicação); e os debates sobre como classificar os usuários (delinquentes ou doentes) também se tornou frequente. Ou seja, foi nos anos 1920, como demonstra a historiadora, e não nos 1960, que os "elementos constitutivos do universo contemporâneo das drogas" se estabeleceram. As mesmas drogas que a jornalista Marise Querlin, autora de uma vasta reportagem sobre o assunto publicada em 1929, já designava como "o mal do século".
A íntegra deste texto saiu no "Le Monde". Tradução de Paulo Migliacci .

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