São Paulo, domingo, 17 de fevereiro de 2008

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Ponto de fuga

O deserto sem nome


Em "Onde os Fracos Não Têm Vez", o tesouro é só um meio para demonstrar a perda de qualquer sentido; a morte é imprevisível, e o assas-sinato, o instrumento próprio à ferocidade do acaso


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O título em português evoca os velhos e magníficos bangue-bangues: "Onde os Fracos Não Têm Vez". Em inglês, é mais misterioso e mais poético, inspirado por um verso escrito por Yeats [1865-1939]: "No Country for Old Men" [Não É Lugar para Velhos, em "Velejando para Bizâncio"]. Trama clássica: alguém acha uma valise com milhões de dólares e passa a ser perseguido por bandidos. Parecida com "Um Plano Simples", de Sam Raimi (1998).
Nos dois casos, a ação carreia angústias que se situam muito além das peripécias. No filme de Raimi, o mal era imanente ao próprio dinheiro. O dos irmãos Coen traz outra coisa. Com eles, o tesouro é apenas um meio para demonstrar a perda de qualquer sentido. Tudo é circunstância, tudo é acaso. Javier Bardem, no papel do matador psicopata Anton Chigurh, é um demônio paradoxal: persegue seu objetivo com obsessão, demonstrando, ao mesmo tempo, o absurdo que consiste em existir. Como a morte é imprevisível, o assassinato se revela apenas como o instrumento próprio à ferocidade do acaso.
Numa aposta sobre a vida, a decisão arbitrária da moeda, cara ou coroa, encontra sua necessidade metafísica. O thriller da perseguição mútua, tensa, rigorosa, transcorre em paralelo e prepara para um grande duelo. Mas os irmãos Coen traem expectativas e convenções. No epílogo, o velho policial constata que viveu muito, mas nunca descobriu sinais, humanos ou divinos, capazes de revelar direções ou significados.

Paisagens
Em "Onde os Fracos Não Têm Vez", à banalidade dos motéis, trailers, lanchonetes, se associa a grandeza árida, pedregosa, do deserto. O rosto de Tommy Lee Jones marcado, enrugado, irregular, também é seco e enigmático: uma idade além do tempo.

Cachos
A crítica internacional celebra o maestro Gustavo Dudamel. Refere-se sempre à sua carreira fora do comum. Primeiro, sua juventude: Dudamel tem 27 anos, aos 17 começou a dirigir a Orquestra Jovem Simón Bolívar da Venezuela. Ele é fruto de um projeto social chamado El Sistema, implantado na Venezuela em 1975 e que tem sido apoiado pelos governos sucessivos daquele país até hoje.
Atinge atualmente 300 mil jovens, ajudando-os a sair da pobreza e mesmo do crime pela educação musical: o próprio Dudamel é de origem modesta. Convidado hoje a dirigir grandes formações internacionais, gravou o "Concerto para Orquestra", de Bartók, com a Filarmônica de Los Angeles.
Mas os resultados efetivos desse projeto social podem ser ouvido em dois CDs (todos os três foram editados pela Deutsche Grammophon), nos quais o jovem maestro rege a Orquestra Simón Bolívar. Escolheu obras arquiconsagradas, a "Sinfonia nº 5" de Mahler e as nº 5 e 7 de Beethoven.
A prova dos nove é impressionante. A altíssima qualidade dessa orquestra composta por jovens venezuelanos oferece formidáveis interpretações, enérgicas, brilhantes, cheias de fervor, que não empalidecem diante das mais ilustres e mais belas.

Pulmões
Sonoridades muito presentes, equilíbrio fino, inteligência do discurso musical: o grupo de sopros Opus Brasil Ensemble gravou um disco precioso (Brasil Meta Cultural, 2007). Reúne o "Trio para Oboé, Clarinete e Fagote", a "Fantasia Concertante para Piano, Clarinete e Fagote", de Villa-Lobos: são versões exemplares de composições delicadas e inspiradas. Traz ainda a felicidade aérea de Jean Françaix ("Divertimento para Oboé, Clarinete e Fagote") e a homenagem "Variações Villa-Lobos", do jovem compositor André Mehmari.

jorgecoli@uol.com.br


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