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Das relíquias à INTERNET
"A Idade Média Explicada aos Meus Filhos" e "O Corpo das Imagens" identificam nos valores e nas crenças medievais a origem da época atual
HILÁRIO FRANCO JR.
DA REDAÇÃO
A Idade Média Explicada aos Meus Filhos", de Jacques le
Goff, e "O Corpo da
Imagem", de Jean-Claude Schmitt, apresentam
concepções bem diferentes e,
ao mesmo tempo, pontos em
comum.
O primeiro livro, como seu
título indica, é dirigido aos jovens (ou àqueles que desejam
se iniciar no assunto); o segundo está voltado para um público já familiarizado com a cultura medieval.
Um faz um apanhado geral
da história européia na Idade
Média em pouco mais de uma
centena de páginas em formato
menor que o tradicional. Outro
trata da cultura visual daquela
época em quase 400 páginas
em formato maior.
Em razão dos diferentes objetos de estudo, um não precisa
recorrer a imagens, outro reproduz mais de 70 (embora
nem sempre de boa qualidade
visual na edição brasileira).
As dificuldades que os dois
estudiosos enfrentaram também foram inversas: no caso de
Le Goff, a abundância de dados
e de trabalhos a serem sintetizados; no de Schmitt, a relativa
carência, compreensível, de
um campo de estudo recente.
Mas ambos respondem com
sucesso aos desafios que se colocaram. O de Le Goff, explicar
em linguagem simples, mas
sem concessão ao rigor, um tema muito amplo, toda a Europa
Ocidental por mais de dez séculos nas suas mais variadas
expressões.
O de Schmitt, examinar em
profundidade alguns aspectos
do caráter e das funções das
imagens na Europa medieval.
Ambos, por caminhos bem
diversos, reafirmam a importância da Idade Média para a
civilização ocidental.
O Le Goff cidadão entusiasta
da Comunidade Européia leva
o Le Goff historiador a lembrar
seus interlocutores que "a Idade Média foi o período no qual
surgiu e foi construída a Europa", foi o período que legou a
esta "um movimento ao mesmo tempo de unidade e diversidade, que ainda pode servir de
inspiração".
Schmitt, de seu lado, mostra
que nossa atual "civilização da
imagem", apesar de tecnicamente mais sofisticada e diversificada (fotografia, cinema, televisão, internet), tem sua base
na valorização e amplo uso cultural da imagem na Europa
cristã medieval.
Se o primeiro empreendimento poderia parecer simples, seria apenas por desconhecimento do observador
quanto ao risco constante de se
cair em simplificações abusivas
e escolhas arbitrárias, armadilhas evitadas pelo grande especialista que é o autor.
Diálogos imaginários
Para enfrentar a tarefa, Le
Goff recorreu ao artifício (muito usado, aliás, pelos próprios
medievais) de estabelecer diálogo com jovens imaginários,
que lhe formulam questões e
fazem observações.
As 129 intervenções desses
interlocutores ao mesmo tempo dão ritmo ao texto e servem
de pretexto para o historiador
abordar diferentes aspectos da
vida na Europa medieval. Assim, em respostas de, em geral,
um curto parágrafo, ele sintetiza a cronologia e o sentido do
rótulo "Idade Média", descreve
a função social e o cotidiano dos
cavaleiros e dos castelos, dos
clérigos e das catedrais, dos
burgueses e das cidades, dos
camponeses e dos campos.
Também discute o papel do
papa, do imperador e dos reis
naquela sociedade, sem esquecer, contudo, de seus marginais
(pobres, doentes, hereges, judeus). Apresenta em linhas gerais as artes, as letras, o teatro e
o ensino, bem como a manifestação cultural de todos que
eram as festas.
Insiste, como não poderia
deixar de ser, no papel central
da devoção na vida daquela
época, repleta de anjos, demônios, santos, fadas e dragões.
Sentimento religioso enraizado
e vigoroso que dava unidade
profunda àquela Europa então
dividida em feudos, cidades autônomas, condados, ducados,
reinos, não poucas vezes em
conflito aberto entre si.
Se o segundo empreendimento poderia parecer excessivamente ousado, seria apenas
por desconhecimento das fecundas reflexões a respeito que
têm sido feitas nas duas últimas
décadas por vários historiadores, inclusive o autor.
Sendo, no entanto, ainda precoce qualquer tentativa de síntese, Schmitt reuniu em seu livro 11 ensaios independentes,
embora fortemente articulados
por uma mesma problemática
-a de pensar o lugar das imagens na cultura medieval e o da
cultura medieval nas imagens.
Essas imagens têm um "corpo", como diz o título do livro,
não somente pela sua própria
materialidade (pedra, metal,
tinta etc.), mas também por
corporificar pensamentos e
sentimentos da sociedade que
as produzia e consumia.
À semelhança de Deus
Dentre os ensaios, alguns são
mais teóricos, discutem a relação do historiador com as imagens e a formação do próprio
estatuto da imagem na cultura
ocidental. Outros estudam o
culto a certos tipos de imagens,
caso do crucifixo, do Volto Santo [objeto com imagem do rosto
de Cristo] e das relíquias.
Outros estão dedicados a formas imagéticas ainda mais impalpáveis, porém de grande importância social para aquela
época e de imenso interesse para o historiador: os sonhos, as
visões, os fantasmas.
O que cimenta esse conjunto
de estudos instigantes é a constatação de que a imago é o fundamento da antropologia cristã, é o centro da concepção de
homem feito "à imagem e semelhança de Deus".
Disso decorre que tudo na
cultura cristã -cujo modelo se
afinou e se consolidou justamente na Idade Média- é figurável, mesmo Deus.
Para os medievais, nota com
razão o autor, toda imagem era
de certa forma uma aparição,
uma materialização (nos moldes da Encarnação), uma percepção visível do invisível.
HILÁRIO FRANCO JÚNIOR é professor da pós-graduação em história social da USP.
A IDADE MÉDIA EXPLICADA
AOS MEUS FILHOS
Autor: Jacques Le Goff
Tradução: Hortencia Santos Lencastre
Editora: Agir (0/xx/21/3882-8200)
Quanto: R$ 24,90 (120 págs.)
O CORPO DAS IMAGENS
Autor: Jean-Claude Schmitt
Tradução: José Rivair Macedo
Editora: Edusc (0/xx/14/2107-7111)
Quanto: R$ 57 (382 págs.)
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