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+ teatro
Os obscuros recantos da família
"Os Solitários", peça dirigida por Felipe Hirsch em SP, une experimentalismo e
comédia de costumes para mergulhar nas anomalias da sociedade americana
Sílvia Fernandes
especial para a Folha
É uma ironia que "Os Solitários" seja o título de um espetáculo em
que convivem modos diferentes
de fazer teatro. É uma pena que a
incompatibilidade seja o resultado mais
visível dessa convivência. Pois a união de
Marieta Severo, Marco Nanini e a Sutil
Companhia de Teatro de Felipe Hirsch
num mesmo trabalho parecia, à primeira
vista, ocasião propícia para a contracena
de linhagens do teatro brasileiro que, há
muito, caminham paralelas.
Severo e Nanini são herdeiros de primeira linha de nossa tradição mais profícua, a da comédia, sempre associada aos
primeiros atores de companhia, com representantes do naipe de Procópio Ferreira, Jayme Costa, Alda Garrido e, mais
recentemente, Juca de Oliveira, Denise
Fraga e Ney Latorraca, parceiro de Nanini no longevo "Irma Vap", sucesso imbatível de público nos dez anos em cartaz.
Essa estirpe de comediantes encontrou
nos dois atores uma síntese e uma depuração. Eles fazem jus à herança como
protagonistas exemplares de uma versão
televisiva da comédia de costumes, "A
Grande Família", de autoria de Vianninha que, por sua vez, recebeu e adaptou
o legado dramatúrgico do pai, Oduvaldo
Vianna. Em "Os Solitários", ainda que
contrafeitos, ambos demonstram que é
possível aprimorar a tradição, aliando
graça e sutileza ao domínio do difícil ritmo do riso, sem desperdício de uma única situação. Alternando os papéis de
mãe, pai e filhos projetados pela estranha
dramaturgia de Nicky Silver, são inteligentes e talentosos. Vê-los é ter o privilégio de acompanhar a linha evolutiva do
teatro brasileiro.
Mas, feliz ou infelizmente, existe um
diretor e uma companhia com quem
contracenar. E Felipe Hirsch é o mais jovem representante da cena alternativa do
país, trabalhando em Curitiba com a
companhia Sutil desde 1993, quando estréia seu primeiro espetáculo profissional, "Baal Babilônia", criado em processo colaborativo semelhante ao dos grupos paulistas Teatro da Vertigem e Companhia do Latão.
Vem dessa época a parceria de Hirsch
com o ator Guilherme Weber, cultivada
em longos processos de estudo, pesquisa
e construção artesanal da cena. As primeiras produções da companhia já funcionam como ensaio para a proposta de
investigação de peças de memória, em
que o diretor usa experiências de fragmentação de tempo na condução meticulosa do ritmo do espetáculo, com recurso a técnicas cinematográficas e de
estranhamento na dramaturgia e na
atuação, além do emprego quase abusivo
da intertextualidade.
A dialética incessante de incorporação
de referências alheias talvez tenha alcançado seu ápice em "Estou Te Escrevendo
de um País Distante", releitura de Hamlet de 1997, que associa Hirsch, definitivamente, aos grandes criadores do teatro
brasileiro e internacional que usaram a
mesma matriz para falar de si e de seu
próprio tempo, relendo e transformando
Shakespeare a partir da ótica contemporânea, como Heiner Müller no "Hamletmáquina", Bob Wilson em seu monólogo "Hamlet", José Celso em "Ham-let" e
Gerald Thomas em "M.O.R.T.E.".
No caso de "Os Solitários", a intertextualidade é visível nas inúmeras citações
da trama improvável criada pelo dramaturgo americano Nicky Silver, ligado ao
"off Broadway" nova-iorquino do Vineyard Theatre, que se afina com o trabalho de Hirsch na união de dramaturgo,
diretor e companhia em longos processos de montagem e escritura. Nas peças
de Silver -"Pterodátilos" e "Homens
Gordos de Saia"- dois núcleos familiares são tratados de forma implausível,
sem perder de vez a máscara do verossímil, o que levou o crítico David Richards
a considerá-las um "absurdo clássico".
De fato, ao prodigalizar incestos, canibalismos, assassinatos e suicídios, os textos acabam criando alegorias das anomalias psíquicas da família americana,
denunciadas pela dramaturgia moderna
desde Eugene O'Neill (Hirsch criou "Juventude" a partir de "Ah! Wilderness")
até Terrence McNally, cuja peça "A Perfect Ganash" foi ponto de partida para o
espetáculo de Hirsch/Weber "Por um
Incêndio Romântico", de 1998.
A denúncia desses cantos familiares
obscuros, camuflados pelos sofás de grife, é potencializada na linha interpretativa inédita, dissonante, de Guilherme
Weber, Erika Migon e Wagner Moura,
que fazem contraponto involuntário a
Nanini e Marieta ao exibirem os resultados de uma bem-sucedida pesquisa coletiva. O trabalho naturalista, mas distanciado, com estranhamentos feitos de pequenas tomadas corporais, com pausas e
gestos sincopados no desenho postural
de uma geração influenciada pelo teatro
físico e por Denise Stoklos, encontra correspondência exata nos achados mais
impactantes da pesquisa de Hirsch, que
repete no espetáculo suas marcas registradas: estão lá as projeções de imagem-movimento, semelhantes às de Robert
Lepage, apresentadas ao público paulista
em "A Vida É Cheia de Som e Fúria", e a
trilha sonora eclética, que costura citações como em "Nostalgia".
Não por acaso Daniela Thomas é a autora da luminosa concepção espacial feita de telas maquinadas, "véus de memória" muito semelhantes aos que criou para os primeiros espetáculos de Thomas.
Como sempre, consegue sintetizar o que
"Os Solitários" é. Numa das cenas do segundo ato, trabalha em dois planos, associando um assombroso dinossauro a
uma sala de visitas de linha Bauhaus. O
gabinete da comédia de costumes é, assim, atualizado e justaposto à ousadia da
cena experimental, lembrando que cada
época sonha com seus sucessores.
Onde
"Os Solitários" está em cartaz no teatro Alfa (r.
Bento Branco de Andrade Filho, 722, SP, tel. 0/xx/
11/ 5693-4000), sala A. Sex. e sáb.: 21h. Dom.:
18h. Ingr.: de R$ 25 a R$ 50. Até 28/4.
Sílvia Fernandes é professora de história do teatro na Escola de Comunicações e Artes da USP e
autora de "Grupos Teatrais Anos 70" (ed. Unicamp) e "Memória e Invenção" (Perspectiva).
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