São Paulo, domingo, 17 de março de 2002

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Em "Memórias Perdidas", Chet Baker, morto em 1988, traça perfis de músicos como Charlie Parker e Stan Getz e descreve a busca desesperada por drogas

A queda do anjo torto do jazz

Francisco Alambert
especial para a Folha

Não é impossível descrever o som de Chet Baker, cantando ou tocando. Mas explicar?", escreveu certa vez Arthur Nestrovski comentando o mistério que envolve a compreensão desse grande músico. A mesma indagação me veio à mente quando li suas notas autobiográficas, no Brasil intituladas "Memórias Perdidas". Pois agora é inevitável comparar seu texto com sua música. Seria um exagero dizer que Chet Baker constrói suas frases do mesmo modo como estrutura as frases de seus solos de trompete. Mas não é disparatado observar que o tom de sua prosa memorialística se aproxima da candura melancólica, a um só tempo sentimental e distanciada, de seu canto -o mesmo canto que parece só existir para flertar com a trágica compreensão de uma vida interior misteriosa. O caos permanente, as sutis ambiguidades de uma vida deprimente e de um músico genial, é narrado por uma voz em tom menor, sem vibrato, como quando Chet Baker canta. No belo documentário sobre sua vida, feito pelo fotógrafo Bruce Weber, há um trecho de um filme italiano de que Chet participou em que uma jovem, após ouvi-lo cantar, diz a alguém: "Não parece um anjo?". Pois essas memórias são a narrativa da queda desse anjo, ou a demonstração discreta e paradoxal da matéria de que ele era feito. Seus temas principais são a vida no Exército, a sucessão de mulheres sempre bem-amadas, os constantes deslocamentos pelo mundo, a paixão por carros e, sobretudo, a narrativa do vício e das agruras do viciado em busca de drogas, receitas, internações, o trato terrível com a polícia e as autoridades de diversos países, de diversas prisões. Neste livro incompleto, de memórias fragmentadas e seletivas, soa a música que só Chet Baker soube produzir, mas o jazz aparece pouco. Ainda assim, podem-se encontrar perfis e definições sutis de grandes músicos, como o sempre "fissurado" Stan Getz, a difícil relação com o não menos "junkie" Gerry Mulligan (com quem Chet formou um lendário quinteto), o venerado Charlie Parker (que, curiosamente, aparece tentando salvar Chet do vício das drogas) ou o impacto do surgimento de "Birth of the Cool", o revolucionário disco de Miles Davis. Também é interessante notar como várias vezes ele se refere a sua dificuldade de ler música, sem explicar o que isso teria ou não a ver com a formação de seu estilo. Ainda que policiais e médicos de sanatórios sejam constantemente questionados em suas ações, não se procuram bandidos ou inocentes. Ele nunca se apresenta como vítima. Sobretudo no que diz respeito às drogas. As memórias não encadeiam fatos nem buscam conexões e explicações. A narrativa do viciado surge após sua temporada no Exército, mas a isso não se pode relacionar mais nada. Toda a parte inicial, onde Chet narra sua infância e vida em família, é marcada pela alegria, pela vida tranquila de garoto californiano, com pais presentes, tios amados. Não há apologia à droga, mas frequentemente ela é apresentada como prazer puro, consolação para algo que nunca sabemos exatamente o que seja: "Andy foi também a primeira pessoa a me apresentar à maconha, abençoado seja. Gostei e continuei a fumar durante oito anos, até começar a me picar e, finalmente, me viciar. Gostava muito de heroína e usei-a quase continuamente, de um jeito ou de outro, durante os 20 anos seguintes" (pág. 37). Esse parágrafo significativo do "estilo" dessas memórias está "solto".

Antibiógrafo
Vem em seguida à narrativa da infância feliz e retoma a sequência da vida dura na caserna. Mas ele surge como a dizer que não há ligação nenhuma entre o vício e o passado de alegrias ou a experiência no Exército. Como se fora uma espécie de antibiógrafo de si mesmo, Chet parece não querer explicar-se.
Numa passagem, por exemplo, diz apenas: "Arrumei confusão". Mas as consequências disso foram a perda de seu próprio clube de jazz (que ele afirma ter sido seu grande sonho) e a expulsão da Itália. Contraditoriamente, numa hora ele diz que está "limpo", mas, na outra, que tinha drogas e podia acordar com baratas caminhando por seu corpo.
Do mesmo modo, crises depressivas e pequenas tragédias são narradas do jeito mais "cool" possível. Numa só página, conta a gravidez daquela que foi sua segunda namorada (a primeira, na Alemanha do pós-guerra, deixou-o para ir viver com um oficial que pudesse sustentá-la), o aborto, apoiado pelos pais, o abandono da feliz casa materna para ir morar com traficantes. Nada parecia ser grande coisa para ele. Às vezes, Chet parece se apresentar como um tolo que flutua ao sabor das coisas. Noutras, como alguém que não condena ou julga, principalmente a si mesmo, capaz de enfrentar os desastres e as derrotas pessoais com uma tranquilidade que não se sabe de onde vem nem para onde vai.
Não sei se quem lê essas memórias "entende" melhor a beleza da música de Chet Baker ou mesmo sua vida e suas motivações. Sei que são raros os casos na história da arte em que se pode dizer que algo é tão sublime que dispensa explicação. Seja como for, as palavras desse livrinho soarão como a música mais doce e mais triste que o século 20 produziu.


Francisco Alambert é professor de estética e história da arte na Universidade Estadual Paulista.


Memórias Perdidas
120 págs., R$ 17,00 de Chet Baker. Tradução de Luiz Orlando Carneiro. Jorge Zahar Editor (r. México, 31, CEP 20031-144, RJ, tel. 0/xx/21/2240-0226).


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