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+ cultura
Arte e crime em rota de convergência
Flerte da pintura e da escrita com o desregramento e o delito marcou obras
tão díspares como as de Caravaggio, Jean Genet e Rubem Fonseca
Ana Miranda
especial para a Folha
Eu estava há poucos dias diante das
três pinturas de Caravaggio (1571-1610), na igreja de S. Luigi dei
Francesi, em Roma, quando um
homem se aproximou com seu amigo e
disse, com aquela ênfase bem italiana:
Caravaggio foi um delinquente! Levantei
de novo os olhos para a vocação de são
Mateus, seu martírio e seu encontro com
o anjo. Ali estava uma das maiores obras
da arte de todos os tempos. Aqueles personagens, banhados por uma luz divina
e refinada, de uma beleza absurda, eram
a imagem da vida de Caravaggio.
A luz de Caravaggio é trágica. Também
sua composição, que obedece a um rigoroso equilíbrio, seus campos negros,
seus elementos e a sua alma. Pintou são
Mateus com o aspecto de um lavrador
rude e cujo analfabetismo é sugerido pela mão do anjo que o faz escrever. O quadro foi rejeitado e substituído por um
novo, no nicho da igreja. Pintou a decapitação de Holofernes, o sacrifício de
Isaac, a cabeça da Medusa, a crucificação
de são Pedro, Davi com a cabeça de Golias ou Salomé com a de Batista, momentos dramáticos e nada edificantes das
nossas histórias sagradas.
Inquieto, nômade, Caravaggio era um
inconformista. Quando conseguia algum dinheiro, saía pela cidade vestido
no maior luxo, seguido de um pajem a
sustentar sua espada, atrás de alguém
que aceitasse provocações. Não conseguia dominar seu temperamento e tinha
um desejo descontrolado de ferir. Envolveu-se em episódios de violência com
uma impressionante regularidade e
agravamento progressivo, culminando
num assassinato. Passou sua vida ou nas
prisões ou em fuga. Como ele não tinha
dinheiro para pagar modelos, olhava-se
no espelho e pintava seu próprio moreno
e lascivo rosto, o que deu a sua obra um
caráter ainda mais autobiográfico. Nada
em sua pintura induz à religiosidade
nem se desvia da condição humana. Mas
leva a pensar em quanto a arte pode nos
redimir.
Os casos de artistas criminosos não são
raros na história. François Villon, tido
como um dos maiores poetas franceses,
certamente o primeiro dos maiores poetas líricos modernos franceses, levou
uma vida desregrada de boêmio, e presume-se que fazia parte de um bando de
malfeitores. Em 1455 matou um padre e
foi perdoado por esse crime, mas em seguida envolveu-se num roubo a um colégio, o que o obrigou a fugir.
Ruína física e morte
Passou um tempo vagabundeando pela França e
acabou preso e condenado à morte, mas
a sentença foi anulada -e ele, desterrado de Paris. Um de seus poemas mais conhecidos e belos, sua obra-prima e epitáfio, chama-se "Balada dos Enforcados".
"Frères, humains, que après nous vivez"
[Irmãos, humanos, que sobreviveis a
nós". A poesia de Villon examina sua dissipada vida e expressa um interesse macabro pela ruína física e pela morte, mas
também uma compaixão pelos padecimentos dos seres humanos, anotados
com uma indiferença irônica.
Jean Genet talvez seja o escritor mais
marcado por uma vida maldita. Era
mendigo, ladrão, homossexual e foi diversas vezes condenado por delitos graves. Escapou da prisão perpétua graças a
Sartre, Camus e Cocteau, que articularam um movimento por sua libertação.
Nasceu em 1910, na França, como filho
ilegítimo; abandonado pela mãe, cresceu
em orfanatos dirigidos por padres.
Passou a adolescência em reformatórios e a juventude em prisões. Inscreveu-se na Legião Francesa, mas desertou, viveu perambulando, entregue ao roubo e
à prostituição.
Quando cumpria uma de suas penas,
durante a Segunda Guerra Mundial, um
dos muitos presos políticos que ali se encontravam deu-lhe um livro de Proust.
Impressionado com a leitura, ele passou
a escrever, ali mesmo na cela, suas recordações da infância e da adolescência e
sua experiência no mundo do crime. Foi
capaz de escrever uma obra grandiosa.
Mas não foi a terrível realidade descrita
nem o mergulho profundo em suas obsessões pessoais que fizeram dele um dos
maiores escritores e dramaturgos da literatura universal, e sim a sua capacidade
de transformar tudo isso em uma aventura literária, mítica e poética. Esforçou-se por um estilo "descarnado, com os ossos à mostra", em que celebrava o triunfo
do mal, a realização dos desejos mais primitivos e espontâneos. Mas do fundo de
sua prisão criava ambiciosas metáforas
de concepção do mundo, num idioma ritual e suntuoso.
Um novo Genet?
A própria história
foi definida, pelo historiador Edward
Gibbon, como pouco mais do que "o registro dos crimes, loucuras e desventuras
da humanidade". E a literatura também
não é muito mais do que isso, desde Homero, que trucida os pretendentes de sua
mulher Penélope, passando pelas mãos
de lady Macbeth, manchadas de um sangue que não pode ser apagado, até "O
Cobrador", de Rubem Fonseca, que mata para cobrar o que estão lhe devendo.
Na literatura recente, no Brasil, tenho
notado a publicação assídua não apenas
de livros de escritores que tratam do
mundo da criminalidade mas também
de obras escritas pelos próprios criminosos -ou pessoas que convivem com
eles. Alguns presidiários têm encontrado
tempo, estímulo ou inspiração para relatar suas vidas da maneira mais verídica e
detalhada possível. Apesar de não terem
partido de uma formulação proustiana,
tudo se passa numa atmosfera tão envolvente quanto um pesadelo. São relatos
realistas que buscam, em alguns casos,
justificativas para os atos que descrevem:
a infância infeliz, uma situação de miséria, a incompreensão de um pai bêbado.
O presidiário Luiz Alberto Mendes,
condenado por assalto e assassinato, comenta seu primeiro roubo: "Para mim,
estava certíssimo. Os chineses haviam
me afastado da criatura que eu mais
amava. Apenas cobrava deles, em dinheiro, a imensa infelicidade que me
causaram. Era justo, fora por dinheiro,
por não querer pagar um pouquinho
mais para quem trabalhava havia tantos
anos para eles, portanto, nada mais justo
que tivessem aquele prejuízo. A única
tristeza era minha mãe. Doía minha
consciência, mas era mais forte que eu.
Precisava viver minha liberdade" [em
"Memórias de um Sobrevivente", Companhia das Letras".
Essas obras são importantes, pois mostram as motivações do roubo, do assassinato e o fascínio que o crime tem exercido na mente dos jovens que se sentem
excluídos da vida glamourosa e luxuriante apresentada onde quer que se
olhe. As razões do crime são complexas,
mas os depoimentos impressionam pelas idéias que contêm acerca do valor da
vida.
Os que escrevem esses livros são pessoas vulneráveis ao sentimento de marginalidade, que se vêem em busca da redenção pela palavra. São histórias de seres humanos. Ainda não sabemos se entre eles existe algum Genet ou um Villon.
Ana Miranda é escritora, autora de "Que Seja em
Segredo" (ed. Dantes), entre outros.
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