São Paulo, domingo, 17 de março de 2002

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+ cultura

Arte e crime em rota de convergência

Flerte da pintura e da escrita com o desregramento e o delito marcou obras tão díspares como as de Caravaggio, Jean Genet e Rubem Fonseca

Ana Miranda
especial para a Folha

Eu estava há poucos dias diante das três pinturas de Caravaggio (1571-1610), na igreja de S. Luigi dei Francesi, em Roma, quando um homem se aproximou com seu amigo e disse, com aquela ênfase bem italiana: Caravaggio foi um delinquente! Levantei de novo os olhos para a vocação de são Mateus, seu martírio e seu encontro com o anjo. Ali estava uma das maiores obras da arte de todos os tempos. Aqueles personagens, banhados por uma luz divina e refinada, de uma beleza absurda, eram a imagem da vida de Caravaggio. A luz de Caravaggio é trágica. Também sua composição, que obedece a um rigoroso equilíbrio, seus campos negros, seus elementos e a sua alma. Pintou são Mateus com o aspecto de um lavrador rude e cujo analfabetismo é sugerido pela mão do anjo que o faz escrever. O quadro foi rejeitado e substituído por um novo, no nicho da igreja. Pintou a decapitação de Holofernes, o sacrifício de Isaac, a cabeça da Medusa, a crucificação de são Pedro, Davi com a cabeça de Golias ou Salomé com a de Batista, momentos dramáticos e nada edificantes das nossas histórias sagradas. Inquieto, nômade, Caravaggio era um inconformista. Quando conseguia algum dinheiro, saía pela cidade vestido no maior luxo, seguido de um pajem a sustentar sua espada, atrás de alguém que aceitasse provocações. Não conseguia dominar seu temperamento e tinha um desejo descontrolado de ferir. Envolveu-se em episódios de violência com uma impressionante regularidade e agravamento progressivo, culminando num assassinato. Passou sua vida ou nas prisões ou em fuga. Como ele não tinha dinheiro para pagar modelos, olhava-se no espelho e pintava seu próprio moreno e lascivo rosto, o que deu a sua obra um caráter ainda mais autobiográfico. Nada em sua pintura induz à religiosidade nem se desvia da condição humana. Mas leva a pensar em quanto a arte pode nos redimir. Os casos de artistas criminosos não são raros na história. François Villon, tido como um dos maiores poetas franceses, certamente o primeiro dos maiores poetas líricos modernos franceses, levou uma vida desregrada de boêmio, e presume-se que fazia parte de um bando de malfeitores. Em 1455 matou um padre e foi perdoado por esse crime, mas em seguida envolveu-se num roubo a um colégio, o que o obrigou a fugir.

Ruína física e morte
Passou um tempo vagabundeando pela França e acabou preso e condenado à morte, mas a sentença foi anulada -e ele, desterrado de Paris. Um de seus poemas mais conhecidos e belos, sua obra-prima e epitáfio, chama-se "Balada dos Enforcados". "Frères, humains, que après nous vivez" [Irmãos, humanos, que sobreviveis a nós". A poesia de Villon examina sua dissipada vida e expressa um interesse macabro pela ruína física e pela morte, mas também uma compaixão pelos padecimentos dos seres humanos, anotados com uma indiferença irônica. Jean Genet talvez seja o escritor mais marcado por uma vida maldita. Era mendigo, ladrão, homossexual e foi diversas vezes condenado por delitos graves. Escapou da prisão perpétua graças a Sartre, Camus e Cocteau, que articularam um movimento por sua libertação. Nasceu em 1910, na França, como filho ilegítimo; abandonado pela mãe, cresceu em orfanatos dirigidos por padres. Passou a adolescência em reformatórios e a juventude em prisões. Inscreveu-se na Legião Francesa, mas desertou, viveu perambulando, entregue ao roubo e à prostituição. Quando cumpria uma de suas penas, durante a Segunda Guerra Mundial, um dos muitos presos políticos que ali se encontravam deu-lhe um livro de Proust. Impressionado com a leitura, ele passou a escrever, ali mesmo na cela, suas recordações da infância e da adolescência e sua experiência no mundo do crime. Foi capaz de escrever uma obra grandiosa. Mas não foi a terrível realidade descrita nem o mergulho profundo em suas obsessões pessoais que fizeram dele um dos maiores escritores e dramaturgos da literatura universal, e sim a sua capacidade de transformar tudo isso em uma aventura literária, mítica e poética. Esforçou-se por um estilo "descarnado, com os ossos à mostra", em que celebrava o triunfo do mal, a realização dos desejos mais primitivos e espontâneos. Mas do fundo de sua prisão criava ambiciosas metáforas de concepção do mundo, num idioma ritual e suntuoso.

Um novo Genet?
A própria história foi definida, pelo historiador Edward Gibbon, como pouco mais do que "o registro dos crimes, loucuras e desventuras da humanidade". E a literatura também não é muito mais do que isso, desde Homero, que trucida os pretendentes de sua mulher Penélope, passando pelas mãos de lady Macbeth, manchadas de um sangue que não pode ser apagado, até "O Cobrador", de Rubem Fonseca, que mata para cobrar o que estão lhe devendo.
Na literatura recente, no Brasil, tenho notado a publicação assídua não apenas de livros de escritores que tratam do mundo da criminalidade mas também de obras escritas pelos próprios criminosos -ou pessoas que convivem com eles. Alguns presidiários têm encontrado tempo, estímulo ou inspiração para relatar suas vidas da maneira mais verídica e detalhada possível. Apesar de não terem partido de uma formulação proustiana, tudo se passa numa atmosfera tão envolvente quanto um pesadelo. São relatos realistas que buscam, em alguns casos, justificativas para os atos que descrevem: a infância infeliz, uma situação de miséria, a incompreensão de um pai bêbado.
O presidiário Luiz Alberto Mendes, condenado por assalto e assassinato, comenta seu primeiro roubo: "Para mim, estava certíssimo. Os chineses haviam me afastado da criatura que eu mais amava. Apenas cobrava deles, em dinheiro, a imensa infelicidade que me causaram. Era justo, fora por dinheiro, por não querer pagar um pouquinho mais para quem trabalhava havia tantos anos para eles, portanto, nada mais justo que tivessem aquele prejuízo. A única tristeza era minha mãe. Doía minha consciência, mas era mais forte que eu. Precisava viver minha liberdade" [em "Memórias de um Sobrevivente", Companhia das Letras".
Essas obras são importantes, pois mostram as motivações do roubo, do assassinato e o fascínio que o crime tem exercido na mente dos jovens que se sentem excluídos da vida glamourosa e luxuriante apresentada onde quer que se olhe. As razões do crime são complexas, mas os depoimentos impressionam pelas idéias que contêm acerca do valor da vida.
Os que escrevem esses livros são pessoas vulneráveis ao sentimento de marginalidade, que se vêem em busca da redenção pela palavra. São histórias de seres humanos. Ainda não sabemos se entre eles existe algum Genet ou um Villon.


Ana Miranda é escritora, autora de "Que Seja em Segredo" (ed. Dantes), entre outros.


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