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Ponto de fuga
Espiral em negro
Jorge Coli
Os endinheirados brasileiros do passado legaram histórias extravagantes: Xica da Silva abrindo um lago no
interior de Minas, para navegar como se estivesse no
oceano; o barão de Catas Altas calçando seus cavalos
com ferraduras de ouro; os grandes fazendeiros de café,
nos tempos do império, mandando lavar roupa branca
na ilha da Madeira. Os de hoje enviam um altar inteiro,
imenso, para Nova York.
Do escuro, surge o grande objeto dourado. É como se
ele fosse feito de plástico. Numa idéia que alguns chamaram de transgressiva, o arquiteto Jean Nouvel pintou o vasto caracol interno do museu Solomon R. Guggenheim, em Nova York, de preto, para receber a mostra "Brazil: Body & Soul" [prevista para terminar em
29/5". Nessas sombras brilha o altar-mor de são Bento
de Olinda, com quase 14 metros de altura. Fora de seu
lugar, mergulhado na dramatização exagerada, é como
se ele deixasse de existir.
Diante dessa mania de grandeza, todo o resto da exposição se apequena. As obras se distribuem no percurso contínuo imaginado por Frank Lloyd Wright, meio
perdidas, meio mortas. A idéia geral deriva da velha interpretação nacionalista, concebida no século passado
para as artes plásticas: o Brasil "autêntico" se encontra
no "barroco" e no "moderno". Entre eles, o pobre século 19 é visto como excrescência contaminada por estrangeirismos. Deve, portanto, ser extirpado. Ocorreu
assim na mostra de NY. Mas essa alma barroca, que saltaria da colônia para o século 20, revela-se, de fato, não
muito mais que um fantasma.
Passagens - A mostra "Brazil: Body & Soul" levaria a
evocar a "perda da aura", enunciada por Walter Benjamin. Não é preciso tanto. Algumas exposições de arte,
ocorrendo não só no Brasil, mas aqui com muita frequência, buscam o sensacionalismo pela encenação. O
objeto artístico conta pouco. Cada um deles poderia ser
substituído por outros, poderia ser falso, poderia ser cópia, e nada se alteraria, porque se esvai uma de suas características definitivas: a singularidade. Ele se torna
uma espécie de pretexto e desaparece, engolido por intenções fáceis, que não o levam em conta.
O caráter dessas exposições é nocivo, pois esvazia os
sentidos da obra e suas forças. Impede a concentração
que ela exige do olhar. Ao contrário, tudo é determinado para que a visão se distraia, passando, sem repouso,
sobre os objetos dispostos segundo a estratégia da exibição. Perdem-se as relações de inteligência; as obras
não se iluminam umas às outras, já que não foram consideradas em sua natureza de arte. Nenhuma discussão
teórica pode justificar esses modos de expor: os mais
sutis argumentos são batidos pela evidência. As obras se
vingam: elas se recusam a estar presentes; enviam, no
lugar, carcaças sem vida.
Medida - O catálogo da exposição reúne um conjunto
de ensaios com interesse variável, escritos por diversos
autores. Pesa quase quatro quilos. O papel é de uma gramatura extraordinária, os textos flutuam em meio a
amplas margens. Estilo "maior do mundo", como dizia
Mário de Andrade, quando queria fustigar nossas grandiloquências caipiras. Começa por uma nota introdutória onde se aprende que a arte oferece uma experiência
única e que Schiller é um grande escritor alemão.
Estátuas - Ninguém está livre de lapso ou de erro. Mas
o curador da mostra "Brazil: Body & Soul", Edward J.
Sullivan, professor na Universidade de Nova York, especialista em arte latino-americana, comete um equívoco bem grave. Na página 238 do catálogo, toma o ilustre
intelectual, defensor do patrimônio artístico brasileiro,
Rodrigo de Melo Franco de Andrade, morto em 1969,
por um escultor, mestre do Aleijadinho em pleno século 18. Esse erro, já assinalado nos jornais, é acompanhado por poucos outros, miúdos. São sintomas de um certo tipo de história da arte norte-americana, mais mundana que rigorosa, capaz de sínteses hábeis a partir de
uma bibliografia vasta, que porém desconhece, em profundidade, o objeto do qual trata.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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