São Paulo, domingo, 17 de março de 2002

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Ponto de fuga

Espiral em negro

Jorge Coli

Os endinheirados brasileiros do passado legaram histórias extravagantes: Xica da Silva abrindo um lago no interior de Minas, para navegar como se estivesse no oceano; o barão de Catas Altas calçando seus cavalos com ferraduras de ouro; os grandes fazendeiros de café, nos tempos do império, mandando lavar roupa branca na ilha da Madeira. Os de hoje enviam um altar inteiro, imenso, para Nova York.
Do escuro, surge o grande objeto dourado. É como se ele fosse feito de plástico. Numa idéia que alguns chamaram de transgressiva, o arquiteto Jean Nouvel pintou o vasto caracol interno do museu Solomon R. Guggenheim, em Nova York, de preto, para receber a mostra "Brazil: Body & Soul" [prevista para terminar em 29/5". Nessas sombras brilha o altar-mor de são Bento de Olinda, com quase 14 metros de altura. Fora de seu lugar, mergulhado na dramatização exagerada, é como se ele deixasse de existir.
Diante dessa mania de grandeza, todo o resto da exposição se apequena. As obras se distribuem no percurso contínuo imaginado por Frank Lloyd Wright, meio perdidas, meio mortas. A idéia geral deriva da velha interpretação nacionalista, concebida no século passado para as artes plásticas: o Brasil "autêntico" se encontra no "barroco" e no "moderno". Entre eles, o pobre século 19 é visto como excrescência contaminada por estrangeirismos. Deve, portanto, ser extirpado. Ocorreu assim na mostra de NY. Mas essa alma barroca, que saltaria da colônia para o século 20, revela-se, de fato, não muito mais que um fantasma.
Passagens - A mostra "Brazil: Body & Soul" levaria a evocar a "perda da aura", enunciada por Walter Benjamin. Não é preciso tanto. Algumas exposições de arte, ocorrendo não só no Brasil, mas aqui com muita frequência, buscam o sensacionalismo pela encenação. O objeto artístico conta pouco. Cada um deles poderia ser substituído por outros, poderia ser falso, poderia ser cópia, e nada se alteraria, porque se esvai uma de suas características definitivas: a singularidade. Ele se torna uma espécie de pretexto e desaparece, engolido por intenções fáceis, que não o levam em conta.
O caráter dessas exposições é nocivo, pois esvazia os sentidos da obra e suas forças. Impede a concentração que ela exige do olhar. Ao contrário, tudo é determinado para que a visão se distraia, passando, sem repouso, sobre os objetos dispostos segundo a estratégia da exibição. Perdem-se as relações de inteligência; as obras não se iluminam umas às outras, já que não foram consideradas em sua natureza de arte. Nenhuma discussão teórica pode justificar esses modos de expor: os mais sutis argumentos são batidos pela evidência. As obras se vingam: elas se recusam a estar presentes; enviam, no lugar, carcaças sem vida.
Medida - O catálogo da exposição reúne um conjunto de ensaios com interesse variável, escritos por diversos autores. Pesa quase quatro quilos. O papel é de uma gramatura extraordinária, os textos flutuam em meio a amplas margens. Estilo "maior do mundo", como dizia Mário de Andrade, quando queria fustigar nossas grandiloquências caipiras. Começa por uma nota introdutória onde se aprende que a arte oferece uma experiência única e que Schiller é um grande escritor alemão.
Estátuas - Ninguém está livre de lapso ou de erro. Mas o curador da mostra "Brazil: Body & Soul", Edward J. Sullivan, professor na Universidade de Nova York, especialista em arte latino-americana, comete um equívoco bem grave. Na página 238 do catálogo, toma o ilustre intelectual, defensor do patrimônio artístico brasileiro, Rodrigo de Melo Franco de Andrade, morto em 1969, por um escultor, mestre do Aleijadinho em pleno século 18. Esse erro, já assinalado nos jornais, é acompanhado por poucos outros, miúdos. São sintomas de um certo tipo de história da arte norte-americana, mais mundana que rigorosa, capaz de sínteses hábeis a partir de uma bibliografia vasta, que porém desconhece, em profundidade, o objeto do qual trata.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br



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