São Paulo, domingo, 17 de maio de 2009

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Ponto de Fuga

Os massacres de cada um


"Milagre em Santa Anna", de Spike Lee, desencadeou um bombardeio crítico; os negros não se reconheceram naqueles fantoches, sem presença nem convicção; sentiram-se insultados pelos estereótipos

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Spike Lee acusou Clint Eastwood de não mostrar, em seus filmes de guerra, o verdadeiro lugar que mereciam os soldados negros.
Prometia que, com o seu, aí sim as coisas seriam bem contadas.
Terminou então "Milagre em Santa Anna", que desencadeou um bombardeio crítico.
Os negros não se reconheceram naqueles fantoches, sem presença nem convicção. Sentiram-se insultados pelos estereótipos: há o negro perfeito; o sincero, o paquerador boa-pinta e boa gente, com dente de ouro; o grandão infantil e abobado.
As situações cômicas irritaram também, como se, mesmo num filme dramático, negros devessem ser engraçados.
Indignação no lado dos italianos. O título remete à povoação de Sant'Anna di Stazzema, na Província de Lucca, dizimada em agosto de 1944 pelos nazistas: 540 mortos, quase todos velhos, mulheres ou crianças, entre os quais um bebê de 20 dias. Na operação, os alemães tiveram apoio dos fascistas.
Queriam dar uma lição exemplar naquelas montanhas perdidas, infestadas de "partigiani" (resistentes). Spike Lee trata o acontecimento como o episódio secundário de um romance policial repleto de falsificações. Modifica as referências históricas segundo as necessidades do sensacionalismo narrativo.
Mesmo um imenso rochedo que desenha a crista da serra, formando a imagem de um homem deitado, monumento natural da Garfagnana, foi retocado e banalizado por computador, de certo para ficar mais cinematográfico.
Nem o nome dessa rocha admirável resistiu: o verdadeiro, "L'Uomo Morto" (o homem morto), deu lugar a "L'Uomo Che Dorme" (o homem adormecido), que Lee deve ter considerado mais poético.

Vezo
As distorções desenvoltas que percorrem o "Milagre em Santa Anna", por piores que sejam, não bastariam para derrubar uma verdadeira qualidade cinematográfica. "Exagero romanesco", alegou o diretor.
A justificativa seria boa se o filme tivesse encontrado seu tom e nos fizesse viver com intensidade as ficções mais implausíveis.
Ocorre algo de curioso com "Milagre em Santa Anna". É cinema de fato, com estilo ágil e pessoal. Mas esse estilo não se adapta aos diversos registros que deve abraçar: cenas épicas; sentimentalismo engraçado, no espírito de "A Vida É Bela (Roberto Benigni, 1997); conflitos humanos; mistérios que se desvendam aos poucos.
Assiste-se, com curiosidade, o ritmo hábil do diretor. Todo o resto é factício.

Crânios
"Katyn", de Andrzej Wajda, também trata de um massacre durante a Segunda Guerra Mundial [1939-45].
Aqui, entretanto, o calibre é outro. Wajda é um dos supremos mestres do cinema, e "Katyn", complexo em seu contraponto narrativo, intrincado em suas referências históricas detalhadas, apodera-se, vigoroso, do espectador.
Surge como um ajuste de contas: a experiência biográfica nutre sua eloquência, pois o pai do cineasta foi assassinado em "Katyn", junto com centenas de outros militares poloneses.
Wajda tinha, então, 13 anos.
Na Polônia, sob o comunismo, a história atribuía o massacre aos nazistas. Seus verdadeiros autores foram os soviéticos, porém.

Velhos tempos
Quando o filme de Wajda começa, o pacto germano-soviético está em vigor. Para o cineasta, um lado vale o outro e, de fato, é melhor não fazer um concurso de horrores.
Em sua busca pela verdade, expõe uma Polônia destroçada.
Ao contrário das guerras de hoje, movidas por ódios religiosos, em "Katyn", o único fio que permite uma identidade superior, para além das violências, é a fé católica.


jorgecoli@uol.com.br


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