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Alá, meu bom Alá
Desprezado pelos outros escravos no Rio do século 19, muçulmanos negros viram sua população minguar
com o fim
do tráfico
atlântico
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MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA
Em "Um Rio Chamado
Atlântico" [ed. Nova
Fronteira], Alberto da
Costa e Silva estabeleceu um método sutil
para estimar a importância dos
islamitas negros no Rio de Janeiro imperial.
Da correspondência oficial
do conde de Gobineau, ministro da França no Brasil em
1869, colheu a informação que
os livreiros franceses Fauchon
e Dupont costumavam vender
anualmente cerca de cem
exemplares do Alcorão.
Alcorões escritos em árabe e
à mão -logo, muito caros. Ainda assim, eram adquiridos
"quase que exclusivamente por
escravos e ex-escravos". Um
best-seller cujas características
permitiram ao nosso melhor
africanista concluir ser maior
do que se poderia imaginar o
número de muçulmanos negros da corte.
Islamitas estritos, ademais,
posto somente aceitarem o livro na língua de Maomé.
De acordo com as listas de
escravos em inventários post-mortem, embora minoritário,
o número de cativos embarcados entre a costa do Senegal e
os Camarões -os "minas"-
crescia mais do que o de bantos
de Angola e de Moçambique.
Estigmas
Mas eles não vinham diretamente da África: alcançavam a
capital imperial através de Salvador, e sua denominação genérica encobria adeptos da religião dos orixás e muçulmis [ou
malês]. Eram "minas" enquanto permanecessem escravizados, bem entendido.
Porque, ao obterem suas cartas de alforria, muitos se transformavam em "mina-jeje",
"mina-nagô" ou "mina-hauçá"
-estes, sequazes da religião de
Maomé. A liberdade lhes permitia assumir identidades antes ocultadas por estigmas e
perseguições.
Algumas cifras sugerem o caminho inverso -de que a reafirmação identitária também
ajudava a obter a liberdade.
Segundo registros cartorários, quando Gobineau morava
no Rio, os "minas" perfaziam
15% do total de escravos originários da África, representavam um terço dos africanos alforriados e detinham metade
das cartas de liberdade por estes adquiridas mediante pecúlio -os bantos abandonavam o
cativeiro sobretudo gratuitamente ou por meio de acordos
com seus senhores.
A etapa de adaptação na Bahia deve ter sido muito importante para que os minas obtivessem alforrias em uma proporção duas vezes maior do que
a sua participação entre os africanos escravizados -e, em especial, por meio de laboriosa
poupança.
Entretanto essa aculturação
não necessariamente significou o abandono de crenças primevas. Ao contrário, estas ajudavam a tecer estratégias que
pavimentavam o caminho rumo à liberdade.
A dialética estabelecida entre
afirmação identitária e manumissões compradas sugere que
Costa e Silva acerta ao dar crédito a Gobineau: os dispendiosos alcorões eram adquiridos
por islamitas escravizados e libertos, e não apenas por estes,
como era de se esperar.
Jamais será conhecido o número exato de maometanos do
Rio de Janeiro na década de
1860. Mas uma ordem de grandeza pode ser estabelecida.
Desaparecimento
Para tanto, partamos dos 80
mil escravos e 11 mil forros
anunciados no censo de 1849
para as freguesias urbanas da
Corte. A população escrava
atingia o seu auge, e a queda viria a partir do ano seguinte,
com o fim do tráfico atlântico.
Os escravos urbanos somavam 40 mil habitantes em 1872,
quando o avanço do abolicionismo pode ter elevado para 20
mil o número de libertos.
O cruzamento dessas cifras
com fontes cartorárias sugere
que, racista, Gobineau convivia
desgostoso com 5.000 "minas"
forros e escravizados, dos quais
uns 200 hauçás.
Ao considerarmos os muçulmanos nascidos no Brasil, os
conversos e os que simplesmente temiam dar a conhecer a
sua crença, não é implausível
supor que a comunidade islamita flutuasse entre mil e
2.000 pessoas.
Ainda assim estaríamos frente a um grupo relativamente
exíguo, embora adequado à demanda dos alcorões de Fauchon e Dupont.
Os maometanos estavam em
franco desaparecimento nos
primeiros anos do século 20,
quando João do Rio escrevia
"As Religiões no Rio" [ed. José
Olympio].
Para explicá-lo, Costa e Silva
menciona as deportações para
a África -para onde muitos
também regressavam voluntariamente- e a conversão a outras religiões. Destaca ainda a
transformação dos muçulmanos em um grupo isolado, "a
ressentir-se da rejeição dos demais negros".
Embora possa ter se acentuado na passagem do século, o
hermetismo dos moslins não
representou uma novidade trazida pela República.
Endogamia
Registros de casamentos de
escravos de diversas freguesias
do Rio de Janeiro, referentes
aos séculos 18 e 19, mostram
que os índices de endogamia
entre os hauçás eram bem superiores aos observados nas
outras etnias africanas.
O fechamento matrimonial
da minguada comunidade
maometana resultava do desprezo que lhe era imposto pelos
outros negros, é certo.
Mas igualmente da crença na
superioridade de seu monoteísmo, encarnada na estrita
observância de suratas que desestimulavam casamentos de
fiéis com mulheres idólatras.
Desse modo, enquanto pôde
contar com os tráficos atlântico
e interno, a reprodução física
desses poucos muçulmanos
não se viu comprometida. Ao
contrário: a imigração forçada
representava a condição de sobrevivência do grupo. Ao secarem, estas fontes externas de
reposição humana levaram
consigo os próprios islamitas.
Uma história instigante,
quando menos pelo desconhecimento vigente acerca dos
muçulmanos negros fora da
Bahia.
MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro, é coautor de
"Trabalho Compulsorio e Trabalho Livre na Historia" [ed. Unesp] e escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
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