São Paulo, domingo, 17 de maio de 2009

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Alá, meu bom Alá


Desprezado pelos outros escravos no Rio do século 19, muçulmanos negros viram sua população minguar com o fim do tráfico atlântico


MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

Em "Um Rio Chamado Atlântico" [ed. Nova Fronteira], Alberto da Costa e Silva estabeleceu um método sutil para estimar a importância dos islamitas negros no Rio de Janeiro imperial.
Da correspondência oficial do conde de Gobineau, ministro da França no Brasil em 1869, colheu a informação que os livreiros franceses Fauchon e Dupont costumavam vender anualmente cerca de cem exemplares do Alcorão.
Alcorões escritos em árabe e à mão -logo, muito caros. Ainda assim, eram adquiridos "quase que exclusivamente por escravos e ex-escravos". Um best-seller cujas características permitiram ao nosso melhor africanista concluir ser maior do que se poderia imaginar o número de muçulmanos negros da corte.
Islamitas estritos, ademais, posto somente aceitarem o livro na língua de Maomé.
De acordo com as listas de escravos em inventários post-mortem, embora minoritário, o número de cativos embarcados entre a costa do Senegal e os Camarões -os "minas"- crescia mais do que o de bantos de Angola e de Moçambique.

Estigmas
Mas eles não vinham diretamente da África: alcançavam a capital imperial através de Salvador, e sua denominação genérica encobria adeptos da religião dos orixás e muçulmis [ou malês]. Eram "minas" enquanto permanecessem escravizados, bem entendido. Porque, ao obterem suas cartas de alforria, muitos se transformavam em "mina-jeje", "mina-nagô" ou "mina-hauçá" -estes, sequazes da religião de Maomé. A liberdade lhes permitia assumir identidades antes ocultadas por estigmas e perseguições.
Algumas cifras sugerem o caminho inverso -de que a reafirmação identitária também ajudava a obter a liberdade.
Segundo registros cartorários, quando Gobineau morava no Rio, os "minas" perfaziam 15% do total de escravos originários da África, representavam um terço dos africanos alforriados e detinham metade das cartas de liberdade por estes adquiridas mediante pecúlio -os bantos abandonavam o cativeiro sobretudo gratuitamente ou por meio de acordos com seus senhores.
A etapa de adaptação na Bahia deve ter sido muito importante para que os minas obtivessem alforrias em uma proporção duas vezes maior do que a sua participação entre os africanos escravizados -e, em especial, por meio de laboriosa poupança.
Entretanto essa aculturação não necessariamente significou o abandono de crenças primevas. Ao contrário, estas ajudavam a tecer estratégias que pavimentavam o caminho rumo à liberdade.
A dialética estabelecida entre afirmação identitária e manumissões compradas sugere que Costa e Silva acerta ao dar crédito a Gobineau: os dispendiosos alcorões eram adquiridos por islamitas escravizados e libertos, e não apenas por estes, como era de se esperar.
Jamais será conhecido o número exato de maometanos do Rio de Janeiro na década de 1860. Mas uma ordem de grandeza pode ser estabelecida.

Desaparecimento
Para tanto, partamos dos 80 mil escravos e 11 mil forros anunciados no censo de 1849 para as freguesias urbanas da Corte. A população escrava atingia o seu auge, e a queda viria a partir do ano seguinte, com o fim do tráfico atlântico.
Os escravos urbanos somavam 40 mil habitantes em 1872, quando o avanço do abolicionismo pode ter elevado para 20 mil o número de libertos.
O cruzamento dessas cifras com fontes cartorárias sugere que, racista, Gobineau convivia desgostoso com 5.000 "minas" forros e escravizados, dos quais uns 200 hauçás.
Ao considerarmos os muçulmanos nascidos no Brasil, os conversos e os que simplesmente temiam dar a conhecer a sua crença, não é implausível supor que a comunidade islamita flutuasse entre mil e 2.000 pessoas.
Ainda assim estaríamos frente a um grupo relativamente exíguo, embora adequado à demanda dos alcorões de Fauchon e Dupont.
Os maometanos estavam em franco desaparecimento nos primeiros anos do século 20, quando João do Rio escrevia "As Religiões no Rio" [ed. José Olympio].
Para explicá-lo, Costa e Silva menciona as deportações para a África -para onde muitos também regressavam voluntariamente- e a conversão a outras religiões. Destaca ainda a transformação dos muçulmanos em um grupo isolado, "a ressentir-se da rejeição dos demais negros".
Embora possa ter se acentuado na passagem do século, o hermetismo dos moslins não representou uma novidade trazida pela República.

Endogamia
Registros de casamentos de escravos de diversas freguesias do Rio de Janeiro, referentes aos séculos 18 e 19, mostram que os índices de endogamia entre os hauçás eram bem superiores aos observados nas outras etnias africanas.
O fechamento matrimonial da minguada comunidade maometana resultava do desprezo que lhe era imposto pelos outros negros, é certo.
Mas igualmente da crença na superioridade de seu monoteísmo, encarnada na estrita observância de suratas que desestimulavam casamentos de fiéis com mulheres idólatras.
Desse modo, enquanto pôde contar com os tráficos atlântico e interno, a reprodução física desses poucos muçulmanos não se viu comprometida. Ao contrário: a imigração forçada representava a condição de sobrevivência do grupo. Ao secarem, estas fontes externas de reposição humana levaram consigo os próprios islamitas.
Uma história instigante, quando menos pelo desconhecimento vigente acerca dos muçulmanos negros fora da Bahia.


MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro, é coautor de "Trabalho Compulsorio e Trabalho Livre na Historia" [ed. Unesp] e escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.


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