São Paulo, domingo, 17 de maio de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Astúcias da desigualdade


Saem no Brasil "Uma Teoria da Justiça", clássico do direito contemporâneo de John Rawls, e "Além da Justiça", de Agnes Heller


RENATO JANINE RIBEIRO
especial para a Folha

"Uma Teoria da Justiça" marcou época na reflexão liberal -mas lembremos que nos Estados Unidos esse adjetivo designa os progressistas, não os "neoliberais". O livro saiu em inglês em 1971, quando se dizia que a economia legitimava a suspensão das liberdades democráticas -doutrina que foi a das ditaduras militares apoiadas pela Casa Branca no Brasil e no continente. Ora, Rawls condena essa tese com veemência. Para ele, há uma prioridade das liberdades sobre as vantagens, da política sobre o econômico.
Hoje, beirando os 30 anos, "Uma Teoria da Justiça" continua atual, na sustentação teórica que dá a propostas como a ação afirmativa (chegaremos a ela). Rawls é um defensor da igualdade, mas permite exceções a ela se -e somente se- forem beneficiar, justamente, quem ficar nas posições inferiores.
O critério que justifica a desigualdade é a vantagem que ela venha a trazer à camada que ocupe a posição inferior na sociedade. Se não for assim, a desigualdade será inadmissível. Isso condena qualquer desigualdade com base étnica ou religiosa e contesta muito da desigualdade econômica, que, para manter alguma legitimidade, deve adotar fortes medidas compensatórias.
Essas medidas de compensação podem levar ao que hoje se chama ação afirmativa: o conjunto de medidas que, nos Estados Unidos, buscou dar às minorias historicamente discriminadas, sobretudo negros e índios, acesso ao serviço público e à educação superior. Consistem especialmente em forte investimento na educação, em todos os níveis, para romper a série histórica, isto é, a tendência a se perpetuar a desigualdade.
Vê-se a atualidade do livro. Ela é fruto, porém, de cerrada argumentação. E o ponto de partida de Rawls é difícil. Ele quer construir uma teoria da justiça social. Ora, geralmente esta tem base utilitarista, isto é, procura o bem do maior número. Mas Rawls quer dar-lhe nova base, mais sólida que o simples interesse numérico -insuficiente, a seu ver, para conferir fundação ética a políticas públicas. Ética na política: digamos que este é um de seus propósitos.
Para isso, ele retoma a velha teoria do contrato social. As regras para a vida em sociedade se suporá que sejam firmadas por um acordo entre todos. Mas há um requisito para tal contrato: que ignoremos tudo sobre nossa condição. Não sabemos se somos ricos ou pobres, brancos ou negros etc. Esse "véu de ignorância" garantirá que as regras sejam justas.
Daí se seguem os dois princípios de justiça. O primeiro prioriza a liberdade, e não é muito original. Já o segundo reza que toda exceção à igualdade só se justifica por uma vantagem maior para os "de baixo". É o princípio "maximin": empenhar-se o máximo em melhorar a condição dos que possuem o mínimo. O que legitimiza as diferenças em poder ou riqueza será não só o consentimento, mas o bem-estar de quem fica abaixo na hierarquia.
O que criticar então nesse importante livro? Ficarei em dois pontos. O primeiro é o princípio "maximin". Por simpático que seja aos pobres, o fato é que retoma a velha justificação do capitalismo. A melhor justificação que este dá para o fato -nele inevitável- da desigualdade está no suposto benefício aos pobres, que viveriam melhor no regime da competição do que no do estatismo igualitário.
Ou seja: embora Rawls queira dar a seu sistema uma amplidão que também inclua regimes sem a propriedade privada dos meios de produção (ou seja, as sociedades socialistas), seu modelo parece, por demais, uma generalização do capitalismo. Com a diferença de que a desigualdade, que em seu modelo aparece como eventual, no capitalismo é essencial.
Outro ponto: em sua busca de fundamentos, Rawls se refere sempre ao ponto de vista do indivíduo racional. Mas o que é essa pessoa racional? Rawls mal a explica. Ignora por completo a discussão, tão rica nas últimas décadas, sobre a racionalidade e seus limites. O que Locke, o pai fundador do liberalismo, chama de racionalidade é o modo de pensar do proprietário. Ou lembremos a "Genealogia da Moral" de Nietzsche -quanto não custou, diz ele, "tornar o homem um ser previdente e previsível"! O mínimo a dizer é que a racionalidade é produto, e não ponto de partida.
A teoria rawlsiana da justiça poderia até implicar que, sem esse indivíduo racional, as sociedades não teriam legitimidade. Não creio, porém, que nosso autor chegasse a tanto. Basta então observar que ele universaliza pressupostos de uma sociedade, ainda que na sua vertente liberal -e isso é complicado, quando o problema fundamental, hoje, é como lidar com a diferença entre as culturas.


Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na USP, e autor de "Ao Leitor sem Medo" (Brasiliense) e "A Última Razão dos Reis - Ensaios de Filosofia e de Política" (Companhia das Letras).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.