São Paulo, domingo, 17 de maio de 1998

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HISTÓRIA
A era da dependência


O brasilianista Thomas Skidmore, que vai lançar uma "História do Brasil", diz que os anos 90 foram uma década perdida de desenvolvimento para o país e que FHC é um dos presidentes mais dependentes da história, pois "depende do 'dinheiro quente', do investimento estrangeiro e da imagem do brasileiro bonzinho"


FERNANDO CONCEIÇÃO
WALTER DÁVILA
em Providence

Thomas Skidmore é o mais conhecido brasilianista na atualidade, seja no Brasil ou nos Estados Unidos. Ele vem se dedicando sistematicamente aos estudos da história do Brasil nos últimos 37 anos e tem formado um grupo de outros jovens brasilianistas, que em certa medida ampliam a compreensão sobre o país no exterior.
Aos 65 anos, ele acaba de concluir seu último livro, uma nova "História do Brasil", cobrindo desde a chegada de Pedro Álvares Cabral até Fernando Henrique Cardoso, a ser lançado pela Ed. Paz e Terra (sem data prevista). Para ele, o Brasil perdeu mais uma década de desenvolvimento, com a opção econômica feita pelo governo de supervalorização do real, altas taxas de juros e preservação a todo o custo da imagem da moeda, em sacrifício dos investimentos sociais.
Skidmore é casado com uma inglesa, Felicity, tem dois filhos "e um gato". Há sete anos é professor da Brown University, na cidade de Providence (Estado de Rhode Island), no nordeste dos EUA. Demonstrando excelente humor, Skidmore falou por duas horas à Folha, na sala de sua casa em Providence.

Folha - O que levou o senhor a estudar o Brasil?
Thomas Skidmore -
Em 1961, recebi um convite da Universidade Harvard, onde era professor assistente. Eles achavam que havia falta de especialistas na história da América Latina e me ofereceram uma bolsa para mudar a minha especialidade, já que me formara em história da Europa, sobretudo em história da Alemanha do século 19. Escolhi o português porque a maioria dos meus colegas preferia o espanhol.
Folha - O sr. estava no Brasil em 31 de março de 1964. Como viu o golpe militar contra o governo civil de João Goulart?
Skidmore -
Estava no Rio. Aquele foi o golpe mais bem anunciado. O "Correio da Manhã" e o "Jornal do Brasil" traziam manchetes indicando que alguma coisa importante iria acontecer. A "Rádio JB" estava fazendo cobertura 24 horas por dia sobre os acontecimentos no período. Mas ninguém conhecia a capacidade de resistência do governo. Principalmente a esquerda superestimava a resistência, esperando que o governo reagisse e talvez até ocorresse uma guerra civil.
Folha - Como foi sua chegada no Brasil e quais os seus primeiros contatos?
Skidmore -
Comecei a minha viagem de descobrimento do Brasil por Belém do Pará, em 1961. Apareci no consulado americano para conhecer pessoas brasileiras ligadas ao meio diplomático e também nas universidades e institutos geográficos e históricos, onde só encontrei múmias. Depois fui a Fortaleza, Bahia, Rio, São Paulo, Porto Alegre e Brasília, que na época não era nada, somente poeira.
Folha - A disciplina história, hoje em dia, trata de quase tudo, oralidade, culturas etc., tendo sofrido uma profunda mudança em relação ao modo como era estudada no passado. Como o sr. avalia essa mudança?
Skidmore -
Naquela época a história ainda era a história de famílias, genealogia, história da religião. Hoje em dia é uma história social. Essa mudança é saudável. O fato é que os assuntos do historiador refletem o interesse da sociedade. Na década de 60, em muitos casos, o interesse do historiador era buscar as raízes da "revolução brasileira" que iria acontecer, iria chegar. Agora ninguém mais fala sobre isso. Fala-se sobre história social, história política, mas não com a obsessão ideológica que se tinha à época, que era um reflexo da preocupação de se mudar ideologicamente a sociedade, com forte influência marxista. Isso mudou completamente. A meu ver, o que está faltando hoje é um entendimento do aspecto classista da história. Nós temos fugido bastante da realidade.
Folha - Mas isso também não seria fazer uma história sob a análise marxista?
Skidmore -
O marxismo é uma doutrina que pretende explicar todo o processo. Marx achava que era científico e você não podia divergir das etapas indicadas pelos marxistas. De modo que, no Brasil, em certo sentido houve um paralelo entre positivismo e marxismo na história das idéias. Mas é possível fazer uma história sob o ponto de vista da luta de classes sem ficar refém do marxismo. Temos o exemplo de Hobsbawm, que é marxista, mas flexível.
Folha - Então, para o sr., a produção da história hoje deve adotar a análise de reflexão marxista?
Skidmore -
Eu acho que é uma das coisas que estão sendo negligenciadas. Pessoalmente não faço isso, mesmo porque a minha formação é outra. Mas acho que temos perdido alguma coisa com a falta desse tipo de análise.
Folha - O que o levou a ser historiador?
Skidmore -
É curioso. Eu comecei estudando ciência política e depois estudei dois anos de filosofia em Oxford, na Inglaterra. Depois vi que filosofia não era a minha vocação, porque eu não gostava muito daquele tipo de visão. O que me interessava mais era a origem das idéias, o processo histórico. Em certo sentido -e falo isso para os meus alunos- o historiador é aquele perverso que tem a curiosidade de conhecer tudo, de modo que, muitas vezes, não tem limite para os assuntos. É um tipo de remexedor e colecionador de lixo, achando que aquilo que faz talvez vá dar certo. Atraiu-me esse estudo dos processos históricos, entender por que muitas vezes acontece alguma coisa, uma revolução, e as consequências são completamente diferentes das que foram previstas. Por exemplo, 1964 no Brasil, quando todo mundo esperava dos militares uma postura neoliberal e não houve liberalismo nenhum. O que o governo militar fez foi adotar o intervencionismo na economia e fortalecer o corporativismo, ou seja, o oposto do que queria o grupo de empresários que o apoiara, como estudou René Dreyfus ("1964 - A Conquista do Estado").
Folha - Então o interesse pela história das idéias o fez mudar de disciplina?
Skidmore -
Afinal, escolhi história e a história da Alemanha, porque, como toda aquela geração, fiquei fascinado com o fenômeno do nazismo. Como é possível um povo que produziu Beethoven também tenha produzido Hitler? É uma contradição tremenda: um dos países mais civilizados e ao mesmo tempo um dos mais bárbaros. Explicar qual a origem disso é um problema para o historiador.
Walter Folha - Sua tese de doutorado foi sobre isso?
Skidmore -
Minha tese é sobre o chanceler alemão que sucedeu Bismarck, uma vez que todos achavam que ele era o consolidador da unidade da Alemanha. O chamado problema da Alemanha moderna começou com a queda de Bismarck em 1890. Ele tinha a visão e a idéia de evitar especialmente uma guerra, tendo a Inglaterra, França e Rússia ao mesmo tempo como inimigos. Com a sua queda fracassou a visão de uma Alemanha que emergisse como uma grande potência sem provocar guerras na Europa. A derrota alemã na Primeira Guerra criou o clima psicológico para a emergência do nazismo.
Folha - Ao mudar os estudos sobre a Alemanha para a história do Brasil, como o sr. sentiu à época a diferença?
Skidmore -
Todo o mundo achava que eu iria ao Brasil estudar os alemães do Brasil, viajando diretamente para Santa Catarina. Os dois países eram completamente diferentes. O Brasil era semimodernizado. Quando cheguei em 1961 o Brasil acabava de produzir o seu primeiro Fusca, um produto alemão da Volkswagen da década de 30. Era um país cheio de grandes contradições, essa coisa de produzir automóveis e ter ao mesmo tempo muita gente na miséria. A questão era explicar como isso aconteceu, como foi possível um país progredir com certa prosperidade e uma grande miséria ao mesmo tempo.
Folha - Seu primeiro trabalho, "Brasil - De Getúlio a Castelo", sofreu a crítica de alguns setores, que desconfiavam de seu acesso a informações privilegiadas e sua aproximação muito grande com figuras do regime militar. Gostaria que o sr. descrevesse o método que usou para produzir aquele livro e, se possível, respondesse a essa crítica.
Skidmore -
Quando cheguei ao Brasil achava que ia escrever um livro sobre a política da década de 1890 no Brasil, o que mostra a minha falta de imaginação, já que minha tese de doutorado foi sobre a década de 1890 na Alemanha. Eu estava colecionando materiais sobre isso, uma quantidade grande de livros, Rui Barbosa, aquela coisa da República Velha. Ao mesmo tempo houve a radicalização política no Brasil e eu estava colecionando recortes com aquelas notícias de jornais, mas sem saber por quê.
Sem saber, estava guardando material para documentar o meu primeiro livro, que nasceu de um artigo que fiz sobre João Goulart. É óbvio que não podia explicar quem era João Goulart sem explicar o contexto histórico. Bem, isso já é o livro. A questão de fontes é a seguinte: eu nunca tive acesso oficial às fontes, o que chamamos de "classifield", comum aqui nos Estados Unidos, quando se tem acesso e segurança para estudar os segredos americanos. Eu nunca tive esse acesso, mas conhecia bastante na época o Lincoln Gordon, que era o embaixador americano no Brasil e amigo da família da minha mulher. Tinha também muitos amigos na embaixada, no Rio, e falei com eles, peguei informações, debati com eles. Mas o fato é que o Lincoln Gordon leu depois o livro e não gostou, e inclusive vetou a publicação do livro pela editora da Universidade Harvard, à qual eu tinha submetido o manuscrito. Ele achava que o livro era equivocado, que eu tinha subestimado a influência comunista.
De maneira que tive pouco contato com o pessoal do governo militar. Mas é verdade que esses homens gostam muito mais de falar com o gringo do que com o brasileiro, porque para eles o brasileiro parece que vai ser mais crítico ao governo. Mas eu falei também com muita gente da esquerda, jornalistas, estudantes, tecnocratas. Outra coisa é que o livro saiu no Brasil em 1969, um momento especial, quando começou a repressão mais dura. Para o brasileiro isso é chato, um livro sobre o golpe do governo militar sendo publicado em 1969, quando o pesquisador brasileiro não somente não tem acesso à fonte, mas está tentando fugir da polícia. Portanto, dá raiva do gringo que publicou isso.
Folha - Quando o sr. conheceu Fernando Henrique Cardoso?
Skidmore -
Primeiro, na constituição do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), logo depois que ele, Florestan Fernandes e Octavio Ianni perderam suas cadeiras na USP -acho que em 1969. Eu tinha muitos contatos com a Fundação Ford, que ajudou Fernando Henrique e os outros a fundarem o Cebrap. Acompanhei o processo. Um assessor importante da Fundação Ford disse uma vez que o mais fácil para esses homens seria ir para os Estados Unidos como professores, tendo uma vida muito boa, ou irem para outros países da América Latina, o que seria melhor, pois estariam salvos para o mundo latino; mas o ideal seria que ficassem no Brasil, se fosse possível. Por isso, a Fundação Ford deu dinheiro para fundar o Cebrap. A embaixada americana não gostou, por achar que a Fundação Ford estava apoiando subversivos.
Folha - O sr. trabalhou com ele no Cebrap?
Skidmore -
Acompanhei a fundação. E depois, nos Estados Unidos, foi fundado o Centro de Estudos Latino-Americanos, na Smithsonian Institution, para o qual Fernando Henrique foi convidado como membro do conselho -e eu também fui convidado. Trabalhamos juntos por uns cinco anos naquele centro em Washington (DC). Foi interessante. Ele estava evoluindo da idéia de dependência para a de dependência associada; ele tem uma mente muito fértil. Ele sempre foi muito interessante nas reuniões do conselho, sempre mudando um pouco a coisa, sempre explicando sua última interpretação.
Também o conheci em Princeton, quando ele passou seis meses no Instituto de Estudos Avançados e além disso em várias outras convenções e debates sobre dependência. Lembro-me muito bem de um desses debates, quando um dos participantes, um americano, fez uma crítica pesada, pedante, à teoria da dependência. Quando Fernando Henrique levantou para refutar as idéias do sujeito, parecia um jogador de futebol brasileiro que está driblando a bola e o gringo, o "politólogo", que não sabe onde ela está, se está entre as pernas, se está do outro lado. Fernando Henrique capturou toda a platéia e o gringo, coitado, não sabia o que estava acontecendo.


FHC deixou o socialismo para ganhar uma eleição, para ficar bonitinho e conhecer a rainha da Inglaterra


Folha - Parece que FHC evoluiu tanto em suas idéias que, para chegar ao poder, fez uma ampla aliança, inclusive com os setores conservadores que, antes, suas teorias criticavam. O que o sr. acha do governo FHC?
Skidmore -
O primeiro fato é que estudioso e político são duas coisas completamente diferentes. Se você quiser fazer política, sendo democrata, vai precisar do apoio de alguém. Fernando Henrique optou pela carreira de político, que não tem nada a ver com aquele professor que está analisando as coisas. Como político, você tem de enfrentar as oposições e arranjar uma coalizão. No Brasil daquele momento (1994) só houve possibilidade de ele fazer aliança com a direita, com Antonio Carlos Magalhães. Por quê? Porque o momento era de estabilização. Quem vai fazer a estabilização no Brasil? Não vai ser a esquerda nem o centro; nunca conseguiram. Infelizmente, é a direita. Sacrifica-se o aspecto social, fazendo-se a estabilização a curto prazo; é inevitável. Felizmente, para Fernando Henrique, numa dessas consequências não previstas, o fim da inflação no Brasil melhorou a situação da faixa de renda mais baixa da população brasileira, devido ao custo da cesta básica, pelo menos durante dois anos. A classe média sofreu com a subida dos preços dos serviços, que não estão no comércio internacional.
Folha - Qual o problema maior do governo?
Skidmore -
Ele tem o problema de continuar com a estabilização, ele escolheu defender o real, uma coisa dos conservadores, sacrificando a possibilidade de crescimento econômico -esse, eu acho, é o problema maior.
Folha - Como o sr. analisa essa opção?
Skidmore -
O governo Fernando Henrique Cardoso fez uma avaliação política, achando que a coisa mais importante é preservar a imagem do real. Por quê? Porque isso ganhou a eleição em 1994. Segundo, o aspecto psicológico da inflação baixa é muito importante. Houve uma conquista, a confiança do povo na moeda, e ele acha que isso, em termos políticos, é de muito valor, é a espada para sua reeleição. Mas o custo disso é que você tem de sacrificar o desenvolvimento. O real é supervalorizado e o governo não quer admitir nem reconhecer isso.
De modo que, para proteger o real, cria-se um desequilíbrio na balança de pagamentos (excesso de importação e falta de exportação) e ele tem de atrair capital estrangeiro para contrabalancear o déficit. Como atrair esse capital estrangeiro? Pode ser com a imagem do Brasil como um paraíso para o investidor ou com sua política de juros altos, atraindo o "hot money". Isso é muito perigoso e o governo fica muito vulnerável a uma corrida contra o real; logo, ele tem de fazer tudo para proteger a imagem da moeda, desincentivando o crescimento doméstico.
Fernando Henrique optou por um determinado tipo de capitalismo, abandonando o socialismo. Ele deixou o socialismo para ganhar uma eleição, para ser presidente, para viajar, para ficar bonitinho e conhecer a rainha da Inglaterra. Mas isso tem um custo, e esse custo é ele não criar condições para o capitalismo funcionar no país de maneira mais eficiente, para criar mais riqueza.
Folha - A política econômica do governo poderia ser diferente?
Skidmore -
Poderia, mas com riscos. Ele pode desvalorizar o real de uma maneira mais rápida e estimular o crescimento. Há alguns tipos de investimentos que são clássicos. Para não agravar o balanço de pagamentos você pega a construção civil. O Brasil tem um déficit muito grande de habitação. A construção civil absorve muita mão-de-obra, não utiliza quase nada importado e dá um produto de alto valor social. Mas é preciso um investimento do governo no setor. O dilema de Fernando Henrique, além de ser um refém do real supervalorizado, é também ser refém da estrutura que Getúlio construiu no Brasil, como o sistema das pensões e aposentadorias.
Folha - O sr. acha que a década de 90 já está perdida para o Brasil?
Skidmore -
Sim, já estamos em 1998. Acho que a única solução dentro do sistema capitalista é um crescimento de, no mínimo, 6% ao ano, para criar os empregos e o desenvolvimento. Em termos da dívida social, a década está perdida. A taxa de crescimento brasileiro é historicamente muito alta até 1980, mas a partir daí está nesse beco sem saída. Parece que Fernando Henrique quer passar para a história como o homem que estabilizou o real, a moeda. Isso não me parece uma imagem muito boa.
Folha - Uma das forças da teoria da dependência associada, desenvolvida por Fernando Henrique, era o papel da multinacional como agente ao mesmo tempo de desenvolvimento e de um desenvolvimento dependente. O sr. vê alguma continuidade entre aquela teoria e a política econômica contemporânea do governo?
Skidmore -
O fato é que ele deixou de ser crítico das multinacionais. Eu tinha a idéia de escrever um artigo sobre o que aconteceu com a teoria da dependência. Houve a crise da dívida internacional, os países endividados gastaram uma década, a década de 80, tentando renegociar todas as dívidas. Houve primeiro a ilusão de que seria preciso lutar contra isso: "Vamos criar um bloco, uma frente de países endividados, e não pagar". Alan Garcia foi o campeão dessa idéia, assim como no Brasil Dilson Funaro. Mas na realidade isso não funcionava.
O fato é que os capitalistas, os banqueiros, sabem mais de "front" do que os políticos latino-americanos. Eles têm os seus clubes, os seus "lunchs", de modo que não foi possível dividir os banqueiros. O Brasil teve de engolir todo aquele pagamento e engoliu. Está pagando a dívida de uma maneira brutal e ninguém mais fala sobre isso. Mas esse é um problema ainda muito grave na balança de pagamentos. Fernando Henrique é a expressão disso; agora ele é muito dependente. Dependente do "dinheiro quente", dependente do investimento estrangeiro, dependente da imagem do brasileiro bonzinho... Tudo isso faz dele um dos presidentes mais dependentes, que tem de polir a imagem toda hora.
Folha - Fernando Henrique simboliza a esquerda vencida?
Skidmore -
Acho que sim, embora você tenha de notar que Fernando Henrique sempre foi muito inteligente, nunca fez uma proposta concreta. A prosa dele foi tão densa que até os seus alunos americanos nada entenderam.
Folha - O sr. acha que o estilo político do presidente Bill Clinton ajuda os americanos a compreenderem melhor o estilo populista dos políticos no Brasil?
Skidmore -
Talvez, porque Clinton fala das reformas básicas, educação, assistência médica, essas coisas que são fundamentais para o político populista. O que está faltando é o nacionalismo, ele atacar o capital estrangeiro. Faz sentido.


Será que não há um outro homem, entre 160 milhões de brasileiros, capaz de ser presidente da República?


Folha - Embora o sr. não seja eleitor no Brasil, qual sua opinião sobre a mudança constitucional a favor da reeleição do presidente?
Skidmore -
Na época eu achava que não era bom. O Brasil está tentando começar uma nova experiência como democracia. Um presidente mandar alterar a constituição em favor dele mesmo... isso não me parecia bom. Mas isso revela a fraqueza da infra-estrutura dos partidos no Brasil e do sistema político brasileiro. Será que não há um outro homem, entre 160 milhões de brasileiros, capaz de ser presidente da República? Se não há um, isso é um mau sinal. Fernando Henrique apostou tudo na sua capacidade pessoal, não na do PSDB, que também está sendo desmantelado sob a liderança de Cardoso. Tudo agora depende dos brasileiros, se eles acharem que esse é o único homem, teremos a continuação da política do real. Ainda há o fato de, ao final do segundo mandato, ele também se julgar ainda mais indispensável para continuar -por que não?
Folha - O sr. comparou Fernando Henrique Cardoso a Getúlio Vargas. Em que ambos se parecem?
Skidmore -
O que eu estava tentando dizer é que Fernando Henrique está demonstrando a mesma capacidade de articular as lideranças dos Estados, da mesma forma como fez Getúlio. Isso é uma grande capacidade, provavelmente a maior desde Vargas. Acho também que Fernando Henrique está fazendo tudo por sua personalidade, o que também era o método de Vargas. Ele usa o seu charme, sua conversa com o Maluf, o ACM, o Covas, quer dizer, tem essa capacidade de dissimular, o que é essencial para o político. Eu acho que ele tem isso num grau maior que qualquer outro político brasileiro, excetuando-se Vargas.
Folha - Qual a sua opinião sobre essa maleabilidade de FHC?
Skidmore -
Fernando Henrique é desse tipo de brasileiro que não tem a capacidade de dizer "não" numa conversa, nunca vai dizer "não" ou "discordo, o senhor está errado". Aquele brasileiro que diz: "Ah, é interessante", aquela coisa toda e continua a conversa. No final da conversa você acha que ele tem a sua mesma opinião, o que é uma qualidade atraente. Depois, Fernando Henrique tem uma grande criatividade, a capacidade de levantar idéias, complementar os outros e ensinar. Mas o que o fascina agora é o poder, não são as idéias. O que o interessa é o poder e a maneira de manipular o poder, bem ou mal.
Folha - Além de estudar os problemas de governo, o sr. vem pesquisando outras questões complementares, como as relações raciais no Brasil. O que o motivou a fazer esse tipo de pesquisa?
Skidmore -
Ao chegar ao Brasil, notei que o sistema era diferente do americano, mas diferente como? Geralmente o americano passa por algumas etapas enfrentando as relações raciais no Brasil. Primeiro é: "Que coisa, que bonito, tudo funciona muito bem, eu vi um negro aqui com uma loira", enfim, aquela conversa de que não há preconceito nenhum. A segunda etapa é: "Eh, meu Deus, tem muito preconceito aqui, é a mesma coisa dos Estados Unidos", o que também não é verdade. Fica perplexo, ele sabe que é diferente, mas não entende como.
Eu tentei entender a diferença, falei com muitas pessoas, com Clóvis Moura, com Eduardo Oliveira e Oliveira, um grande amigo meu e pioneiro dos estudos da raça, e também com Chico Barbosa, que escreveu uma excelente biografia de Lima Barreto e é muito conhecedor das relações raciais no Brasil. O fato de eu ter nascido no Estado de Ohio também deve ter sido importante. Ohio fez parte da estrada de ferro subterrânea durante a Guerra Civil, de negros do Sul indo para o Norte em busca de emprego. De modo que, na minha cidade, as relações raciais são uma questão quente. E finalmente tentei entender o sistema de relações raciais como parte de um sistema maior, o clientelista, completamente diferente do sistema americano.
Folha - A que conclusões o senhor tem chegado nesses estudos?
Skidmore -
Hoje eu acho que o mito da democracia racial no Brasil funciona muito bem. Não só com o branco, mas talvez mais ainda com o mulato e com o negro. Aceita-se a idéia de que raça não é fator, não é variável de primeira importância na vida social; de primeira importância é a classe, educação, ligações pessoais, mas não raça. Isso resulta na dificuldade de gerar consciência na comunidade negra. Outra coisa é a genialidade da "invenção" do mulato, como se o meio termo lhe propiciasse mais chances do que as do negro. Nos Estados Unidos quase nunca houve esse mito, houve apenas em Charleston e Nova Orleans. Em geral, o mulato aqui é negro e não houve maneira de fugir a isso. No Brasil o mulato foge, mas o fato é que, pelos dados, o mulato tem pouquíssima chance a mais que o negro. Os dados sobre educação e emprego mostram que o mulato está mais próximo do negro que do branco. Mas isso parece não fazer diferença, a idéia domina.
Folha - O sr. acha que raça é uma variável importante para explicar as diferenças sociais no Brasil?
Skidmore -
Eu acho que é muito importante, obviamente é importante, mas os brasileiros não acham. Esse é o poder do mito. Você olha para o Exército, os generais, os bispos, o Congresso, os professores. Claro que há problemas, mas o povo brasileiro em geral, a meu ver, não acha que seja um problema de raça, o que torna o tema difícil. Em geral, o Estado brasileiro ignora, não liga, não dá importância ao assunto. A Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) de 1976 mostrou, pela primeira vez na história do Brasil, as consequências da cor nas chances de vida do brasileiro. Ninguém ligou, incrível! Você pode citar, mas essa questão não penetrou na consciência do brasileiro.
Folha - No Brasil está-se agora desenvolvendo um debate sobre a idéia das ações afirmativas, justamente quando nos Estados Unidos está ocorrendo um debate questionando as ações afirmativas. Como o sr. vê isso?
Skidmore -
O debate vai continuar aqui nos Estados Unidos, ainda com esse tipo de retrocesso na discussão. Em certo sentido tudo isso foi fundado no sentimento de culpa sobre escravidão, espoliação, essas coisas todas. No Brasil não há sentimento de culpa, pelo menos eu não o notei. Em geral isso é uma coisa do protestantismo. O católico vai ao padre, confessa tudo e tudo fica certo com Deus. Mas o protestante, coitadinho, não tem essa capacidade de aparecer e falar ao padre todas as barbaridades, de modo que ele tem de compensar os pecados do passado. Eu acho que isso é importante na cultura americana. No Brasil o debate sobre ação afirmativa é muito fraco, muito fraco.
Folha - Creio que a questão da ação afirmativa no Brasil tem um traço secundário perante um outro problema fundamental, que é o quase absoluto fracasso do sistema de educação pública. No seu ponto de vista, há solução para a questão educacional no país?
Skidmore -
Provavelmente, liquidando-se todos os centros de administração da educação. O Brasil atualmente está gastando em educação uma porcentagem do produto nacional bruto igual à de outros países, como a Coréia do Sul, por exemplo. Mas o resultado é completamente diferente. E óbvio que tem muito dinheiro que está sendo perdido na linha, dinheiro que começa na capital e não chega à cidade do interior.
Também é preciso melhorar as condições de trabalho dos professores. Não existe o financiamento efetivo para o sistema primário, e o curioso é que na elite não existe apoio para melhorar o sistema educacional, o que é ainda mais curioso, porque o capitalismo e o sistema industrial necessitam de um exército de mão-de-obra qualificada. Isso em parte vem sendo feito pela indústria, mas não é tudo. A meu ver, essas soluções exóticas, bizarras, como isso que quer o ministro Paulo Renato, colocando televisão e computadores em escolas que sequer têm uma linha telefônica, isso é bagunça, não vai solucionar o problema da educação no Brasil.


Fernando Conceição é jornalista.
Walter Dávila é doutor em história pela Universidade Brown (EUA).


OBRAS DE SKIDMORE

Brasil - De Getúlio a Castelo - Tradução de Ismênia Tunes Dantas. 512 págs. R$ 34,50.

Brasil - De Castelo a Tancredo - Tradução de Mário Salviano Silva. 608 págs. R$ 39,50.

O Brasil Visto de Fora - Tradução de Susan Semler. 512 págs. R$ 34,50.

Preto no Branco - Raça e Nacionalidade no Pensamento Brasileiro - Tradução de Raúl de Sá Barbosa. 292 págs. R$ 23,50.
Todas os livros foram editadas no Brasil pela Paz e Terra (r. do Triunfo, 177, CEP 01212-010, SP, tel. 011/223-6522).



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