São Paulo, domingo, 17 de maio de 1998

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LIVROS
Crueldade à brasileira


Mojica Marins, o Zé do Caixão, faz uma projeção alucinada da cultura popular


GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Para quem quiser conhecer o processo cultural brasileiro dos últimos 30 anos, é fundamental a leitura desse livro sério, comovente e divertido sobre o cineasta Mojica Marins, escrito a quatro mãos por André Barcinski e Ivan Finotti, num estilo coloquial e enxuto que lembra o grande escritor paulista Monteiro Lobato.
Trata-se de uma excelente pesquisa que dispensa as notas ao pé de página e a bibliografia, ao contrário do que tem sucedido com a chatíssima academização no mundo editorial brasileiro.
No prefácio, primor de crítica cinematográfica, Rogerio Sganzerla discorre sobre a aventura de Mojica: a de fazer cinema "sem dinheiro e sem cultura". Acrescente-se aí, porém, o fato de Mojica ter incorporado ao cinema a tradição oral do folclore brasileiro. Sua vida tumultuária parece a de um pícaro ibérico.
O D. Quixote ferrado, o Dante Alighieri do Brás, o Drácula de botequim, o Luis Buñuel suburbano, o Nietzsche do cangerê, o Edgar Allan Poe da Boca do Lixo, o Rabelais do lúmpen-proletariado. Esses epítetos engraçados podem ser utilizados para classificá-lo; todavia, o que o define é a projeção alucinada da cultura popular no cinema, sobretudo aquilo que é o medo primário -a essência do terror- para o homem brasileiro do povo: o de ser enterrado vivo.
Ou ainda o infortúnio do morto sem sepultura, vagando por aí. O morto vivo. O zumbi. A alma penada. O espírito errante do defunto cadáver que não descansa, pois, afinal, cemitério é dormitório.
A morte só respeita o morto. Esboçado num pesadelo à época do general Médici, o personagem Zé do Caixão (similar ao do Jeca Tatu) significa, por antonomásia, o direito democrático de todo homem brasileiro possuir seu próprio túmulo, já que não existe maior receio apavorante, no meio do povo, do que o regresso do morto baixando em corpo vivo.
Vai baixar noutro terreiro, Exu!
O caixão do Zé. Se alguém estica a canela, nunca é pronunciado o nome do morto, mas sim o finado marido ou a finada mulher. Cinematograficamente, Zé do Caixão é a viagem de "thanatos" na cultura popular, tematizando o sobrenatural ou o além do além.
Os autores mostram como a vida e a obra de Mojica estão regidas pelo signo do paradoxo. A começar pelo fato de ser ele um semi-analfabeto (tendo abandonado a escola aos 13 anos) que foi professor alternativo e não-oficial de artes dramáticas, montando inicialmente seu estúdio dentro de um galinheiro.


A OBRA
Maldito - A Vida e o Cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão - André Barcinski e Ivan Finotti. Editora 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 011/816-6777). 449 págs. R$ 33,00.



Outro paradoxo: Mojica é um cineasta de origem social humilde, mas considerado o padrinho do cinema experimental das décadas de 60 e 70, homenageado por Candeias, Reichenbach, Ivan Cardoso, Elyseo Visconti, José Sette de Barros, Jairo Ferreira etc.
Ainda outro paradoxo: homem crédulo e religioso (o medo é crédulo, dizia o padre Antonio Vieira), Mojica materializou como ninguém a blasfêmia no cinema brasileiro, além de conseguir transar três mulheres (esposas e amantes) ao mesmo tempo, oscilando entre o horror e o harém.
Curiosamente, a falta de educação letrada antes favoreceu do que prejudicou o manejo das imagens em seus filmes. Escrevem os autores: "Mojica travava duras batalhas com o plural e desde pequeno sofria para pronunciar o 'l'. 'Problema' virava 'pobrema'; 'alvará' era 'arvarau'... Lembremo-nos de que até o general Figueiredo pronunciava "Grauber' Rocha, conforme o testemunho do cineasta em Lisboa. É que no tupi-guarani não havia a letra 'l' ".
A improvisação e a falta de recursos -afora a obstinada vocação cinematográfica- fizeram com que Mojica realizasse planos admiráveis. A propósito, os autores referem-se a "cinema puro", assim como se poderia falar de "específico fílmico", ou seja: aquilo que só é próprio do cinema.
Um clássico a despeito de si mesmo -eis o velho Mojica, singular e inimitável, com a sua dieta "de torresmo, mocotó e ovo de codorna". Dificilmente haverá outro igual, tanto no cinema quanto no teatro.
Uma vez, no Rio de Janeiro, contam os autores, Mojica ganhou de Gustavo Dahl um livro sobre o "terror no cinema". Seu amigo Luis Sergio Person rasgou-lhe o presente. "Person disse: "Mojica, isso aqui vai tirar a tua arte, o teu improviso. Vai te sugar. Você vai perder a identidade. Você me perdoe, mas eu preciso fazer uma coisa' -e começou a rasgar o livro, página por página, gritando como um louco furioso e jogando as folhas para o alto. "Quero que você me prometa que nunca vai ler um livro de cinema' -e Mojica cumpriu a promessa à risca."
Filho circense de Mazzaropi, Mojica -esse "autodidata do cinema"- apresenta uma estética da crueldade à brasileira, infinitamente superior aos Chacrinhas e Ratinhos. Eis a tese fundamental dos autores: a Embrafilme e a censura marginalizaram o "gênio popular" do cinema.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.



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