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+ artes plásticas
O pintor Hermelindo Fiaminghi, 80, que inaugura uma exposição na próxima quinta-feira, fala de sua relação com Volpi e da influência que teve da publicidade
A natureza do avesso
Carlos Adriano
especial para a Folha
Se a têmpera é a alquimia da pintura (forma clara
e gema da cor), Hermelindo Fiaminghi, 80, é o
"miglior fabbro" vivo da essência da luz pictórica
e dessa técnica cromática transubstancial.
Ele a aprendeu observando Alfredo Volpi: de 1959 a
66, trabalhou no mesmo ateliê do mestre pintor do
Cambuci (em São Paulo). Mas, ao contrário de Volpi,
Fiaminghi ousou sobrepor a tinta a óleo à têmpera.
Seu ateliê atual fica no mesmo bairro, perto de sua casa. Ali, o Fia (como o chamam os amigos) concedeu a
entrevista a seguir, enquanto ultimava a exposição que
irá inaugurar no Museu de Arte Moderna de São Paulo
na próxima quinta-feira, dia 21 de junho.
Diante de uma grande tela, comenta que está com ela
"encalhada" há dois anos. Ainda não acabou, insatisfeito com a escala cromática. Pensa em "limpar" o quadro,
das bordas para o centro, "ativando as cores em relações atonais". Pintor de deslumbrantes jogos de luz, cor
e retícula, Fiaminghi é um dos expoentes da arte concreta. Refez vocabulário e sintaxe por revoluções imprevisíveis, desbragado por projetos de risco. Entre o rigor
e o acaso (a ironia no meio-fio), sua obra des/estrutura a
inscrição do gesto e a vibração luminosa.
Subvertendo a noção impressionista com viés pós-concretista, virou a natureza do avesso -fotografou no
parque Ibirapuera folhas em contraluz para fazer retículas e passou dois anos em seu sítio em Eldorado (SP)
sem pintar, apenas olhando a refração da luz nas árvores e na represa. É tema de um excelente livro lançado
pela Edusp: "Hermelindo Fiaminghi", organizado por
Isabella Cabral e M.A. Amaral Rezende, traz rara fortuna visual e bibliográfica, com belas reproduções dos
quadros fazendo coro à pesquisa histórica.
Quais são as suas primeiras lembranças relacionadas à
pintura?
Com 8 anos levei uma bronca de meu pai porque,
com a brocha e a tinta branca que ele havia comprado para pintar a casa, eu pintei a calçada. Gostava da
luz dos lampiões, a noite ganhava cores e era uma
festa. Aos 12, pegava os restos de tinta litográfica,
guardava em caixas de fósforo e pintava com aquela
meleca transparente.
Como foi sua formação?
Em 36, entrei no Liceu de Artes e Ofícios. Estudei desenho (com Giglio) e arquitetura. Em 38-39, com o
curso de geometria de Waldemar da Costa, passei a
frequentar seu ateliê. Ao mesmo tempo em que ensinava pintura, o mestre falava de história da arte. Descobri Cézanne, Monet, Van Gogh.
Sua pintura tem origem na litografia (exercício de decompor cores na mente e na pedra para depois recompor
na sobreposição de matizes)?
Em 35, aos 15 anos, entrei na Melhoramentos. Na litografia, o primeiro passo era olhar o original e fazer
a leitura das cores existentes, para reproduzi-las. Para cada cor programada, uma pedra. Ali, eu fazia cor
por cor. Eu não pinto cor por cor. Eu remonto o quadro com as cores que imagino que vão funcionar. Na
época, a litografia me ensinou muito mais do que a
aula de pintura. Aprendi a retícula, o valor das cores
e a relação entre elas. Tinha uma visualidade da cor
muito especial, mas eu não decorava os nomes das
cores, o que ajudou na pintura.
Houve estímulo de outros artistas?
Joaquim Alves conhecia história da arte e a transmitia aos jovens. Por meio do que ele falava fui em busca de muitas coisas. Eu era amigo de Mário Zanini,
do grupo Santa Helena. Aprendi muito ouvindo o
que falavam de pintura. Não nasci pintor. Ver é uma
coisa; reaprender é outra.
A publicidade também foi uma escola?
Em 50-51, era diretor de arte na Lintas, produzia para a Lever, e ali circulava a moderna revista "Art &
Industry". O designer Leopold Haar mostrou-me o
construtivismo e o abstracionismo, Malevitch e
Kandinsky. Outro ponto de informação importante
foi a Bienal de 53, vi Picasso, Klee, Bauhaus, Volpi.
Como foi o encontro com Volpi?
Conheci o Volpi via Mário Schenberg, numa exposição em 55. Sabia onde era o ateliê dele e fui lá. Ele falou: "O que você quer?". Eu disse: "Quero tudo o que
você tem aí, suas tintas, o que puder me dar". Em 56,
fiz a programação visual do catálogo de sua exposição no MAM da rua Sete de Abril.
Você trabalhou no ateliê da casa dele?
Após participar de um ateliê coletivo no Brás, em 58
(com Waldemar Cordeiro, Décio Pignatari, Fejer,
Nogueira Lima), tive um ateliê ao lado da sala de
Volpi, no Cambuci, entre 59 e 66, com o Décio. Foi
maravilhoso, uma amizade duradoura. Convivi com
o Volpi e isso criou uma certa inveja nos que queriam ser os representantes da sabedoria volpiana.
O que o sr. aprendeu com Volpi?
Aprendi olhando: preparar a tela e fazer têmpera (ele
pintava só com têmpera), misturas de pigmento
com gema (dá liga), clara (flexibilidade), resina damar (luminosidade), óleo de linhaça decantado, carbonato de cálcio, cera de abelha fervida com aguarrás (transparência). Aprendi a respeitar a pintura.
Além disso, aprendi a ser gente (risos). Aprendi a tomar vinho.
O "saber operário" foi adotado depois de sua convivência com ele?
Ele tinha esse princípio "operário": como esticar e
preparar a tela, usar os pigmentos e fazer a têmpera.
Era tudo certo e com a certeza de um trabalho honesto e operário. Isso era um elogio de reconhecimento das coisas que o Volpi fazia. Eu adoto isso.
Mas não é bom dizer que adotei nem depois nem antes nem durante. Não é bom nem dizer. É uma coisa
íntima e necessária, porque tem gente que lê e ouve,
e não fala como ouve e falseia a coisa.
Dá para falar algo de seu convívio com ele?
Não é fácil. Não adianta, você escreve e quem lê pode
interpretar mal. As coisas que eu falava do Volpi
eram verdadeiras, não podiam parecer falsas se diluídas. Porque o cara não soube nem sequer ler para
escrever o que escreveu. O entendimento de uma
coisa é mais importante do que ouvir a coisa. A reinterpretação falseia a verdade. A verdade é uma outra,
muito mais simples.
O sr. é bastante reticente quanto a isso...
Há muitas verdades. Não é fácil falar uma nem algumas. Uma das verdades... Volpi não gostava de
quem falava que ele só gostava de vinho Bolla. E ele
só gostava de vinho Bolla, era uma verdade. Mas ele
não gostava que falassem isso. Era um vinho muito
caro e ele mal tinha dinheiro para comprar. Embora
ele vendesse bem seus quadros, sua mulher ficava
com todo o dinheiro e não comprava o vinho Bolla
para ele. Quem lhe dava muito Bolla era o Schenberg.
Outra? Não sei fazer pergunta para críticos e eles
também não sabem fazer para mim. Nem os poetas
sabem. Sou um cara difícil como o Volpi era. Quando o Décio perguntava, ele falava: "É, mas o Décio
vem aqui me fazer umas perguntas meio esquisitas".
Depois da verdade...
E suas relações com os poetas concretos?
Conheci Augusto e Haroldo em 55. Décio, em 56. Somos muito
amigos até hoje. Fiz a programação visual dos poemas da Primeira Exposição de Arte Concreta (56) e a capa serigráfica da revista "Noigandres 4" (58), com formas recortadas à mão. Produzi e diagramei o livro "Xadrez de Estrelas" (74), de Haroldo, que
nomeou meus quadros "Casulíricos". Fiz uma série de litografias com Décio (96). E pintei "desretratos retícula corluz" de cada um deles, em 85, quando pintei também o de Volpi.
Como avalia a contribuição da arte concreta para as artes brasileiras?
A arte concreta é tão amaldiçoada por quem faz a arte brasileira... Eu tenho uma opinião formada, que é arrasadora para a arte
brasileira. A arte concreta é a coisa mais importante que existiu
sobre a face da terra, aqui e no exterior. Mas tenho minha liberdade. Não faço mais arte concreta, mas ainda sou concreto.
A arte concreta é algo que a arte brasileira ainda não engoliu direito?
Ainda não viu direito. Os pintores que fazem a outra pintura não
podem nem ver a arte concreta nem saber se ela existe, por que
existe, o que é. Nem sabem o que quer dizer, não querem nem
saber. Você por aí já pode medir o que ela representa. Amaldiçoaram um bando de pintores concretos por não entenderem a
arte concreta. Você não sabe como é triste viver num país onde
um bando de ignaros completos o detesta porque você faz uma
arte diferente.
Como define a "corluz"?
Eu inventei a corluz e você me pergunta como a defino? É o título
de uma série de pinturas, mas não é só isso, é mais do que isso. A
"corluz" não é teoria, técnica ou processo. Uma vez, defini: fusão
e difusão da cor por incidência de luz.
"Corluz" seria concreto, como "Long Play" ou "Virtuais"?
Não é ortodoxo; tem concreto. Mas não se pode dizer que seja
um quadro concreto (que não representa certas emoções, não
tem essa paleta de cores). Se você souber ler a difusão da cor por
incidência de luz, você faz a leitura de um quadro que é concreto
sem dizer que o quadro é concreto. Pintura também se lê: leitura
visual da pintura.
A vibração é produzida pelo contraste entre matizes?
É produzida pela luminosidade que as cores emitem, pela relação entre as cores. Um vermelho e um verde têm uma vibração,
que emite uma anticor, uma antiluz. Não é tranquilo olhar um
verde e um vermelho juntos. Eles geram uma vibração de contraste de cores que lutam entre si. Processo é o que cria. A vibração é um processo. Isso me lembra algo que queria fazer para as
pessoas aprenderem a leitura das cores. Algo que fugisse do efeito, mas proporcionasse uma leitura para o entendimento da cor
e da relação entre as cores. Só a pintura faz isso. Não um quadro
pintado, mas um estudo apurado.
Parece que o sr. jogou telas, cavalete e tintas no rio várias vezes...
No Tamanduateí. Não gostava do que saía. Quem pinta de improviso tem que aceitar o próprio improviso. Quantas vezes joguei quadros fora? Quantos dias tem o mês? Tudo que não prestava eu jogava... Alguma coisa concreta também.
Fale do seu retiro no sítio-ateliê de Eldorado, de 1980 a 1982.
Eu quis me modificar interiormente, para depois mudar a pintura, reciclar o interior com a natureza. Sentava no poço e ficava
observando a refração do sol na água e no verde. Isso me ensinou muito na pintura. O ver da paisagem, o infinito da paisagem
e fazer uma coisa construída, como a arte concreta. A luz da pintura só existe se você pintar. Se não pintar, não existe.
Carlos Adriano é mestre em cinema pela USP e diretor de, entre outros, "Remanescências" e "A Luz das Palavras".
Colaborou Bernardo Vorobow.
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