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Em "Das Memórias do Senhor de Schnabelewopski" o alemão Heine contrapõe de forma paródica prazer carnal e espiritualidade
Um pícaro caricatural
Marcus Mazzari
especial para a Folha
Numa célebre passagem do livro
"Ecce Homo", Nietzsche declara ter recebido de Heine o seu
"mais elevado conceito de poeta lírico". E, em seguida, o filósofo diz
procurar em vão, ao longo de toda a história da poesia, por uma música "igualmente doce e apaixonada".
Mas esse lirismo envolvente, que também atraiu tantos compositores, constitui apenas uma faceta da obra de Heinrich Heine (1797-1856), ao lado de relatos de viagem, longas sátiras em versos,
textos teóricos e jornalísticos, tragédias
etc. E, mesmo enquanto lírico, Heine
deixou poemas que encontram poucos
paralelos na chamada literatura engajada, como "Os Tecelões da Silésia" (1844),
com o seu ritmo imitativo do trabalho
dos teares conclamando os tecelões sublevados a tecerem a mortalha da velha
sociedade. Ou então "O Navio Negreiro"
(1853), que desmascara a engrenagem
capitalista do tráfico de escravos para o
Rio de Janeiro, poema que Castro Alves
conheceu provavelmente em tradução
francesa e do qual diz o Conselheiro Aires, no último romance de Machado de
Assis, ter perenizado a vergonha da escravidão no Brasil.
Menos conhecido e admirado é o Heine que incursionou pela ficção narrativa,
nas novelas das "Noites Florentinas" (ed.
Mercado Aberto, 1998) e nos fragmentos
romanescos "O Rabi de Bacherach"
(Hucitec, 1992) e "Das Memórias do Senhor de Schnabelewopski", que chega
agora às mãos do leitor brasileiro na cuidadosa tradução de Marcelo Backes,
acompanhada de notas que elucidam
alusões, trocadilhos e outros detalhes da
narrativa.
Publicado em 1833 no primeiro volume da série "Salon", este
relato autobiográfico de
um presumível nobre polonês é fruto, em grande
parte, do interesse de Heine pela literatura espanhola (o "Quixote" foi um
dos livros que mais amou
e sobre ele escreveu páginas de grande beleza), em
especial pela tradição picaresca.
É certo que o título de nobreza desse
"von" Schnabelewopski contradiz a baixa condição social do autêntico pícaro,
mas aqui a aura aristocrática é antes caricatural e serve apenas para engendrar
efeitos cômicos, como se percebe já na
caracterização da infância e adolescência
do herói nas terras de Schnabelewopf, a
convivência com os excêntricos familiares e criados de nome Swurtszka e
Prrschtzztwitsch (parece difícil, mas a dica do narrador para uma boa pronúncia
é espirrar ao mesmo tempo).
No dia seguinte a uma vivência erótica
na catedral de Gnesen, o herói deixa a
Polônia e a partir daí as memórias vão
desenrolando etapas de sua vida em
Hamburgo e nas cidades holandesas de
Amsterdã e Leiden. Essas viagens propiciam constantes mudanças de cenário,
ganhando assim Schnabelewopski a mobilidade que caracteriza o pícaro; ao contrário, porém, de um Lazarillo de Tormes ou Guzmán de Alfarrache, aquele se
mostra antes como observador (aliás,
sempre satírico) do que participante ativo da vida social.
Vulgívagas
Mesmo assim, algumas
provas e aventuras não se fazem esperar,
sobretudo eróticas: em Hamburgo, com
as vulgívagas Heloísa e Minka; em Amsterdã, com uma loura anônima, durante
a representação teatral do "Holandês
Voador" ou, como é conhecido entre
nós, "O Navio Fantasma" (a criação de
Heine serviu de base para a ópera homônima de Richard Wagner); em Leiden,
com a dona da estalagem "A Vaca Vermelha", relação da qual busca tirar para
si vantagens culinárias.
Gastronomia e sexualidade formam
aliás um par inseparável ao longo do romance, e sempre contrapostas à esfera
da religiosidade: são os dois pólos que
balizam a trajetória de
Schnabelewopski em suas
diversas etapas, reflexo literário de uma questão
que aflorava também nos
escritos teóricos do Heine
de então, próximo de um
ateísmo com matizes panteístas. A resposta positiva
a essa oposição entre hedonismo e espiritualismo delineia-se no
capítulo 11, em que o narrador evoca a vida e a obra do pintor holandês Jean
Steen, que mais do que qualquer outro
"compreendeu que nossa vida é tão-somente um beijo colorido de Deus e soube que a manifestação mais significante
do Espírito Santo se dá através do riso e
da luz".
O ensejo para o excurso sobre Jean
Steen é concreto: a casa em que este viveu
e trabalhou no século 17 é a mesma que
alberga agora o jovem polonês durante o
estudo de teologia em Leiden. O memorialista descreve então a convivência diária com estudantes engalfinhados em
permanente disputa sobre questões filosóficas e religiosas: o pequeno deísta
Sansão, o gordo fichtiano Driksen, o
panteísta Vanpitter, Van Moeulen etc.
Uma discussão entre os dois primeiros,
desembocando num duelo de consequências fatais, serve a Heine para conferir certo arredondamento ao fragmento
romanesco.
Gravemente ferido pelo fichtiano (o
duelo possui também caráter alegórico e
revela a superioridade de uma concepção de mundo sobre a outra), o judeu
deísta é levado pela febre a um desvario
em que mais uma vez ressoa o fascínio de
Heine pelo "Quixote". Evidentemente,
não é com cavaleiros andantes à la Amadis que o pequeno Sansão vai se identificar, mas sim com o seu poderoso tocaio
bíblico. E nesse ponto se manifesta ainda
outra diferença em relação ao herói de
Cervantes que, como se sabe, morre lucidamente como o pacato Alonso Quijano.
O personagem heiniano, ao contrário,
atinge em seus últimos instantes o paroxismo do delírio: trechos do "Livro dos
Juízes" que narram a história de Sansão
o levam a misturar lances da lenda bíblica com circunstâncias de sua própria vida, até que por fim tenta fazer com as colunas de seu leito o que fez Sansão com as
colunas do templo dos filisteus: elas porém nem sequer balançam e, esgotado, o
pequeno judeu cai sobre os travesseiros,
"e de sua ferida, cuja venda havia se soltado, brotou uma torrente de sangue
vermelho".
Paródia, ironia, humor são, como se
vê, os ingredientes fundamentais da narrativa de Heine e permitem compreender por que o seu estilo suscitou tantas
vezes (inclusive por parte de Marx) a
comparação com Aristófanes. Contudo
nem sempre a sua verve alcança o efeito
desejado, e o leitor sente então que a
compulsão pelo espirituoso antes enfraquece do que adensa a narrativa. Felizmente os momentos mais rasos da obra
são plenamente compensados por outros de grande força imagética, como a
impagável sátira aos prósperos cidadãos
de uma Hamburgo invernal, com os seus
cisnes mutilados grasnando miseravelmente no lago congelado; ou ainda a maravilhosa sucessão de metáforas náuticas
no início do sexto capítulo, que se superam umas às outras para simbolizar a
partida do herói em busca de aventuras.
Passagens como essas fazem o leitor lamentar que o curto fôlego épico de Heine
o tenha impedido de levar um pouco
mais adiante essa sua incursão pela tradição picaresca.
Marcus Mazzari é professor de teoria literária na
USP e autor do livro "Romance de Formação em
Perspectiva Histórica" (Ateliê).
Das Memórias do Senhor
de Schnabelewopski
104 págs., R$ 19,00
de Heinrich Heine. Tradução de
Marcelo Backes. Boitempo Editorial (av. Pompéia, 1.991, CEP
05023-001, SP, tel. 0/ xx/ 11/
3865-6947).
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