São Paulo, domingo, 17 de junho de 2001

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Em "Das Memórias do Senhor de Schnabelewopski" o alemão Heine contrapõe de forma paródica prazer carnal e espiritualidade

Um pícaro caricatural

Marcus Mazzari
especial para a Folha

Numa célebre passagem do livro "Ecce Homo", Nietzsche declara ter recebido de Heine o seu "mais elevado conceito de poeta lírico". E, em seguida, o filósofo diz procurar em vão, ao longo de toda a história da poesia, por uma música "igualmente doce e apaixonada". Mas esse lirismo envolvente, que também atraiu tantos compositores, constitui apenas uma faceta da obra de Heinrich Heine (1797-1856), ao lado de relatos de viagem, longas sátiras em versos, textos teóricos e jornalísticos, tragédias etc. E, mesmo enquanto lírico, Heine deixou poemas que encontram poucos paralelos na chamada literatura engajada, como "Os Tecelões da Silésia" (1844), com o seu ritmo imitativo do trabalho dos teares conclamando os tecelões sublevados a tecerem a mortalha da velha sociedade. Ou então "O Navio Negreiro" (1853), que desmascara a engrenagem capitalista do tráfico de escravos para o Rio de Janeiro, poema que Castro Alves conheceu provavelmente em tradução francesa e do qual diz o Conselheiro Aires, no último romance de Machado de Assis, ter perenizado a vergonha da escravidão no Brasil. Menos conhecido e admirado é o Heine que incursionou pela ficção narrativa, nas novelas das "Noites Florentinas" (ed. Mercado Aberto, 1998) e nos fragmentos romanescos "O Rabi de Bacherach" (Hucitec, 1992) e "Das Memórias do Senhor de Schnabelewopski", que chega agora às mãos do leitor brasileiro na cuidadosa tradução de Marcelo Backes, acompanhada de notas que elucidam alusões, trocadilhos e outros detalhes da narrativa. Publicado em 1833 no primeiro volume da série "Salon", este relato autobiográfico de um presumível nobre polonês é fruto, em grande parte, do interesse de Heine pela literatura espanhola (o "Quixote" foi um dos livros que mais amou e sobre ele escreveu páginas de grande beleza), em especial pela tradição picaresca. É certo que o título de nobreza desse "von" Schnabelewopski contradiz a baixa condição social do autêntico pícaro, mas aqui a aura aristocrática é antes caricatural e serve apenas para engendrar efeitos cômicos, como se percebe já na caracterização da infância e adolescência do herói nas terras de Schnabelewopf, a convivência com os excêntricos familiares e criados de nome Swurtszka e Prrschtzztwitsch (parece difícil, mas a dica do narrador para uma boa pronúncia é espirrar ao mesmo tempo). No dia seguinte a uma vivência erótica na catedral de Gnesen, o herói deixa a Polônia e a partir daí as memórias vão desenrolando etapas de sua vida em Hamburgo e nas cidades holandesas de Amsterdã e Leiden. Essas viagens propiciam constantes mudanças de cenário, ganhando assim Schnabelewopski a mobilidade que caracteriza o pícaro; ao contrário, porém, de um Lazarillo de Tormes ou Guzmán de Alfarrache, aquele se mostra antes como observador (aliás, sempre satírico) do que participante ativo da vida social.

Vulgívagas
Mesmo assim, algumas provas e aventuras não se fazem esperar, sobretudo eróticas: em Hamburgo, com as vulgívagas Heloísa e Minka; em Amsterdã, com uma loura anônima, durante a representação teatral do "Holandês Voador" ou, como é conhecido entre nós, "O Navio Fantasma" (a criação de Heine serviu de base para a ópera homônima de Richard Wagner); em Leiden, com a dona da estalagem "A Vaca Vermelha", relação da qual busca tirar para si vantagens culinárias.
Gastronomia e sexualidade formam aliás um par inseparável ao longo do romance, e sempre contrapostas à esfera da religiosidade: são os dois pólos que balizam a trajetória de Schnabelewopski em suas diversas etapas, reflexo literário de uma questão que aflorava também nos escritos teóricos do Heine de então, próximo de um ateísmo com matizes panteístas. A resposta positiva a essa oposição entre hedonismo e espiritualismo delineia-se no capítulo 11, em que o narrador evoca a vida e a obra do pintor holandês Jean Steen, que mais do que qualquer outro "compreendeu que nossa vida é tão-somente um beijo colorido de Deus e soube que a manifestação mais significante do Espírito Santo se dá através do riso e da luz".
O ensejo para o excurso sobre Jean Steen é concreto: a casa em que este viveu e trabalhou no século 17 é a mesma que alberga agora o jovem polonês durante o estudo de teologia em Leiden. O memorialista descreve então a convivência diária com estudantes engalfinhados em permanente disputa sobre questões filosóficas e religiosas: o pequeno deísta Sansão, o gordo fichtiano Driksen, o panteísta Vanpitter, Van Moeulen etc. Uma discussão entre os dois primeiros, desembocando num duelo de consequências fatais, serve a Heine para conferir certo arredondamento ao fragmento romanesco.
Gravemente ferido pelo fichtiano (o duelo possui também caráter alegórico e revela a superioridade de uma concepção de mundo sobre a outra), o judeu deísta é levado pela febre a um desvario em que mais uma vez ressoa o fascínio de Heine pelo "Quixote". Evidentemente, não é com cavaleiros andantes à la Amadis que o pequeno Sansão vai se identificar, mas sim com o seu poderoso tocaio bíblico. E nesse ponto se manifesta ainda outra diferença em relação ao herói de Cervantes que, como se sabe, morre lucidamente como o pacato Alonso Quijano.
O personagem heiniano, ao contrário, atinge em seus últimos instantes o paroxismo do delírio: trechos do "Livro dos Juízes" que narram a história de Sansão o levam a misturar lances da lenda bíblica com circunstâncias de sua própria vida, até que por fim tenta fazer com as colunas de seu leito o que fez Sansão com as colunas do templo dos filisteus: elas porém nem sequer balançam e, esgotado, o pequeno judeu cai sobre os travesseiros, "e de sua ferida, cuja venda havia se soltado, brotou uma torrente de sangue vermelho".
Paródia, ironia, humor são, como se vê, os ingredientes fundamentais da narrativa de Heine e permitem compreender por que o seu estilo suscitou tantas vezes (inclusive por parte de Marx) a comparação com Aristófanes. Contudo nem sempre a sua verve alcança o efeito desejado, e o leitor sente então que a compulsão pelo espirituoso antes enfraquece do que adensa a narrativa. Felizmente os momentos mais rasos da obra são plenamente compensados por outros de grande força imagética, como a impagável sátira aos prósperos cidadãos de uma Hamburgo invernal, com os seus cisnes mutilados grasnando miseravelmente no lago congelado; ou ainda a maravilhosa sucessão de metáforas náuticas no início do sexto capítulo, que se superam umas às outras para simbolizar a partida do herói em busca de aventuras.
Passagens como essas fazem o leitor lamentar que o curto fôlego épico de Heine o tenha impedido de levar um pouco mais adiante essa sua incursão pela tradição picaresca.


Marcus Mazzari é professor de teoria literária na USP e autor do livro "Romance de Formação em Perspectiva Histórica" (Ateliê).



Das Memórias do Senhor de Schnabelewopski
104 págs., R$ 19,00 de Heinrich Heine. Tradução de Marcelo Backes. Boitempo Editorial (av. Pompéia, 1.991, CEP 05023-001, SP, tel. 0/ xx/ 11/ 3865-6947).




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