São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2000

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O grande herói americano

por Gore Vidal


Por quase três anos, Lindbergh eletrizou o país com os seus discursos e comícios; estava em curso naquele momento, no final dos anos 30, a primeira e até agora única grande polêmica do "século americano"


continuação

Como pilotos militares continuavam caindo dos céus, o presidente Roosevelt voltou atrás. Declarou que o correio aéreo ficaria nas mãos de qualquer linha comercial que não tivesse sido beneficiada pelo regime anterior. A velha TAT, agora Transcontinental and Western Air, transformou-se em Trans World Airlines. Lindbergh encarava essa solução semântica como "reminiscência de algo que poderia ser encontrado em "Alice no País das Maravilhas'".
A inevitável cena schilleriana entre os antagonistas não ocorreu antes de abril de 1939. Lindbergh ficou impressionado -foi enganado, achavam alguns- com a Força Aérea militar alemã. A serviço do Exército americano também foi à União Soviética, onde ficou chocado com a incompetência militar geral e deprimido com o sistema político. Como tantos outros conservadores americanos daquele tempo, ele temia o comunismo "asiático" mais do que a eficiência nazista.
De qualquer forma, depois de quase quatro anos de exílio, voltou para casa a fim de fazer campanha pelo desenvolvimento militar dos Estados Unidos, para o caso de alguma eventualidade. Ele também retornou para pregar contra o envolvimento americano na iminente guerra européia. No bojo desse processo de desenvolvimento militar, os dois heróis, como eram aliados cautelosos, encontraram-se pela primeira e última vez.
Narra Lindbergh em seu diário:
"Fui ver o presidente por volta das 12h45 (...). Ele estava sentado atrás da sua escrivaninha num dos cantos de uma grande sala. Havia várias navios em miniatura em volta de todas as paredes. Ele inclinou-se para frente na sua cadeira para me recepcionar quando entrei e só agora me lembro de que ele é deficiente. De fato, durante o nosso encontro não notei ou pensei nisso. Imediatamente me perguntou como estava Anne, mencionando o fato de que ela conhecera a filha dele no colégio. Ele é um interlocutor talentoso, encantador e interessante. Gostei dele e senti que poderíamos nos dar bem. Nossa relação poderia ser agradável e interessante.
Mas havia algo nele em que eu não confiava, algo um pouco encantador demais, por demais agradável, excessivamente fácil. Ainda assim, ele é o nosso presidente e não há razão para qualquer tipo de antagonismo entre nós em relação ao trabalho que estou fazendo agora. A situação do correio aéreo já é coisa do passado -uma das piores manobras políticas que eu conheci, além de injusta ao extremo, para dizer o mínimo. Mas não levaria a nada retomar esse assunto durante a conversa.
Roosevelt me deu a impressão de ser um homem cansado, mas com energia bastante para levar as coisas adiante por muito tempo. Duvido que ele perceba o quão cansado é. O seu rosto tem aquele olhar cinzento de empresário que trabalha demais. E a sua voz tem aquele tom monocórdico, rotineiro, que a pessoa adquire quando a mente fica entediada por conversas numerosas e frequentes demais. A voz tem aquela característica monótona que toma conta de todos os sentidos quando são empregados em excesso: o paladar, quando a comida é sempre a mesma dia após dia; a audição, quando a música não muda nunca; o tato, quando a mão da pessoa nunca se ergue.
Rapidamente Roosevelt faz uma idéia da pessoa à sua frente e a manipula com destreza. Na maioria das vezes, é político, e acho que nós nunca nos daríamos bem com relação a vários princípios fundamentais. Mas há coisas nele de que gosto: por que se preocupar com os outros a não ser -e até- que eles necessitem de consideração? É melhor que trabalhemos juntos o máximo que pudermos. Entretanto de alguma forma eu tenho uma sensação de que não será por muito tempo".
Assim o grande dramaturgo mantém o enredo em suspense. Além disso, as impressões de Lindbergh são um instantâneo tão interessante e "acurado" de Roosevelt quanto o depoimento de qualquer outro contemporâneo. Certamente esse é um trecho único no diário de Lindbergh, já que o herói -observado constantemente por todos os outros- raramente observa qualquer pessoa, não tanto devido à falta de interesse, mas de oportunidade. Felizmente -para os fofoqueiros-, ele de fato notou quão impressionantemente monótono o duque de Windsor foi durante o jantar em que discutiu longamente o quão maior era a Étoile em comparação com a Place de la Concorde (praças de Paris).
A trégua com Roosevelt durou pouco tempo. Naquele verão, Lindbergh trabalhou com o general-comandante da Aeronáutica, H.H. Arnold. Sua tarefa: pesquisa e desenvolvimento. No primeiro dia de setembro os alemães invadiram a Polônia. A guerra européia tinha começado. Em 15 de setembro, Lindbergh foi ao rádio falar sobre "A América do Norte e as Guerras Européias".
A respeito disso ele escreve: "Um incidente interessante relacionado ao discurso aconteceu um pouco antes deste, naquele mesmo dia". Mandaram um coronel até ele para dizer-lhe que "o governo está bastante preocupado com a minha intenção de falar pelo rádio e opor-me ativamente à entrada do país na guerra européia. (Ele) disse que, se eu deixasse de fazer isso, eles criariam no gabinete uma Secretaria da Aeronáutica e a dariam para mim!(...). Essa oferta, vinda de Roosevelt, não me surpreende, depois das coisas que eu sei a respeito do seu governo. Apesar disso, de fato me impressiona que ele ainda pense que uma tal oferta possa me influenciar. É um grande erro dele deixar o Exército saber que ele age dessa forma".
De fato, isso é bastante decoroso, mas Lindbergh sabia que, de Arnold para baixo, todos tinham dito ao presidente que ele não aceitaria. "Independentemente do fato de (o presidente Roosevelt) promover publicamente uma política de neutralidade para os Estados Unidos, parece-me óbvio que ele tenta levar o nosso país à guerra. Os poderes que ele influencia e controla são fortes. Opor-se a eles requer planejamento, habilidade política e organização. Para mim, isso implicaria desenvolver uma nova estrutura de vida."
Por quase três anos, ele eletrizou o país com os seus discursos e comícios. Estava em curso naquele momento a primeira e até agora única grande polêmica do "século americano". Apesar de Lindbergh ter vários aliados formidáveis, o presidente contava não apenas com grande habilidade e poder. Sabemos agora que ele tinha a seu dispor pelo país afora o serviço secreto britânico, cuja primeira tarefa era desconstruir o herói.
Para levar a opinião pública americana a apoiar a guerra, os ingleses sabiam que só até certo ponto poderiam contar com o ardiloso Roosevelt. Ele queria ganhar uma terceira eleição em 1940; também tinha de lidar com um país de maioria isolacionista e com as críticas da Águia Solitária. Ele ainda poderia "jogar verde", como no seu discurso de 1937, "Quarentena aos Agressores", que tinha sido, segundo o governador-geral do Canadá, o lorde Tweedsmuir, "o clímax de uma longa conspiração nossa em andamento (isso deve ser mantido em segredo!)".
Infelizmente, aquele golpe não deu certo, e Roosevelt calou-se por um tempo. Ele sempre dava o mesmo conselho para entusiastas de cujos objetivos ele compartilhava, mas que não ousava apoiar abertamente quando faltava maioria política. "Você tem de me forçar a agir", ele dizia jovialmente. Quando os intervencionistas se preparavam para denunciar a sua falta de ação, ele sugeria a palavra "pusilânime" como adequada para descrever as suas cautelosas políticas públicas.
O filho de Charles August agora começava a ver, se não a mão secreta dos ingleses nos nossos negócios, pelo menos a mão aberta da House of Morgan -para não mencionar a do seu próprio sogro, Dwight Morrow. Lindbergh nunca tinha se preocupado muito com o "money trust" que tanto indignara seu pai. De menino de fazenda, ele se tornou um aviador bem-sucedido, piloto militar e depois herói mundial. A injustiça social parece nunca tê-lo preocupado. Afinal, ele sempre cuidou de si e tudo deu mais do que certo. Tinha permitido que Dwight Morrow e os parceiros de Morgan o absorvessem, investindo o dinheiro deles nele e fazendo-no enriquecer sem nunca comercializarem o seu nome. A propósito: Berg fez um acordo de cavalheiros com Anne Morrow Lindbergh para fazer uso dos diários e da correspondência dela. Um "quid" deste "quo" é o fato de Berg nunca mencionar que a brilhante Anne Morrow era alcoólatra. Por isso, Milton é muito mais interessante do que Berg em relação à família com a qual Lindbergh se casou. Um aspecto da condição nacional que se pode discutir abertamente é o sistema de classes. No ápice da pirâmide americana -que guarda no seu interior aquele terrível olho aberto que não pisca- está a instituição ocidental "wasp" (protestantes anglo-saxões brancos). Mahl nota que C. Wright Mills se deparou com enormes críticas quando "a identificou em seu livro "A Elite do Poder" (1956). Segundo Mills, os Estados Unidos são controlados não pela massa dos seus cidadãos tal como descrita pela teoria democrática, mas por uma elite anglo-saxã protestante das escolas da Ivy League, do Nordeste do país. Numa enxurrada de resenhas e críticas sarcásticas, não raro os liberais da Guerra Fria negaram com veemência que houvesse esse tipo de elite. Essa polêmica agora parece ter passado, como assinalou Douglas Little numa resenha recente, em "Diplomatic History': "Longe de rejeitar a idéia de uma elite do poder (...), (os livros resenhados) celebram a sua curta duração nos 25 anos que se seguiram a 1945" (...)". Os ingleses nunca se questionaram sobre a existência ou não de uma "elite do poder" americana. Já em 1916, o lorde Robert Cecil assinalava que, "apesar de o povo americano ser em grande parte composto por estrangeiros, tanto em sua origem quanto no seu modo de pensar, os seus legisladores são quase exclusivamente anglo-saxões e compartilham nossos ideais políticos".

Do lado da elite
Os suecos Lindbergh eram tão estrangeiros a essa instituição quanto os Sulzberger. Mas o fato é que os Sulzberger ficaram do lado da elite dos "wasp" nas épocas de guerra e de paz, enquanto Charles Lindbergh não entendeu o que Anne captou no momento em que ele lhe mostrou a medalha que Goering inesperadamente lhe entregara durante um jantar em Berlim. Ela disse: "O seu fardo". Parece que Lindbergh nunca chegou a entender o que ela quis dizer com essas palavras. Enquanto isso, em meio à elite dos "wasp" e aos agentes britânicos, os EUA se transformavam.
O isolacionismo sempre fora uma crença nacional estimada, mesmo que algumas vezes ignorada por razões oportunistas. Porém, por volta de 1940, três encantadoras senhoras pagas pelos ingleses converteram um dos dois senadores isolacionistas de maior destaque, Arthur Vandenberg, em defensor da guerra -e, mais tarde, da hegemonia global. Mahl fornece os nomes e endereços dessas mulheres. Uma delas, casada com um diplomata britânico, codinome "Cynthia", foi a heroína de um estudo epônimo de H. Montgomery Hyde, de 1965. Para concluir, no caso de Roosevelt ser derrotado em 1940, o outro grande isolacionista, o senador Robert A. Taft, foi vencido na convenção republicana pelo candidato britânico, o até então desconhecido Wendell Willkie.
Fica-se imaginando o que Lindbergh teria pensado -de fato, o que o povo americano teria pensado- se todos tivessem entendido o que realmente aconteceu na Filadélfia em junho de 1940. Eu estava lá. O calor era enorme. Os apoiadores de Vandenberg carregavam leques de folha de palmeira com a legenda "Fan with Van" (Abane-se com Van). Difundia-se por todos os cantos o que o já derrotado Taft teria dito amargamente. "Nenhum candidato republicano à Presidência consegue ser nomeado sem a aprovação do Chase Manhattan Bank". Perguntei ao meu pai o que isso significava. "Acredito", disse ele, um democrata populista, "que os banqueiros querem um candidato intervencionista".
Mahl conta que um agente britânico imprimiu o dobro de ingressos para as arquibancadas, de forma que elas ficaram abarrotadas de pessoas que cantaram durante horas: "Queremos Willkie!". Com certeza isso soou aos meus ouvidos como a própria voz do povo. Segundo Mahl, quando Herbert Hoover se levantou para fazer o seu discurso isolacionista, os microfones ficaram mudos e, anos mais tarde, Hoover depôs a respeito desse episódio. Eu só posso dizer que quem estava sentado na frente ouviu Hoover bem. Talvez as arquibancadas tenham sido privadas do sistema de som. Hoje em dia nós sabemos que os grandes chefes estavam se divertindo bastante com o processo democrático. O líder da House of Morgan, T.W. Lamont, enviou ao seu amigo Roosevelt um discurso elaborado pelo líder do Partido Comunista, Earl Browder. Lamont tinha sublinhado o seguinte trecho no "Daily Worker": "Robert Taft (...) foi derrotado na convenção da Filadélfia, e Wendell Willkie, o democrata renegado pró-guerra, foi indicado por uma junta conspiratória, organizada por Thomas W. Lamont, da firma de J.P. Morgan, que trabalhava em acordo direto com Roosevelt e arquitetada por Walter Lippmann (...)". Roosevelt escreveu a Lamont, em 13 de setembro de 1940: "Como é mesmo aquele velho ditado sobre política e companheiros de cama que não se conhecem? Tudo que eu posso dizer, Tom, é que, se você consegue aguentar isso, eu também consigo". A resposta de H.L. Mencken foi clerical: "Estou totalmente convencido de que a nomeação de Willkie foi arranjada pelo Espírito Santo em pessoa". Essa inversão fundamental e extraordinária no equilíbrio político americano não apenas nos levou à guerra, como também, durante a subsequente era periclesiana, fez-nos ser oprimidos primeiro por um Estado de Segurança Nacional e depois por uma economia global bizarra nunca sonhada nem por J.P. Morgan e muito menos por Charles August. Mas tudo isso era desconhecido para aqueles dentre nós que estiveram na Filadélfia naquele dia quente de junho, quando dois partidos razoavelmente distintos tornaram-se um só. Depois daquela união nenhum debate nacional sério sobre as grandes questões voltaria a acontecer no país até as batalhas do Vietnã -uma guerra que possivelmente nunca teria ocorrido se o sistema não tivesse sido tão transformado.

Piloto clandestino
Depois de Pearl Harbor, Lindbergh ofereceu seus serviços à Aeronáutica. Roosevelt, alguém que nunca superou inimizades, deleitou-se em dispensá-lo, apesar do editorial do "The New York Times" preconizando que Lindbergh deveria ser contratado, já que "é um aviador soberbo, e essa é primária e essencialmente uma guerra aérea". Mas Roosevelt não conseguia admitir que o seu adversário recobrasse o estatuto de herói que -apesar dos enormes esforços dos vários setores interessados- nunca perdera, para a maioria das pessoas. Águias solitárias tendem a voar mais alto que presidentes, independentemente das condições climáticas. Assim, Lindbergh foi para o Pacífico Sul, onde tomou parte em missões clandestinas de combate aéreo com homens de metade da sua idade. Isso era ilegal, dado que Lindbergh era apenas um observador. Mas os comandantes estavam satisfeitos de poder contar com um aviador tão completo. Depois do fim da guerra, Lindbergh continuou as suas viagens com Anne. Eles também criaram os cinco filhos que lhes restavam. Parece que Lindbergh foi um pai consciencioso, com uma tendência de reinventar a roda toda vez que havia algo a ser explicado. Atentava para a utilidade das coisas. Reeve recorda-se de uma explicação hilária sobre "design miserável": "Ele também tinha uma lanterna comum com uma cabeça hexagonal feia, para cujos traços ele chamava a nossa atenção toda vez que deitava a lanterna sobre uma superfície plana. "Você vê isso?", indicava. "Não se move." Nós víamos. A lanterna ficava ali na estante, na mesa ou no chão, exatamente como ele a tinha posicionado. Não se movia nem um pouco. Nem nós, enquanto ele nos fixava com o seu olhar azul penetrante, instrutivo. "Não rola da mesa", ele dizia, fitando-nos inquisitorialmente e desafiando-nos a lhe contradizer. Ninguém o fazia. "Por que eles não fazem todas as lanternas dessa forma?", questionava-se em voz alta. Nenhum de nós arriscava uma opinião. "Cilindros!", ele explicava irritado. "Você compra uma lanterna, e 9 em cada 10 vêm dentro de um corpo cilíndrico. Mas um cilindro sempre rola. Um cilindro foi feito para rolar. E rolar é ótimo, para um pino. Mas, se você deposita uma lanterna cilíndrica na escuridão, perto do lugar onde você está trabalhando, a fim de ter as suas duas mãos livres, o que acontecerá? A lanterna rolará para longe de você, é lógico! Para fora da estante, para baixo do carro -para que tudo isso?" Para nada, nós sabíamos. E também sabíamos o que ele diria a seguir. "A única coisa que eles teriam de fazer é mudar a forma da cabeça. Não a lanterna toda, apenas a cabeça. O problema estaria resolvido. Por que não fazem isso? Cabeças pentagonais, hexagonais, até quadradas, pelo amor de Deus. Apenas a cabeça (...).'".

Etapa em etapa
Quando se pesquisa a vida de Lindbergh, vê-se que ele se move de etapa em etapa, como a própria raça humana. O menino na fazenda era fascinado por economia doméstica. Por eugenia, uma pseudociência daqueles tempos. Pela natureza. Pela ciência médica, para melhorar a vida. Por engenharia. Por voar. Pelo que veio depois da hélice, da propulsão a jato -já no fim da década de 20. Fascinado pelas velhas civilizações que ele tinha sobrevoado durante toda a sua vida, Lindbergh agora via o quão precárias elas eram diante do instrumento que ele tinha ajudado a aperfeiçoar: o avião.
Ele achava fundamental que se evitasse a guerra, ao mesmo tempo em que preconizava um equilíbrio entre as reservas naturais do planeta e a população humana. Ficava fascinado pelos antigos padrões tribais, a fim de desfazer ou diminuir os efeitos que a ciência exerce sobre o homem moderno. Viveu em meio a tribos primitivas; tentou compreender os seus antigos mecanismos de adaptação. Ele literalmente se concebia num pêndulo constante entre um nível e outro.


Pode ser um presente agradável para o novo século e milênio substituir a vulgar caricatura do ardiloso e falso "Tio Sam" pela de Lindbergh, o melhor dos heróis de estilo americano que conseguimos produzir até hoje


Perto da morte, ele começou a desgostar do mundo que tanto contribuíra para criar. Primeiro, notou a padronização de bases aéreas em todos os lugares. A mesma coisa em relação à comida ou à paisagem. A monotonia das viagens em jatos. A diversão desapareceu. Uma palavra-chave nos seus primeiros trabalhos era "aventura". Ele parou de empregá-la. Por fim, o que resistiu foi a veia de misticismo que o acompanhou durante toda a vida. Muitos dos primeiros pilotos desenvolveram um curioso sentido de hiper-realidade ao contemplarem a sua própria relação com o céu e a terra. Os primeiros aviadores foram literalmente extraterrestres, à medida que se submetiam às suas aterrissagens, ao seu renascimento enquanto terráqueos. Lindbergh se divertia discutindo esse assunto pessoalmente com o grande criador de mitos, Carl Jung. Os Lindbergh sentavam-se com o "velho mágico" na margem norte do lago de Zurique. "A conversa concentrava-se em "discos-voadores". Jung tinha escrito um livro sobre eles (...). Eu esperava que ele fosse discutir os aspectos psicológicos e psiquiátricos das fantasias das pessoas (...). Fiquei impressionado ao descobrir que ele acreditava que eles existissem (...). Quando eu mencionei uma discussão minha com o general Carl Spaatz, chefe de equipe da Aeronáutica (...), Jung disse: "Há várias coisas ocorrendo na Terra e que você e o general Spaatz ignoram completamente"."

Humanidade em fluxo
Ao refletir a partir das coisas que observava, Lindbergh conseguiu lembrar-se de Lucrécio: "Nil posse creari de nilo" (nada pode ser criado a partir do nada). Ou: "A soma das coisas está sempre sendo reposta, e os mortais vivem todos de dar e receber. Algumas raças surgem e outras desaparecem e, num pequeno espaço, as tribos das coisas vivas se modificam, passando adiante a tocha da vida como corredores numa competição". Lindbergh resume: "Eu sou forma e sou disforme. Sou vida e substância, mortal e imortal. Sou um e sou muitos -eu mesmo e a humanidade em fluxo (...). Depois de morrer, as moléculas do meu ser retornarão à terra e ao céu. Elas vieram das estrelas. Sou das estrelas".
É uma incrível ironia que Roosevelt e Lindbergh, antagonistas heróicos, compartilhassem, ao fim, a mesma religião. Cada um dos dois queria ser enterrado de forma que os seus átomos voltassem a circular o mais rápido possível. Assim, o primeiro foi enterrado num jardim de rosas, num caixão em que faltava um dos lados, enquanto o segundo num caixão de madeira biodegradável numa ilha do Pacífico Sul. Era assim que cada um planejava se reincorporar à corrente da vida e às estrelas originais. Enquanto isso, pode ser um presente agradável para o novo século e milênio substituir a vulgar caricatura do ardiloso e falso "Tio Sam", de 1812, pela de Lindbergh, o melhor dos heróis de estilo americano que conseguimos produzir até hoje.

Leia mais sobre o sequestro do filho de Lindbergh no Almanaque Folha Online


O texto acima foi publicado originalmente no semanário inglês "The Times Literary Supplement".
Tradução de Fraya Frehse.


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