São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O escritor Gore Vidal discute os feitos do primeiro homem a cruzar o oceano Atlântico em um avião; biografia de Lindbergh sai do mês que vem no Brasil pela Companhia das Letras
O grande herói americano

Reprodução
O aviador americano Charles Lindbergh (1902-1974)


por Gore Vidal

Entre 20 e 21 de maio de 1927, Charles A. Lindbergh Jr. voou durante 33h30 sem escalas de Nova York para o aeroporto de Le Bourget, em Paris. Aos 25 anos, Slim, para os íntimos, tornou-se a pessoa mais famosa do mundo -e continuou assim durante grande parte de uma vida que acabou em 1974. Como é frequente em heróis, a sua popularidade cresceu e diminuiu. Além disso, como não é frequente em heróis comuns, ele foi muito mais do que apenas aquela única aventura. Também foi um gênio criativo com uma tendência mística que, no momento de sua morte, fez com que ele se arrependesse do mundo que havia ajudado a criar: "Tempos Modernos" (estrelando o segundo homem mais conhecido do mundo, Chaplin). Slim passou a sentir-se mais e mais atraído por Thoreau e pela natureza primitiva de Lao Tsu, que enxerga a transformação essencial nas águas e nas marés, que conseguem erodir superfícies de pedra, não importa quão adamantinas, para criar um mundo novo.
Por fim: Lindbergh transformou-se num bom escritor. De fato, na linha de Júlio César, mas de um Júlio César cruzado com o sentido lucreciano da beleza das "coisas" e o seu arranjo. Tudo isso descrito de maneira precisa. Lindbergh foi um tipo de americano muito estranho da primeira metade deste século. Ele é praticamente incompreensível hoje em dia.
A. Scott Berg (autor de "Lindbergh - Uma Biografia", Companhia das Letras, tradução de Carlos Eduardo Lins da Silva, previsão de lançamento para outubro) realizou uma pesquisa caracteristicamente talentosa sobre as várias coisas que Lindbergh fez e de algumas das coisas que ele foi. Não apenas desenvolveu linhas aéreas na década de 30, mas também inventou as "bombas de aspersão", das quais algumas variantes são utilizadas hoje em dia para manter vivos os órgãos do corpo antes de transplantes médicos. Além disso, já em 1929 o premonitório Lindbergh ajudou Robert Goddard, cujas pesquisas aeroespaciais poderiam ter garantido aos EUA o míssil automático muito antes do V-2 de Hitler, que quase fez os nazistas ganharem a guerra.
Em 1932, quando o seu filho de dois anos foi sequestrado e morto, Lindbergh e sua mulher, Anne Morrow, temendo pela família em expansão e perseguidos por uma imprensa já naquela época tão terrível quanto hoje, mudaram-se para a Europa, onde permaneceram durante três anos.
A pedido do serviço militar americano, Lindbergh inspecionou a Luftwaffe alemã, que ele achou alarmantemente avançada tanto em termos de design quanto de produção, num momento em que as Forças Aéreas francesa e britânica juntas não chegavam nem perto desse nível. Em 1939 voltou para casa a fim de clamar por "um sistema de defesa nacional que fosse impenetrável". Além disso, entre 1939 e 1941, foi a principal voz contrária à intervenção americana na Segunda Guerra Mundial. Num discurso notório que realizou em Des Moines, em 1941, identificou três grupos intervencionistas americanos: o governo Roosevelt, os judeus e os ingleses.

Existiu uma grande conspiração para conduzir um país essencialmente isolacionista, como os EUA, à guerra; também houve uma conspiração para destruir a reputação de Lindbergh como herói


Apesar de o país ser profundamente isolacionista, os intervencionistas eram muito espertos, e Lindbergh, que não era mais do que um tradicional isolacionista do Meio-Oeste, representativo de uma parcela significativa da população, foi prontamente atacado como pró-nazista anti-semita. E, no entanto, o movimento conhecido como "America First" (América do Norte Primeiro), que contava com isolacionistas ilustres como Norman Thomas e Burton K. Wheeler -para não mencionar o amigo de Lindbergh, Harry Guggenheim, e sua fundação-, atraiu alguns fascistas nativos autênticos, que ficariam estupefatos ao descobrirem que nunca houve um "complô judeu" para fazer os EUA entrarem na Segunda Guerra Mundial. Muito pelo contrário. Como assinala Berg, antes de Pearl Harbor, "apesar de os judeus serem donos da maioria dos estúdios de cinema americanos, a maioria deles vivia obstinada em deixar o sentimento pró-judeu fora das telas". Além disso, apenas em setembro de 1941 Arthur Hayes Sulzberger, editor do "The New York Times", admitiu ao agente executivo de Operações Especiais da Grã-Bretanha, Valentine Williams, "que pela primeira vez na vida se arrependia de ser judeu porque, com a crescente onda de anti-semitismo, se considerava incapaz de vencer a política anti-hitlerista da administração da maneira radical e absoluta que desejava, já que os isolacionistas atribuiriam o patrocínio de Williams à influência judaica, o que o faria perder a sua força". Foi só em 25 de novembro de 1996 que um acadêmico americano, Thomas E. Mahl, pesquisando diversos arquivos do serviço secreto britânico, achou o dossiê Williams. Recentemente publicou "Desperate Deception" (Fraude Extrema), a história mais completa já escrita até hoje a respeito das "Operações Secretas Britânicas nos Estados Unidos - 1939-1944". Apesar da mídia e das escolas sempre condicionarem os americanos a rir sarcasticamente quando alguém menciona a palavra "conspiração", o fato é que, das conspirações das mais variadas que cruzam os nossos céus e campos de trigo a todo momento -e todas neste século-, a maior, mais intrincada e mais bem-sucedida foi a que os ingleses tramaram para fazer o país participar da Segunda Guerra Mundial. Mahl demonstra precisamente o quanto se engajaram os agentes britânicos: de Ronald Colman, que estrelava filmes pró-britânicos, e os irmãos Korda, que os produziam, a Walter Winchell, que lia no seu noticiário dominical mensagens pró-britânicas escritas para ele por Ernest Cuneo, o qual também redigia colunas jornalísticas pró-britânicas para Drew Pearson. De fato, existiu uma grande conspiração para conduzir um país essencialmente isolacionista à guerra. Também houve uma conspiração para destruir a reputação de Lindbergh como herói. Mas, afinal, que herói era esse? Em 1927, o extravagante jornalista inglês Beverly Nichols encontrou Lindbergh. Mais tarde haveria a polêmica: "Para que todo esse bafafá em torno do vôo dele sobre o Atlântico? Essa não é de fato a única coisa que um bolha como esse faria? Agora, se Noel ou eu tivéssemos voado, aí sim você teria algo para contar!". Realmente teríamos. Entretanto foi Slim que voou, sozinho, e em torno disso gira a grande história do nosso século, a da Águia Solitária. A filha de Lindbergh, Reeve, acaba de escrever um fascinante livro de memórias sobre os seus pais, "Under a Wing" (Debaixo da Asa). Ela começa por situar o seu pai na região em que nasceu, especificamente Little Falls, acima do rio Mississipi, no norte de Minnesota. Por razões que têm que ver com a natureza dos céus no alto Meio-Oeste, muitos dos primeiros -eu ia quase escrevendo verdadeiros- pilotos vieram daquela parte do mundo: dos irmãos Wright, de Ohio, que praticamente começaram com a coisa toda na virada do século, a Lindbergh, de Minnesota, e Earhart, de Kansas, até chegar ao meu pai, de Dakota do Sul, piloto militar desde 1917 e, entre 1927 e 1930, gerente-geral da Transcontinental Air Transport (TAT, mais tarde TWA), para a qual Lindbergh atuou como consultor e publicitário.

O vôo inevitável
Durante a minha única visita a Dakota do Sul, enquanto eu dirigia de Madison para Sioux Falls, notei um globo de luz em volta de mim, como se estivesse no fundo de um daqueles aquários redondos para peixinhos dourados. Só que o mais bizarro era que a luz parecia vir tanto de baixo quanto de cima. Depois eu percebi quão plano era o terreno que que eu estava percorrendo e como o céu alto e o horizonte baixo de fato criavam um globo luminoso. Numa tal paisagem, voar parece inevitável, de certa forma. Lindbergh deve ter sentido isso em relação a sua região natal, que ele sobrevoaria durante grande parte da sua juventude como um dos primeiros aviadores do correio aéreo.
A geografia terrestre o impulsionou para os céus. A família também. O avô paterno deixou a Suécia no bojo de um escândalo político-financeiro que Berg aborda melhor do que qualquer pessoa que eu já tenha lido. Ola Mansson era um fazendeiro que tinha uma família grande. Eleito para o Parlamento sueco em 1847, teve um filho ilegítimo com uma garçonete de Estocolmo. Devido a um escândalo que envolveu até o rei, Mansson fugiu da Suécia, deixando para trás a sua primeira família, a fim de emigrar para os Estados Unidos com a mãe do seu filho pequeno, Karl August.
Por volta de 1859 ele tinha mudado o seu nome para August Lindbergh. Também tinha se tornado fazendeiro perto de Sauk Center, Minnesota, onde o escritor Sinclair Lewis nasceria em 1895. Político no seu país natal, August tornou-se algo parecido na nova terra, mas foi o seu filho mais velho, que agora se chamava Charles August, que teria sucesso naquela linha de trabalho. Charles August tornou-se advogado, casou e teve dois filhos. Depois da morte de sua esposa, casou-se com a filha de um médico. Evangeline Land tinha 24 anos; Charles August, 40. Eles eram considerados o casal mais bonito no coração do coração do país.
Entra em cena a literatura americana. Evangeline foi professora escolar, culta para o seu tempo, com incrível talento artístico. Ela adorava teatrólogos amadores. Beleza também. Ela queria "ser uma inspiração. Eu acho que é melhor então eu virar professora. (...) Aí eu farei eles construírem um bosque com graciosos chalés (...)". Assim fala Carol Hunnicott, a heroína do livro "Main Street", de Sinclair Lewis. Aparentemente era esse o estilo de Evangeline Lindbergh, que parece ter inspirado a personagem Carol. O mais intrigante é que Lewis escreveu a sua novela sete anos antes do filho de Carol-Evangeline se tornar mundialmente famoso.
Apesar de Lindbergh (nascido em 1902) ser bastante ligado a sua mãe -dentro dos limites que permeiam a relação entre dois frios escandinavos (pelo menos foi essa a expressão que Evangeline usou quando os dois recusaram abraçar-se na frente da imprensa antes de ele viajar para Paris)-, ela nunca teria sobre ele a influência que teve o pai. Em 1906, Charles August foi eleito para a Câmara dos Deputados como progressista pela legenda republicana, inserido na tradição isolacionista populista de Robert LaFollette.
Para entender a política do filho de Charles August tem-se que entender Charles August e seu mundo.
Apesar de o livro de Berg ser bem construído e repleto de novos detalhes, "Loss of Eden" (A Perda do Éden), de Joyce Milton, talvez ainda seja a biografia mais vívida escrita sobre Lindbergh, já que a autora consegue dar vida a seu enredo de um modo que é pouco usual em biografias contemporâneas. E, no entanto, é o próprio Lindbergh, em particular no seu póstumo "Autobiography of Values" (Autobiografia de Valores), que fornece o testemunho mais interessante de uma vida que é tão extraordinária que se transforma, paradoxalmente, no emblema mais acabado do caráter americano.
A respeito da sua infância, Lindbergh escreveu:
"O meu pai cresceu na frente pioneira. Os seus pais o levaram para lá da Suécia quando ele tinha seis anos de idade. Demarcaram um lote, abriram uma clareira e araram a terra. A primeira infância do garoto foi permeada pelo temor constante dos índios e a confiança cega nos soldados. Numa certa ocasião, quando os sioux estavam em pé de guerra com os brancos, o meu avô abandonou o seu lote e fugiu com sua família num carro de boi para o forte de St. Cloud. Numa aldeia do Sul aconteceu um massacre de colonos e não foi possível se sentir seguro até os soldados chegarem com os seus rifles (...). Durante os primeiros anos da minha vida, eu vivi sob a influência de três ambientes: a nossa fazenda e o vilarejo, o laboratório de meu avô em Detroit (dr. Land inventou o dente de porcelana), além da cidade de Washington, onde o meu pai trabalhou durante dez anos no Congresso e onde eu frequentei a escola. Os meus interesses se dividiam entre a fazenda e o laboratório, já que eu não gostava da escola e tinha pouca curiosidade pela política de Washington". É difícil imaginar o menino Lindbergh frequentando durante dois anos o colégio por onde tantos de nós passariam anos mais tarde, incluindo o presidente Ronald Reagan. No Congresso, Charles August foi o homem do povo -ou, como explica Milton: "O evento que mais simbolizava para os progressistas tudo o que havia de errado com o capitalismo liberal foi uma reunião realizada na biblioteca da casa do banqueiro J.P. Morgan, em dezembro de 1890. No encontro Morgan convenceu os presidentes de sete grandes estradas de ferro a suspenderem a competição ferrenha que havia entre eles e a formarem um cartel. Aquele encontro marcou o início da era dos trustes e, durante os 15 anos seguintes, Morgan presidiria pessoalmente a organização de mais de meia dúzia de megacorporações -entre elas a United States Steel, o truste do cobre, de Guggenheim etc. A maior parte dos progressistas aceitou, carrancuda, as coisas como estavam sendo encaminhadas, mas Charles August declarou guerra ao que ele chamava de "money trust" (truste do dinheiro), concentrado na casa de Morgan. É desnecessário dizer: o "money trust" sobreviveu aos ataques de Charles August, mas o casamento dele não. Por volta de 1907, ela e Charles estavam em Detroit com os pais dela. Dr. Land era, como muitas das personalidades ativas naquela idade, um inventor. Charles também se tornaria inventor, tipo de atividade comum no alvorecer da era da tecnologia, cujo gênio principal foi Henry Ford. Por fim, Evangeline concordou em viver em Washington, mas não com Charles August. Aos 11 anos, Charles manipulava bem o invento de Ford e conduzia Charles August de carro pelo seu distrito de Minnesota. Apesar de mais interessado no motor de combustão do que nos ataques do pai ao "money trust", Charles estava predestinado a assumir um bom bocado de fé populista. Charles August execrava o padrão-ouro, a "imprensa subsidiada" e os "anglófilos", que, por volta de 1914, estavam ávidos para que entrássemos na guerra européia e eram auxiliados e estimulados por J.P. Morgan, que apoiava as moedas britânica e francesa enquanto fornecia armas aos aliados.

Fora da guerra
Durante esse processo, o presidente Wilson silenciosamente conduzia os EUA para a guerra, enquanto concorria para a reeleição em 1916, usado o slogan do senador T.P. Gore: "Ele nos manteve fora da guerra". O deputado Lindbergh e o senador Gore não apenas eram aliados nisso, mas também admiravam LaFollette, que também se opunha -como a maioria dos americanos- a intrigas estrangeiras. Mas a "guerra dos banqueiros" era inevitável. A imprensa subsidiada, que mais tarde tanto prejudicaria a reputação de Charles, fez campanha em favor da guerra.
Segundo a hipérbole de Charles August, "em nenhum momento da história houve uma fraude tão impertinente e agressiva quanto hoje em dia, engolindo toda a humanidade num turbilhão do inferno". Apolítico e amante da ciência, Charles pouco suspeitava que anos depois ele estaria fazendo o mesmo tipo de discurso diante de uma conspiração que nem ele nem ninguém mais entendeu no momento em que ocorria.

Ponto alto
Berg chega a seu ponto alto ao narrar os dois grandes fatos jornalísticos da vida de Lindbergh: o vôo de 1927 a Paris e a subsequente fama, mas também o sequestro e assassinato de seu filho de dois anos, em 1932, e a busca caótica do assassino, um imigrante alemão chamado Bruno Richard Hauptmann. Berg obedientemente assinala que a primeira pergunta que o rei George 5º fez a Lindbergh depois do vôo sobre o Atlântico foi: "Como você fez para mijar?". Lindbergh já estava acostumado à pergunta. Tinha usado copos de papel. Meu pai, Gene Vidal, colega dele, era mais ousado. Lindbergh ria: "Como você...?". "Bem", dizia Vidal, "sinto um pouco de pena daqueles franceses que me carregaram nos ombros".
Nem o livro de Berg nem o de Milton são bons quando o assunto são os primeiros dias da aviação, período que ainda espera pelo seu historiador. Por volta de 1928, Lindbergh e Gene estavam às voltas com a primeira companhia aérea transcontinental que, em vôos diurnos, cruzava o país inteiro em dois dias de trem e de avião, aterrissando em Glendale. Segundo os pessimistas, o nome da companhia, TAT, designava a abreviatura de "take a train" (tome um trem). Já que o íntegro Lindbergh se recusava a fazer uso comercial do seu nome (chegou a rejeitar a fortuna que William Randolph Hearst lhe ofereceu para aparecer num filme sobre a sua vida), concordou em se transformar em propagandista da aviação comercial em geral e da TAT em particular.
"Mas o que ele fazia?", eu certa vez perguntei a meu pai. "Ele nos deixava utilizar o seu nome. Nós nos concebíamos como "linha Lindbergh". Ele visitava o país todo, algumas vezes inspecionando possíveis locais para a instalação de campos de pouso. Mas depois todos nós, (...) aqueles de nós que eram pilotos (...), passamos a fazer isso. Nós também contratamos Amelia Earhart. Nós a chamávamos de diretora-assistente de tráfego. Mas basicamente tudo eram relações públicas. Todas as pessoas no mundo queriam olhar para aqueles dois. A função principal de Amelia para nós era convencer as mulheres de que era seguro voar." "Você quer dizer que vocês queriam mais pilotos mulheres?", Gene se divertia. "Não. Nós estávamos tentando fazer as mulheres deixarem os homens -seus maridos, parentes, amigos- voarem. Amelia tinha um temperamento tão frio e sereno que realmente aliviava as pessoas, fazendo a coisa toda parecer muito mais segura do que realmente era."
O livro de Milton é divertido quando narra a relação um tanto tensa entre o deus e -precisamente em 1928- a deusa do vôo. Exagerou em relação à semelhança física entre Charles e Amelia. Aparentemente Milton pensa que o editor publicitário George Palmer Putman tinha "feito a aviadora sair do anonimato por ter ficado impressionado com a incrível semelhança entre ela e o herói de 1927". Sempre achei que ela própria saiu do anonimato ao se transformar em aviadora e que Putman foi bem sucedido em comercializá-la. Amelia foi uma protofeminista engajada, cuja bíblia era o livro de Virginia Woolf, "A Room of One's Own." Anne Morrow, a nova mulher de Lindbergh, também era uma entusiasta de Woolf, mas Anne desapontou Amelia ao insistir que não se considerava "uma mulher moderna de carreira, mas antes a mulher de um homem moderno". Segundo Milton, enquanto as duas pela primeira vez conversavam em torno de uma mesa de cozinha, o prosaico brincalhão Slim surpreendeu a sua mulher por trás e pingou água em seu vestido de seda. Amelia ficou feliz quando Anne virou-se e jogou um copo de creme de leite no rosto do marido. Mas o fato é que sempre houve um certo tipo de tensão entre o yin e o yang do vôo. Como disse Gene uma vez: "Amelia não era uma aviadora pautada na intuição e na experimentação como Slim". Berg, por sua vez, conta uma piada que eu nunca tinha ouvido antes. Depois de Amelia ir sozinha para a Irlanda, em 1932, Lindbergh teria dito: "Ouvi falar que Amelia fez um bom pouso -uma vez". Tanto Berg quanto Milton dão espaço quase igual a Anne Morrow. Anne nasceu em território inimigo. Era filha de um abastado parceiro de Morgan, Dwight Morrow, que estava trabalhando como embaixador no México para o seu amigo, o presidente Coolidge. Foi lá que Anne viu pela primeira vez o seu futuro marido. Ela se graduara, publicava poesia. Apesar da timidez, gostava de vida social. Meninos de fazenda e meninas de sociedade em princípio não têm muita coisa em comum e, em certa medida, o casamento de fato não foi equilibrado, mas ela queria se casar com um herói, e isso implicava se acomodar a uma personalidade de herói. De certa forma, ela nunca deixou de admirá-lo, o que é o lema de qualquer casamento. Eles teriam seis filhos. Sob inúmeros aspectos, o casamento foi uma parceria bem-sucedida: ele lhe ensinou a voar, enquanto ela o encorajou a se tornar um escritor respeitado. Hoje em dia é difícil imaginar que durante anos os dois tenham feito parte do rol dos escritores mais populares do mundo, um mundo que eles enxergavam tão do alto que acabam sendo um pouco como deuses observadores, levitando acima de todos os nossos mares e campos e vendo aquilo que o simples terráqueo não vê: a unidade das coisas. Eles também deram origem a uma família, que a sua filha caçula agora descreve em "Under a Wing" (Debaixo da Asa). A etérea, mas forte, Anne talvez precisasse de alguém mais sensível ao seu temperamento -para não dizer alguém que estivesse em casa com mais frequência. Slim estava sempre em movimento. Mais tarde, parece que Anne encontrou uma alma gêmea: primeiro, breve e intensamente, outro piloto-poeta, Antoine de St. Exupéry; mais tarde, o seu médico. O interessante é que aparentemente o Charles de 27 anos e a Anne de 23 casaram virgens. Milton nos conta que, antes do vôo para Paris, Slim nunca tinha participado de jantares sociais, aprendido a dançar, saído com uma garota -porque não tinha tempo de aprender aquilo que ele chamava de "língua à parte" das mulheres. As fotografias deixam entrever que a sua vida amorosa parece ter envolvido uma série de cães -é impossível falar em privação afetiva.

O primeiro grande duelo
Em 1933, Gene Vidal tornou-se diretor de comércio aéreo de Roosevelt e, por quatro anos, sistematizou a aviação comercial, padronizou o sistema nacional de aeroportos, emitindo os primeiros brevês (prevenido, deu-se o número um). Também trabalhou próximo ao seu antigo colega da TAT, agora consultor da Pan-American Airways de Juan Trippe. Durante este período, os Lindbergh mudaram-se para a Europa -mas não antes do primeiro episódio daquilo que provaria ser o mais significativo duelo mano a mano da vida do herói.
O presidente Franklin Delano Roosevelt concebia que, naquele momento de crise, não poderia haver dois heróis nos Estados Unidos ao mesmo tempo. Quando era simples governador, pediu a Slim uma fotografia autografada. Mas em 1932, depois de assumir o mandato, transformou-se na encarnação dos medos e esperanças de toda uma nação. Ele estava sozinho... bem, quase. Infelizmente, a Águia Solitária conseguia sempre atrair uma multidão maior que o presidente.
Felizmente para este, Lindbergh realmente odiava holofotes e, depois da morte do seu filho, se escondia o quanto podia dentro do laboratório novaiorquino de Alexis Carrel, onde trabalhou na bomba de aspersão, longe do olhar venenoso da imprensa. Retrospectivamente, é possível reconhecer o quão dramaticamente inevitável era que as duas mais importantes figuras do cenário nacional americano por fim se confrontassem. Até aquele momento, o grande dramaturgo dos ares dominou cuidadosamente a cena, utilizando-se às vezes de Gene como figurante.
A administração Hoover tinha distribuído contratos de correio aéreo de maneira um tanto questionável, favorecendo ricos conglomerados em detrimento de companhias aéreas independentes. Quando a companhia aérea Ludington, de Gene Vidal, foi passada para trás em favor de um conglomerado, este foi a público denunciar o "socialismo Hoover", algo verdadeiramente novo no cenário nacional. Já no poder, Roosevelt enxergou uma ótima maneira de tirar pontos do Partido Republicano. Fez o diretor-geral dos correios acusar o seu predecessor de "conspiração e intriga" no processo de distribuição dos contratos. Então, em 9 de fevereiro de 1934, ele cancelou todos os contratos de correio aéreo. O Exército tinha sido responsável pelo correio aéreo em 1918 -faria isso novamente. O diretor de comércio aéreo protestou. Os pilotos do Exército não tinham os talentos de lince dos pilotos do correio aéreo. Gene sabia disso. Ele era piloto do Exército.
Mas Roosevelt foi irredutível. Sempre suspeitei de que Gene tenha secretamente se encontrado com Lindbergh, que era tanto piloto do Exército quanto antigo piloto do correio aéreo, pedindo-lhe para abrir a boca antes de que as coisas ficassem ainda piores -isso se fosse possível as coisas piorarem ainda mais: no fim da primeira semana, cinco pilotos do Exército estavam mortos, seis, gravemente machucados, oito aviões destruídos. Enquanto isso, companhias aéreas sem contrato iam abruptamente à bancarrota.
Lindbergh enviou um telegrama de 275 palavras ao presidente enquanto, simultaneamente, liberou uma cópia para a imprensa. Isso foi crime de lesa-majestade. A Casa Branca atacou Lindbergh. O Senado o convocou perante um dos seus comitês. O herói foi acusado de querer publicidade para si. Isso foi a única diversão dessa confusão toda. No íntimo, Gene sabia que o fato de Roosevelt recusar ter cometido um erro implicava que Lindbergh se tornasse o vilão da história.
Nisso o presidente foi auxiliado por outro paladino dos ares, o general Billy Mitchell, apóstolo da aeronáutica. Mitchell achava que Roosevelt deveria ter assumido a TWA para transportar a correspondência até que novos -"honestos"- contratos tivessem sido distribuídos. Enquanto isso, Mitchell chamava Lindbergh de "uma das frentes do truste aéreo" -e, pior, identificava-o como "aquele genro de Dwight Morrow".
Assim Charles August, inimigo mortal do "money trust" e da House of Morgan, agora era pai de alguém tido como escravo dos poderes endinheirados do mal. Por sorte, Charles August morreu antes do seu filho se casar com Anne Morrow.

continua



Texto Anterior: +3 questões Sobre inteligência artificial
Próximo Texto: O grande herói americano (continuação)
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.