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+ brasil 501 d.C.
O berço da nação brasileira foi assim uma dádiva do funcionalismo público; e os malsinados senhores rurais, contra quem tanto se aferra nossa historiografia politicamente correta, só virão embalá-lo muito tempo depois
A fabricação da nação
Evaldo Cabral de Mello
O nacionalismo brasileiro não
precedeu, sucedeu, a criação do
Estado nacional. O Brasil não
se tornou independente porque fosse nacionalista, mas fez-se nacionalista por haver-se tornado independente. Não havia sentimento nacionalista na América Portuguesa em 1822, o que
havia era ressentimento antilusitano, este mesmo limitado às camadas médias e
populares das grandes cidades costeiras:
Rio, Bahia, o Recife. O brasileiro dos estratos superiores percebia-se como o súdito de um Estado que não pretendia encarnar uma nação inexistente, mas o velho sonho luso-brasileiro de um "grande
império" na América, projeto que já se
esboça nos primeiros cronistas e que d.
João 6º viera declaradamente estabelecer.
Àquela altura, os nacionalistas não éramos nós, mas os portugueses de Portugal
que, dentro e fora das cortes de Lisboa,
clamavam contra o que lhes parecia a escandalosa inversão de papéis pela qual o
Brasil se transformara no centro da monarquia lusitana, relegando a metrópole
à posição de colônia. Destarte, o império
não foi o produto de uma aspiração nacional preexistente e cruelmente reprimida por uma potência exterior, como
acontecia, por exemplo, na Grécia (lorde
Byron não teria dado a vida pela nossa
independência), mas o desfecho de um
somatório de circunstâncias, como a impossibilidade de fazer aceitar, tanto pelo
Brasil quanto pela Inglaterra, a abolição
da liberdade de comércio concedida em
1808; a luta pelo poder entre o regente d.
Pedro e os "vintistas", vale dizer, os constitucionalistas portugueses, conflito de
complexas implicações dinásticas; e os
interesses da burocracia régia, que, civil
ou militar, graduada ou subalterna, fabricava no Rio de Janeiro, desde a chegada do Bragança, seu pequeno paraíso
tropical, enquanto não chegava o dia de
se transportar para a solidão do Planalto
Central, mais propícia à sua mandância.
"Florzinha tenra"
Se o Brasil surgiu para a vida autônoma sob o signo de
uma aspiração avançada, a liberdade de
comércio, esta foi utilizada com vistas a
obter o apoio da população a um movimento, a Independência, retrógrado na
sua inspiração original, pois encarnou
uma contra-revolução de altos funcionários públicos contra a demolição, pelo
constitucionalismo lusitano, do aparelho de Estado instalado por d. João 6º.
Maria Odila Silva Dias, a quem se devem algumas das melhores páginas sobre os pródromos da Independência, cita a afirmação de Armitage, que redigiu
sua história do Brasil pouco tempo decorrido dos acontecimentos, em que ele
observava ironicamente que "todos os
indivíduos espoliados dos seus empregos pela extinção dos tribunais (isto é,
das repartições públicas) converteram-se em patriotas exaltados; e como se tivessem sido transformados por um
agente sobrenatural, aqueles mesmos
que haviam, durante a maior parte da
sua vida, serpejado entre os mais baixos
escravos do poder, ergueram-se como
ativos e estrênuos defensores da Independência".
O berço da nação brasileira foi assim
uma dádiva do funcionalismo público; e
os malsinados senhores rurais, contra
quem tanto se aferra nossa historiografia
politicamente correta, só virão embalá-lo muito tempo depois. Como toda escolha entre opções que tinham seus prós e
seus contras, o dilema da Independência
teve algo de pungente. Por um lado, as
cortes de Lisboa nos ofereciam um regime político representativo, sob uma monarquia constitucional, muito embora
deixassem claro que cobrariam o preço
não da restauração pura e simples do
monopólio comercial, que era impossível ressuscitar de todo, mas de um sistema, para nós onerosamente preferencial,
em benefício do comércio e da navegação portugueses no Brasil.
Por outro lado, a Independência com
d. Pedro garantir-nos-ia a liberdade de
comércio, mas apresentaria a fatura de
um regime autoritário e centralista baseado no Centro-Sul, como logo perceberam os espertos. A agudeza de tal dilema foi especialmente sentida no Nordeste, por obra e graça da revolução de 1817;
e é ele que explica em boa parte as reservas com que se contemplaram ali, desde
o início, o projeto independentista formulado por José Bonifácio, reservas cuja
procedência ver-se-á confirmada pela
dissolução da Constituinte em 1823.
Já sabemos qual foi a escolha imposta
ao Brasil. Hoje, contudo, tendemos a esquecer que, mesmo após o estabelecimento do Estado brasileiro, o sentimento nacional continuou por muito tempo
aquela "florzinha tenra" da metáfora que
já serviu para definir a democracia entre
nós. É claro que a coroa de d. Pedro 2º a
aguou e a estrumou com assiduidade,
como atestam suas iniciativas no plano
cultural, inclusive no historiográfico.
Graças inclusive ao segundo imperador, fomos desde então um país de intelectuários, de literatos empregados pelo
Estado e de funcionários públicos com
veleidades intelectuais. Daí que as primeiras manifestações do nacionalismo
ao longo de Oitocentos nos pareçam
postiças. No plano econômico, quase todo o período monárquico coincidiu com
a hegemonia da concepção livre-cambista sustentada pela riqueza e pelo poder
naval da Inglaterra, embora entre os políticos do Império, como entre os de hoje,
na prática a teoria muitas vezes fosse outra. Quando, malgrado os arreganhos ingleses, aprovou-se a tarifa Alves Branco,
o que se almejava não era proteger a infância de uma indústria inexistente, apenas fornecer dinheiro ao Estado para rematar sua obra de centralização.
O romantismo, que na Europa fora
componente essencial do nacionalismo,
em especial nos países que haviam emergido para a existência autônoma no decurso da centúria ou que haviam realizado sua unificação após séculos de divisão, o romantismo, dizia, pariu entre nós
o indianismo, que foi uma expressão
mofina da ambição de construir o que virá posteriormente a ser designado por
"identidade nacional". Malgrado o "I-Juca-Pirama" e o "Guarani", as classes dirigentes sentiam-se muito pouco nacionais. Nos anos 80 do século 19, um dos
estadistas do Império, Martinho Campos, mineiro, fazendeiro de café e liberal
que chegou a primeiro-ministro, declarava em pleno recinto do Parlamento
que os brasileiros éramos "os portugueses da América". Como tantos outros representantes dos grupos privilegiados, o
barão do Rio Branco, nosso brasileiríssimo Juca Paranhos, sempre às voltas com
os velhos mapas e com a boa mesa, falava
com sotaque lusitano.
Isso de ser brasileiro
Quanto aos
escravos e às camadas pobres da população livre do interior, não sabiam muito
bem o que era isso de ser brasileiro, como o camponês bretão tampouco entendia o que era ser francês, ou o galego, o
que era ser espanhol.
Para que o nacionalismo, como a cerveja do anúncio de televisão, se viesse a
impor como paixão nacional, era indispensável que o país substituísse o trabalho escravo pelo livre e a monarquia pela
república. Não é seguramente um acaso
se o personagem da ficção brasileira que
melhor encarnou nosso nacionalismo
em botão, o velho Policarpo Quaresma,
fosse florianista convicto, o "florianismo" havendo constituído nosso arremedo do jacobinismo, quando este há muito morrera na Europa. Só ao abolir-se a
escravidão, criamos a oportunidade real
de constituir um povo, fundamento da
nação. Ao americanizar o sistema político e ao introduzir a política dos governadores, a República tornou-se tolerante,
ao contrário do Império, que ao menos
professava, da boca para fora, horror por
elas, para com as práticas políticas do secular autoritarismo interiorano.
O que explica que datem dos primeiros
decênios do século 20 os doutrinários
que se escandalizavam com a defasagem
entre o sistema político e as condições
nacionais e que bradavam por instituições adaptadas a elas, vale dizer, pelo que
posteriormente será conhecido por "democracia relativa". O Estado Novo e o regime militar de 64 são os autênticos herdeiros do programa que consistiu em jogar para o alto as conquistas, por modestas que fossem, do regime representativo
do tempo de d. Pedro 2º, em nome de
uma política nacional que era também
autoritária.
A carência de sentimento nacional até
praticamente o século 20 não significa,
porém, que um arraigado sentimento local fosse desconhecido por estas bandas,
como não o é em qualquer outra parte do
mundo. O equívoco reside em enxergá-lo como uma forma de nacionalismo ou
em afirmar-se, mediante uma leitura
anacrônica do passado, havermos sido
sempre nacionalistas, quase desde a carta de Pero Vaz de Caminha. Basta ler os
textos de finais de Quinhentos para
constatar a existência desse sentimento
local, que se exprime não só sob a forma
de comparações entre o Brasil e Portugal
vantajosas para a colônia, sobretudo no
tocante aos recursos naturais, mas também sob a forma, aparentemente paradoxal, do lusitanismo que impregnaria a
vida material da América portuguesa, fazendo dela um "outro Portugal".
Eles incorporaram até mesmo, como
no caso da "História do Brasil", de frei
Vicente de Salvador (1627), a inspiração
autarquizante do mito indígena da "ilha
Brasil". Ao frade franciscano deve-se,
com efeito, nosso primeiro programa de
substituição de importações, quando sugeriu que os colonos se descartassem até
mesmo da tríade canônica da mesa portuguesa e mediterrânea da época, substituindo o trigo pela farinha de mandioca,
o azeite de oliva pelo de dendê ou de coco
e o vinho pela cachaça.
Nosso nacionalista deste final de milênio continua a pensar que o país pode crescer, empregar mais e redistribuir o bolo, tudo isso idilicamente, à margem do que acontece no mundo, como se já tivéssemos alcançado aquela "terra sem mal" que buscavam os tupis-guaranis
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Se, durante a revolução republicana de
1817, o padre João Ribeiro surpreendeu
um viajante francês com a sugestão de
que se brindasse o acontecimento não
com vinho do Porto, mas com aguardente de cana, há alguns anos tivemos um
ministro da Cultura que queria impor o
consumo da broa de milho. O exemplo
ingênuo nem por isso é menos revelador
do viço dessa aspiração autárquica. Por
outro lado, o nacionalismo brasileiro está em dívida inconfessada com o espírito
de exclusão do antigo monopólio colonial português, ao menos no tocante à
sua "forma mentis", na medida em que
sua mágica se esgota em fazer culminar a
reserva de mercado mediante a eliminação da metrópole.
No fundo, nosso nacionalista deste final de milênio continua a pensar que o
país pode crescer, empregar mais e redistribuir o bolo, tudo isso idilicamente, à
margem do que acontece no mundo, como se já tivéssemos alcançado aquela
"terra sem mal" que buscavam os tupis-guaranis, às vésperas da descoberta do
Brasil, nas suas intermináveis andanças
de sul a norte.
Entre nós, ao longo de Seiscentos e de
Setecentos, tampouco poderia haver nacionalismo, emoção eminentemente oitocentista na Europa; e no Brasil, como
em geral no Terceiro Mundo, própria do
século que termina. Em contrapartida
houve nativismos, assim mesmo no plural, os quais definidos embora pelos dicionários de maneira restritiva, como a
mera aversão ao estrangeiro e ao português em particular, na realidade foram
muito mais do que isso.
Patriotismo local
Eles representaram uma forma de patriotismo local, tão
comum quanto o dos gregos, o qual, nas
suas formas anódinas, podiam até ser tolerados pelas autoridades coloniais, embora esporadicamente alcançassem, como no Nordeste dos dias da Independência e dos começos do primeiro reinado, um grau inusitado de virulência e
exacerbação. Entretanto não se falava ali
em "nação", mas em "pátria" e em "patriotas", conceito que, embora tivesse recebido na França revolucionária conotação nacional, ainda continha na Europa
do Antigo Regime, inclusive nos seus
prolongamentos americanos, o significado inofensivo do apego à terra ou ao
lugar em que se nasceu. Em todo caso, a
"pátria" dos revolucionários de 1817 ainda não era o Brasil, o que não redunda
em desdouro do seu sacrifício.
Esses nativismos de Seiscentos e de Setecentos foram sobretudo a expressão do
ensimesmamento da América portuguesa, consequente à expansão territorial e
ao povoamento de boa parte do território. Um dos mais surrados lugares comuns da historiografia brasileira, ainda
usado em discursos de 7 de setembro,
enxerga no levante de Pernambuco contra o domínio holandês os pródromos da
consciência nacional brasileira.
É possível; mas na medida em que a
restauração do domínio lusitano no
Nordeste constituiu uma manifestação
da consciência coletiva, torna-se impossível separar quimicamente o que já era
sentimento local da ganga do que ainda
era sentimento português. O movimento
foi antes uma reação da consciência portuguesa dos colonos do Nordeste, consciência envolta ainda num casulo religioso e dinástico e reavivada entre nós pela
recente restauração da independência
do reino relativamente a Castela e pela
dominação estrangeira e herética dos
Países Baixos. A realidade é que os luso-brasileiros do Nordeste encararam invariavelmente suas relações com os neerlandeses em termos de radical incompatibilidade que hoje diríamos cultural. Só
definitivamente expulso o invasor é que
o episódio passará a ser interpretado em
termos nativistas e, depois, nacionalistas.
A precocidade dos nativismos, de um
lado, e a tardança do nacionalismo, de
outro, observam-se igualmente na origem dos nossos gentílicos. As populações regionais começaram a ter apelativos muito tempo antes de que se consagrasse uma designação para os habitantes da América portuguesa. Em finais de
Quinhentos, já havia "paulistas" ou
"sam-paulistas"; e, nos começos de Seiscentos, "pernambucanos". Enquanto isso, ao longo de Setecentos, "brasileiro"
era apenas o indivíduo que vivia a cortar
o pau-brasil nas matas e de transportá-lo
para os portos. Por sua vez, o adjetivo
"brasílico" tinha sabor erudito. Quando
a Independência se desenhou no horizonte, os brasileiros éramos designados
"portugueses da América" para distinguir dos "portugueses da Europa".
Àquela altura, Hipólito José da Costa
excogitava, no seu exílio inglês, o termo
adequado com que batizar os cidadãos
do país que se ia criar. "Brasiliano" havia
sido tradicionalmente o termo dado aos
índios e como tal resultava excludente de
quem não tivesse sangue ameríndio.
Quanto a "brasileiro", parecia-lhe inapropriado devido ao sufixo que denota a
profissão, não a origem. Daí que optasse
por "brasiliense", o qual adotou no título
da sua gazeta londrina.
Intenção pejorativa
O termo não
vingou; o hino da Independência referia-se à "brava gente brasileira". A suspeita
teria de ser submetida à prova dos textos
do século 18, mas é plausível que a expressão "brasileiro", usada entre nós para designar quem se dedicava a fazer a
madeira, fosse empregada em Portugal
aos naturais do Brasil com intenção pejorativa, da mesma maneira que nós utilizávamos o vocábulo "marinheiro" para
o imigrante lusitano. Não seria, aliás, a
única vez em que um povo importa seu
gentílico. Embora "España" seja palavra
imemorial, de origem talvez púnica, "espanhol" foi de começo o vocábulo com
que na Provença medieval eram denominados os habitantes da península que
se estendia ao sul dos Pirineus.
Os nativismos brasileiros comportaram, é certo, um teor protonacionalista,
do mesmo modo pelo qual na Europa o
nacionalismo foi precedido por formas
frustas de sentimento nacional desde o
fim da Idade Média. O que importa assinalar, porém, é que tais nativismos podiam também, e foi o que ocorreu ao
tempo da Independência, ser manipulados em sentido antagônico ao nacionalismo, que se viu assim na necessidade de
digeri-los para eliminá-los. Para voltarmos à região onde o nativismo foi o mais
intenso no decurso da história brasileira,
isto é, o Nordeste, foi ali também onde se
ofereceu a mais cerrada resistência à
criação do Estado brasileiro. Ao passo
que o nativismo respondia a uma experiência espontânea das gentes, a criação
de um Estado nacional parecia algo artificioso, o "grand design" de altos funcionários da Coroa ou o enigma político escondido no autoritarismo e no dinasticismo do regente d. Pedro.
Quanto ao Rio de Janeiro, era encarado
com o disfarce grosseiro da antiga dominação portuguesa. Por sua vez, o Estado
Novo considerou-se obrigado a promover a queima pública das bandeiras estaduais, no objetivo de exorcizar os restos
de sentimento local que a seu ver comprometiam a unidade nacional, embora
essas bandeiras, exceto em dois ou três
casos, fossem meras improvisações estadualistas da República Velha.
Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de,
entre outros, "Rubro Veio" e "O Negócio do Brasil -Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669" (Topbooks). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", do Mais!.
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