São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2000

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+ brasil 501 d.C.
O berço da nação brasileira foi assim uma dádiva do funcionalismo público; e os malsinados senhores rurais, contra quem tanto se aferra nossa historiografia politicamente correta, só virão embalá-lo muito tempo depois
A fabricação da nação

Evaldo Cabral de Mello

O nacionalismo brasileiro não precedeu, sucedeu, a criação do Estado nacional. O Brasil não se tornou independente porque fosse nacionalista, mas fez-se nacionalista por haver-se tornado independente. Não havia sentimento nacionalista na América Portuguesa em 1822, o que havia era ressentimento antilusitano, este mesmo limitado às camadas médias e populares das grandes cidades costeiras: Rio, Bahia, o Recife. O brasileiro dos estratos superiores percebia-se como o súdito de um Estado que não pretendia encarnar uma nação inexistente, mas o velho sonho luso-brasileiro de um "grande império" na América, projeto que já se esboça nos primeiros cronistas e que d. João 6º viera declaradamente estabelecer. Àquela altura, os nacionalistas não éramos nós, mas os portugueses de Portugal que, dentro e fora das cortes de Lisboa, clamavam contra o que lhes parecia a escandalosa inversão de papéis pela qual o Brasil se transformara no centro da monarquia lusitana, relegando a metrópole à posição de colônia. Destarte, o império não foi o produto de uma aspiração nacional preexistente e cruelmente reprimida por uma potência exterior, como acontecia, por exemplo, na Grécia (lorde Byron não teria dado a vida pela nossa independência), mas o desfecho de um somatório de circunstâncias, como a impossibilidade de fazer aceitar, tanto pelo Brasil quanto pela Inglaterra, a abolição da liberdade de comércio concedida em 1808; a luta pelo poder entre o regente d. Pedro e os "vintistas", vale dizer, os constitucionalistas portugueses, conflito de complexas implicações dinásticas; e os interesses da burocracia régia, que, civil ou militar, graduada ou subalterna, fabricava no Rio de Janeiro, desde a chegada do Bragança, seu pequeno paraíso tropical, enquanto não chegava o dia de se transportar para a solidão do Planalto Central, mais propícia à sua mandância.

"Florzinha tenra"
Se o Brasil surgiu para a vida autônoma sob o signo de uma aspiração avançada, a liberdade de comércio, esta foi utilizada com vistas a obter o apoio da população a um movimento, a Independência, retrógrado na sua inspiração original, pois encarnou uma contra-revolução de altos funcionários públicos contra a demolição, pelo constitucionalismo lusitano, do aparelho de Estado instalado por d. João 6º. Maria Odila Silva Dias, a quem se devem algumas das melhores páginas sobre os pródromos da Independência, cita a afirmação de Armitage, que redigiu sua história do Brasil pouco tempo decorrido dos acontecimentos, em que ele observava ironicamente que "todos os indivíduos espoliados dos seus empregos pela extinção dos tribunais (isto é, das repartições públicas) converteram-se em patriotas exaltados; e como se tivessem sido transformados por um agente sobrenatural, aqueles mesmos que haviam, durante a maior parte da sua vida, serpejado entre os mais baixos escravos do poder, ergueram-se como ativos e estrênuos defensores da Independência". O berço da nação brasileira foi assim uma dádiva do funcionalismo público; e os malsinados senhores rurais, contra quem tanto se aferra nossa historiografia politicamente correta, só virão embalá-lo muito tempo depois. Como toda escolha entre opções que tinham seus prós e seus contras, o dilema da Independência teve algo de pungente. Por um lado, as cortes de Lisboa nos ofereciam um regime político representativo, sob uma monarquia constitucional, muito embora deixassem claro que cobrariam o preço não da restauração pura e simples do monopólio comercial, que era impossível ressuscitar de todo, mas de um sistema, para nós onerosamente preferencial, em benefício do comércio e da navegação portugueses no Brasil. Por outro lado, a Independência com d. Pedro garantir-nos-ia a liberdade de comércio, mas apresentaria a fatura de um regime autoritário e centralista baseado no Centro-Sul, como logo perceberam os espertos. A agudeza de tal dilema foi especialmente sentida no Nordeste, por obra e graça da revolução de 1817; e é ele que explica em boa parte as reservas com que se contemplaram ali, desde o início, o projeto independentista formulado por José Bonifácio, reservas cuja procedência ver-se-á confirmada pela dissolução da Constituinte em 1823. Já sabemos qual foi a escolha imposta ao Brasil. Hoje, contudo, tendemos a esquecer que, mesmo após o estabelecimento do Estado brasileiro, o sentimento nacional continuou por muito tempo aquela "florzinha tenra" da metáfora que já serviu para definir a democracia entre nós. É claro que a coroa de d. Pedro 2º a aguou e a estrumou com assiduidade, como atestam suas iniciativas no plano cultural, inclusive no historiográfico. Graças inclusive ao segundo imperador, fomos desde então um país de intelectuários, de literatos empregados pelo Estado e de funcionários públicos com veleidades intelectuais. Daí que as primeiras manifestações do nacionalismo ao longo de Oitocentos nos pareçam postiças. No plano econômico, quase todo o período monárquico coincidiu com a hegemonia da concepção livre-cambista sustentada pela riqueza e pelo poder naval da Inglaterra, embora entre os políticos do Império, como entre os de hoje, na prática a teoria muitas vezes fosse outra. Quando, malgrado os arreganhos ingleses, aprovou-se a tarifa Alves Branco, o que se almejava não era proteger a infância de uma indústria inexistente, apenas fornecer dinheiro ao Estado para rematar sua obra de centralização. O romantismo, que na Europa fora componente essencial do nacionalismo, em especial nos países que haviam emergido para a existência autônoma no decurso da centúria ou que haviam realizado sua unificação após séculos de divisão, o romantismo, dizia, pariu entre nós o indianismo, que foi uma expressão mofina da ambição de construir o que virá posteriormente a ser designado por "identidade nacional". Malgrado o "I-Juca-Pirama" e o "Guarani", as classes dirigentes sentiam-se muito pouco nacionais. Nos anos 80 do século 19, um dos estadistas do Império, Martinho Campos, mineiro, fazendeiro de café e liberal que chegou a primeiro-ministro, declarava em pleno recinto do Parlamento que os brasileiros éramos "os portugueses da América". Como tantos outros representantes dos grupos privilegiados, o barão do Rio Branco, nosso brasileiríssimo Juca Paranhos, sempre às voltas com os velhos mapas e com a boa mesa, falava com sotaque lusitano.

Isso de ser brasileiro
Quanto aos escravos e às camadas pobres da população livre do interior, não sabiam muito bem o que era isso de ser brasileiro, como o camponês bretão tampouco entendia o que era ser francês, ou o galego, o que era ser espanhol.
Para que o nacionalismo, como a cerveja do anúncio de televisão, se viesse a impor como paixão nacional, era indispensável que o país substituísse o trabalho escravo pelo livre e a monarquia pela república. Não é seguramente um acaso se o personagem da ficção brasileira que melhor encarnou nosso nacionalismo em botão, o velho Policarpo Quaresma, fosse florianista convicto, o "florianismo" havendo constituído nosso arremedo do jacobinismo, quando este há muito morrera na Europa. Só ao abolir-se a escravidão, criamos a oportunidade real de constituir um povo, fundamento da nação. Ao americanizar o sistema político e ao introduzir a política dos governadores, a República tornou-se tolerante, ao contrário do Império, que ao menos professava, da boca para fora, horror por elas, para com as práticas políticas do secular autoritarismo interiorano.
O que explica que datem dos primeiros decênios do século 20 os doutrinários que se escandalizavam com a defasagem entre o sistema político e as condições nacionais e que bradavam por instituições adaptadas a elas, vale dizer, pelo que posteriormente será conhecido por "democracia relativa". O Estado Novo e o regime militar de 64 são os autênticos herdeiros do programa que consistiu em jogar para o alto as conquistas, por modestas que fossem, do regime representativo do tempo de d. Pedro 2º, em nome de uma política nacional que era também autoritária.
A carência de sentimento nacional até praticamente o século 20 não significa, porém, que um arraigado sentimento local fosse desconhecido por estas bandas, como não o é em qualquer outra parte do mundo. O equívoco reside em enxergá-lo como uma forma de nacionalismo ou em afirmar-se, mediante uma leitura anacrônica do passado, havermos sido sempre nacionalistas, quase desde a carta de Pero Vaz de Caminha. Basta ler os textos de finais de Quinhentos para constatar a existência desse sentimento local, que se exprime não só sob a forma de comparações entre o Brasil e Portugal vantajosas para a colônia, sobretudo no tocante aos recursos naturais, mas também sob a forma, aparentemente paradoxal, do lusitanismo que impregnaria a vida material da América portuguesa, fazendo dela um "outro Portugal".
Eles incorporaram até mesmo, como no caso da "História do Brasil", de frei Vicente de Salvador (1627), a inspiração autarquizante do mito indígena da "ilha Brasil". Ao frade franciscano deve-se, com efeito, nosso primeiro programa de substituição de importações, quando sugeriu que os colonos se descartassem até mesmo da tríade canônica da mesa portuguesa e mediterrânea da época, substituindo o trigo pela farinha de mandioca, o azeite de oliva pelo de dendê ou de coco e o vinho pela cachaça.


Nosso nacionalista deste final de milênio continua a pensar que o país pode crescer, empregar mais e redistribuir o bolo, tudo isso idilicamente, à margem do que acontece no mundo, como se já tivéssemos alcançado aquela "terra sem mal" que buscavam os tupis-guaranis


Se, durante a revolução republicana de 1817, o padre João Ribeiro surpreendeu um viajante francês com a sugestão de que se brindasse o acontecimento não com vinho do Porto, mas com aguardente de cana, há alguns anos tivemos um ministro da Cultura que queria impor o consumo da broa de milho. O exemplo ingênuo nem por isso é menos revelador do viço dessa aspiração autárquica. Por outro lado, o nacionalismo brasileiro está em dívida inconfessada com o espírito de exclusão do antigo monopólio colonial português, ao menos no tocante à sua "forma mentis", na medida em que sua mágica se esgota em fazer culminar a reserva de mercado mediante a eliminação da metrópole. No fundo, nosso nacionalista deste final de milênio continua a pensar que o país pode crescer, empregar mais e redistribuir o bolo, tudo isso idilicamente, à margem do que acontece no mundo, como se já tivéssemos alcançado aquela "terra sem mal" que buscavam os tupis-guaranis, às vésperas da descoberta do Brasil, nas suas intermináveis andanças de sul a norte. Entre nós, ao longo de Seiscentos e de Setecentos, tampouco poderia haver nacionalismo, emoção eminentemente oitocentista na Europa; e no Brasil, como em geral no Terceiro Mundo, própria do século que termina. Em contrapartida houve nativismos, assim mesmo no plural, os quais definidos embora pelos dicionários de maneira restritiva, como a mera aversão ao estrangeiro e ao português em particular, na realidade foram muito mais do que isso.

Patriotismo local
Eles representaram uma forma de patriotismo local, tão comum quanto o dos gregos, o qual, nas suas formas anódinas, podiam até ser tolerados pelas autoridades coloniais, embora esporadicamente alcançassem, como no Nordeste dos dias da Independência e dos começos do primeiro reinado, um grau inusitado de virulência e exacerbação. Entretanto não se falava ali em "nação", mas em "pátria" e em "patriotas", conceito que, embora tivesse recebido na França revolucionária conotação nacional, ainda continha na Europa do Antigo Regime, inclusive nos seus prolongamentos americanos, o significado inofensivo do apego à terra ou ao lugar em que se nasceu. Em todo caso, a "pátria" dos revolucionários de 1817 ainda não era o Brasil, o que não redunda em desdouro do seu sacrifício. Esses nativismos de Seiscentos e de Setecentos foram sobretudo a expressão do ensimesmamento da América portuguesa, consequente à expansão territorial e ao povoamento de boa parte do território. Um dos mais surrados lugares comuns da historiografia brasileira, ainda usado em discursos de 7 de setembro, enxerga no levante de Pernambuco contra o domínio holandês os pródromos da consciência nacional brasileira. É possível; mas na medida em que a restauração do domínio lusitano no Nordeste constituiu uma manifestação da consciência coletiva, torna-se impossível separar quimicamente o que já era sentimento local da ganga do que ainda era sentimento português. O movimento foi antes uma reação da consciência portuguesa dos colonos do Nordeste, consciência envolta ainda num casulo religioso e dinástico e reavivada entre nós pela recente restauração da independência do reino relativamente a Castela e pela dominação estrangeira e herética dos Países Baixos. A realidade é que os luso-brasileiros do Nordeste encararam invariavelmente suas relações com os neerlandeses em termos de radical incompatibilidade que hoje diríamos cultural. Só definitivamente expulso o invasor é que o episódio passará a ser interpretado em termos nativistas e, depois, nacionalistas. A precocidade dos nativismos, de um lado, e a tardança do nacionalismo, de outro, observam-se igualmente na origem dos nossos gentílicos. As populações regionais começaram a ter apelativos muito tempo antes de que se consagrasse uma designação para os habitantes da América portuguesa. Em finais de Quinhentos, já havia "paulistas" ou "sam-paulistas"; e, nos começos de Seiscentos, "pernambucanos". Enquanto isso, ao longo de Setecentos, "brasileiro" era apenas o indivíduo que vivia a cortar o pau-brasil nas matas e de transportá-lo para os portos. Por sua vez, o adjetivo "brasílico" tinha sabor erudito. Quando a Independência se desenhou no horizonte, os brasileiros éramos designados "portugueses da América" para distinguir dos "portugueses da Europa". Àquela altura, Hipólito José da Costa excogitava, no seu exílio inglês, o termo adequado com que batizar os cidadãos do país que se ia criar. "Brasiliano" havia sido tradicionalmente o termo dado aos índios e como tal resultava excludente de quem não tivesse sangue ameríndio. Quanto a "brasileiro", parecia-lhe inapropriado devido ao sufixo que denota a profissão, não a origem. Daí que optasse por "brasiliense", o qual adotou no título da sua gazeta londrina.

Intenção pejorativa
O termo não vingou; o hino da Independência referia-se à "brava gente brasileira". A suspeita teria de ser submetida à prova dos textos do século 18, mas é plausível que a expressão "brasileiro", usada entre nós para designar quem se dedicava a fazer a madeira, fosse empregada em Portugal aos naturais do Brasil com intenção pejorativa, da mesma maneira que nós utilizávamos o vocábulo "marinheiro" para o imigrante lusitano. Não seria, aliás, a única vez em que um povo importa seu gentílico. Embora "España" seja palavra imemorial, de origem talvez púnica, "espanhol" foi de começo o vocábulo com que na Provença medieval eram denominados os habitantes da península que se estendia ao sul dos Pirineus.
Os nativismos brasileiros comportaram, é certo, um teor protonacionalista, do mesmo modo pelo qual na Europa o nacionalismo foi precedido por formas frustas de sentimento nacional desde o fim da Idade Média. O que importa assinalar, porém, é que tais nativismos podiam também, e foi o que ocorreu ao tempo da Independência, ser manipulados em sentido antagônico ao nacionalismo, que se viu assim na necessidade de digeri-los para eliminá-los. Para voltarmos à região onde o nativismo foi o mais intenso no decurso da história brasileira, isto é, o Nordeste, foi ali também onde se ofereceu a mais cerrada resistência à criação do Estado brasileiro. Ao passo que o nativismo respondia a uma experiência espontânea das gentes, a criação de um Estado nacional parecia algo artificioso, o "grand design" de altos funcionários da Coroa ou o enigma político escondido no autoritarismo e no dinasticismo do regente d. Pedro.
Quanto ao Rio de Janeiro, era encarado com o disfarce grosseiro da antiga dominação portuguesa. Por sua vez, o Estado Novo considerou-se obrigado a promover a queima pública das bandeiras estaduais, no objetivo de exorcizar os restos de sentimento local que a seu ver comprometiam a unidade nacional, embora essas bandeiras, exceto em dois ou três casos, fossem meras improvisações estadualistas da República Velha.


Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "Rubro Veio" e "O Negócio do Brasil -Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669" (Topbooks). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", do Mais!.


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