São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2000

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+ cinema
O curta-metragem "BMW Vermelha" é exemplar nas dificuldades de fazer um filme no país
Modos de filmar o Brasil


Odilon não pode vender o BMW, não sabe guiar, nem tem dinheiro para gasolina; em uma noite de chuva, a casa cheia de goteiras, a família vai morar no carro


Miriam Chnaiderman
especial para a Folha

Em meio ao sertão baiano, dois cavaleiros andantes se encontram, dois cavaleiros altaneiros, irmanados no amor pelo Brasil e pelo cinema. E tudo é belo, tudo é grandioso. O ensaio de Contardo Calligaris, publicado no Mais! em 3 de setembro, é o relato desse encontro. Os dois cavaleiros nômades, Contardo Calligaris e Walter Salles, se encontram em meio a uma filmagem. Calligaris discorre longamente sobre o tema escolhido por Walter Salles, e é lindo seu ensaio. A questão da modernidade, o mito e as narrativas, a saída do tradicional, o tema que Walter Salles escolheu trabalhar, seu processo de criação, a relação com o documentário, tudo isso aparece de forma comovente. É um ensaio sobre o processo de criação de Walter Salles. E, nesse aspecto, um importante ensaio. Enquanto isso, na favela de Vila Nova Albertina, a filmagem do curta-metragem "BMW Vermelho". A lama, o esgoto a céu aberto, os fios de gato lotando os postes de eletricidade, o depósito de lixo ao lado. Aquele cheiro penetrava na gente de um jeito que parecia que nunca mais iria nos abandonar. Agora, o filme pronto, os prêmios. Um em Gramado, de direção de arte, e vários no Festival de Curtas, aqui de São Paulo. Além de numerosos convites para festivais internacionais. Algo irmana essa difícil produção e o filme de Walter Salles: as dificuldades inerentes a qualquer fazer cinema e o amor pelo Brasil. Mesmo sendo um diretor já consagrado, não é possível que Walter Salles não passe pelo difícil processo de produção. E não é possível que não viva enormes problemas com a imensa maquinaria que deve ter tido que transportar para os longínquos confins de um áspero sertão. É a sensibilidade de Walter Salles, seu carinho pelo Brasil, que vem fazendo de seus filmes verdadeiras loas de esperança por um país melhor. Contardo Calligaris quer escrever sobre como filma Walter Salles. Mas seu olhar transforma o fazer cinema em atividade glamourosa. Entre os personagens implicados, parece que Calligaris não perdeu o olhar da inocência de que fala Walter Salles, em carta a ele endereçada. O curta-metragem "BMW Vermelho" aborda o tema que Contardo Calligaris relata mover Walter Salles: o contraste entre a modernidade e estruturas mais arcaicas. Só que aborda essa questão no urbano. O personagem principal, Odilon (Otávio Augusto), é um desempregado que vive com sua mulher e filhos em uma ocupação, ou seja, em condições absolutamente precárias de vida. Em meio a tudo isso Odilon ganha, em um sorteio de banca de revistas, um BMW vermelho, que passa então a fazer parte da paisagem da favela. Aqui, o contraste apontado por Contardo: a modernidade contraposta a um mundo arcaico. Odilon não tem o que fazer com o carro, pois está nas regras do sorteio não vendê-lo por dois anos. Não sabe guiar. Não tem dinheiro para licenciar o carro nem para comprar gasolina. Em meio a uma noite de chuva, a casa cheia de goteiras, a família passa a morar no carro. O carro se deteriora e acaba sendo vendido a um ferro velho. Odilon pede "uma carona", para qualquer lugar ou para lugar nenhum, pois nunca pôde andar no carro. Amargamente, o filme mergulha nos "dias de pesadelo" a que se refere Calligaris. Afirma ele sobre Walter Salles: "O extraordinário é que, mesmo assim, ele escreveu um roteiro para lembrar que a modernidade nasceu de um sonho de liberdade da esperança de um dia ver o mar". Em Odilon, a esperança está ausente, há apenas o dia-a-dia, a luta pela sobrevivência, o imediato. Mar, marginal do rio Pinheiros, não há outro mar. Assisti à produção e filmagem de "BMW Vermelho". O dinheiro para fazer o filme veio do Ministério da Cultura -o roteiro ganhou um prêmio que, ao final, foi um terço dos gastos. O primeiro passo foi o re-trabalho do roteiro pelo dois diretores. O argumento era de Reinaldo Pinheiro, que se juntou a Eduardo Ramos. Depois, a montagem da equipe, a escolha dos atores. Sem dinheiro, a equipe deveria se dispor a trabalhar nessas condições. Otávio Augusto aceitou o convite movido pelo encantamento com o roteiro, bem como Denise Weimberg. Foram várias as visitas à favela, as conversas com o líder comunitário, a escolha do barraco que seria a casa de Odilon. Depois, com o diretor de fotografia, a escolha do equipamento. No dia da filmagem, vários caminhões com luz, trilhos para "travelling", geradores, carrinhos para transporte da câmera, luzes pesadas, mangueiras e cerca de 50 pessoas estavam de prontidão. Inclusive seis seguranças que deveriam cuidar do BMW e do equipamento.

O BMW e a lama
A chegada dos atores principais... O BMW sempre era trazido por um caminhão transportador e era sempre aplaudido pelos moradores. Tirar o BMW de lá de cima era tarefa perigosa: a lama escorregava, todos tinham medo de dirigir o carrão.
Otávio Augusto foi o tempo todo assediado. A cada tomada da câmera, de 10 a 20 pessoas da equipe eram mobilizadas. E cada cena era repetida pelo menos dez vezes. Os atores mais esperavam do que atuavam. Para preparar cada take era preciso ao menos meia hora. E, a cada mudança de ambiente, pelo menos uma hora. E os homens montavam e desmontavam os trilhos, em meio aos barrancos, os frágeis barracos, os telhados expostos. Nas refeições, de 50 a 60 pessoas. No decorrer dos quatro dias, o BMW degenera. No final, o carro na "maior draga". Chegar e ver o carro sem as portas, enferrujado, caindo aos pedaços, foi assustador. Depois, as várias etapas de finalização, como um bordado, fio a fio. E os telefonemas da favela haviam visto caminhões de luz, atores da Globo, queriam mais dinheiro pelo aluguel da casa, do espaço de refeições, do camarim...
Aqui no Brasil não tem muito como não se melecar com tudo isso. O que dá uma cara própria ao nosso cinema. O pesadelo permeia o sonho durante todo o processo. Nas entranhas do fazer cinema, surge o Brasil, ele mesmo mistura de sonho e pesadelo. Walter Salles tem mostrado isso. E conhece um Brasil onde há muitos Odilons.


Miriam Chnaiderman é psicanalista, pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica) e autora de "O Hiato Convexo" (Brasiliense) e "Ensaios de Psicanálise e Semiótica" (Escuta).



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