|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
Baseado em ampla pesquisa documental, "A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro" faz estudo revelador sobre a escravidão no séc. 19
Liberdade obsedante
Marco Antonio Villa
especial para a Folha
A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro", de Mary C. Karasch é, seguramente, um dos mais importantes livros
sobre a história da escravidão no Brasil.
Depois de mais de uma década de publicações onde foram enfatizadas supostas
fissuras no regime escravocrata, que teriam permitido aos cativos viver em condições razoáveis e obter a liberdade com
relativa facilidade, Karasch, pesquisando
a escravidão urbana no Rio de Janeiro
entre 1808 -com a chegada da corte
portuguesa- e 1850 -quando foi interrompido o tráfico de escravos-, demonstra, com base em ampla pesquisa
documental, justamente o contrário.
O Rio de Janeiro nas primeiras décadas
do século 19 teve a maior população urbana de escravos das Américas. Pelo seu
mercado de escravos passou quase 1 milhão de africanos, a maioria formada por
crianças e adolescentes. Depois da longa
viagem pelo Atlântico, chegavam magros e doentes. Alguns, devido às epidemias de oftalmia, contraídas nos tumbeiros, desembarcavam cegos, mas mesmo
assim eram levados para o mercado do
Valongo.
A vida dos escravos era marcada pelo
trabalho estafante, com jornadas de 18
horas, que se estendiam por seis ou sete
dias por semana: raros eram os senhores
que concediam o descanso semanal de
um dia inteiro livre. Qualquer manifestação de desagrado era severamente punida. O açoite de quatro ou cinco pontas
era utilizado usualmente para punir os
escravos. Depois de dezenas ou até centenas de chibatadas, o escravo tinha o
corpo lavado com vinagre e pimenta: pelo "serviço" de cem chibatadas, o senhor
pagava ao carrasco 160 réis.
Posteriormente, o escravo recebia uma
argola de ferro com um tridente, colocada na cabeça, e uma corrente de ferro na
perna. Devido aos castigos, abriam-se feridas e os escravos contraíam o tétano.
Pessimamente alimentados, vestidos
com pouca roupa, assolados pelos violentos castigos, morando em ambientes
insalubres e trabalhando ininterruptamente, não conseguiam resistir às doenças: a "cidade maravilhosa" devorava os
negros. A mortalidade entre os cativos
era muito alta. Muitos senhores abandonavam os escravos agonizando ou mortos pelas praças e ruas do Rio -como faziam com o lixo doméstico- para não
terem gastos com o enterro.
Os milhares de africanos foram buscando formas de resistir à
escravidão através da deserção, resistência violenta e da alforria. Mas, como
lembra a autora, se os caminhos variavam, o objetivo era sempre o mesmo:
"Fugir da escravidão e retornar à África". Os escravos, nas suas atividades,
de acordo com o relato dos viajantes,
cantavam em todas as ocasiões possíveis.
Um deles, registrou uma destas canções:
"Vou carregando por meus pecados/
Mala de branco p'ra viajar,/ Quem dera
ao Tonho, pobre negro,/ P'ra sua terra
poder voltar!".
A busca da liberdade era uma obsessão
para os africanos. Muitos chegavam a
realizar durante anos trabalhos suplementares, para com suas economias
comprar a liberdade de suas esposas e filhos. Outros, como não tinham recursos
suficientes para comprar a sua liberdade,
adquiriam escravos recém-chegados da África
que eram vendidos por
um preço mais baixo e,
depois de educados e
aculturados, eram trocados pela sua própria liberdade. Raros foram os senhores que concediam liberdade aos seus escravos: muitos optavam pela alforria condicional, que podia ser revogada a qualquer momento. Em um dos casos citados, uma viúva revogou a concessão da
alforria depois de 16 anos. Como ressalta
Karasch, o "africano típico importado
para o Rio de Janeiro entre 1808 e 1850
morria escravo".
Depois da leitura de "A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro", causa ainda
maior estranheza as afirmações de Gilberto Freyre em "Interpretação do Brasil", publicado em 1947, de que os escravos tinham férias de 30 dias ao ano, realizavam livremente suas festas, não eram
separados dos seus filhos e mulheres, alguns recebiam a mesma educação que os
senhores davam aos seus filhos e viviam
em melhores condições que os operários
europeus.
A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro
643 págs., R$ 48,00
de Mary C. Karasch. Trad. Pedro
Maia Soares. Companhia das
Letras (r. Bandeira Paulista, 702,
conjunto 32, CEP 04532-002,
SP, tel. 0/xx/11/ 3846-0801).
Marco Antonio Villa é professor de história da
Universidade Federal de São Carlos e autor, entre
outros, de "Vida e Morte no Sertão - História das
Secas do Nordeste nos Séculos 19 e 20 (Ed. Ática,
no prelo).
Texto Anterior: Leia também Próximo Texto: João Cezar de Castro Rocha: Romances da formação Índice
|