São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2000

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Reunindo 27 relatos de navegadores "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial" lança novas luzes sobre o passado colonial
Romances da formação

João Cezar de Castro Rocha
especial para a Folha

Com "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial", Jean Marcel Carvalho França dá continuidade ao projeto editorial iniciado com "Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio/Eduerj, 1999). Nas palavras do autor, trata-se de "recuperar descrições da cidade deixadas por visitantes estrangeiros que a visitaram durante o período colonial". O primeiro volume cobriu o período de 1531 a 1800; o segundo, o período de 1582 a 1808. A importância da definição do arco temporal já foi esclarecida em "Visões do Rio de Janeiro Colonial". Ora, a abertura dos portos, ocorrida em 1808, após o desembarque de d. João 6º e sua corte, não somente aboliu o pacto colonial que obrigava a colônia a aceitar a exclusividade comercial dos portugueses, mas sobretudo representou o fim da política portuguesa do "sigilo" em relação às riquezas da colônia. A motivação dessa política era simples: afastar das costas brasileiras possíveis interessados nos domínios coloniais de além-mar. E o temor não era nada imaginário, como a invasão holandesa e as tentativas francesas de criação de uma "França antártica" o demonstraram. Por isso, no século 17, os zelosos portugueses cuidaram de proibir a circulação dos "Diálogos das Grandezas do Brasil" (1618), de Ambrósio Fernandes Brandão. Afinal, proclamar as riquezas da terra do pau-brasil certamente atrairia a cobiça de outras nações. Nesse caso, quanto maior o sigilo, mais segura a exploração da colônia.

Esforço de pesquisa
Como consequência direta dessa política, as descrições do Rio colonial pareceriam restritas a viajantes portugueses que eventualmente decidissem registrar suas impressões. Só por desmentir essa idéia já se revela a importância do esforço de pesquisa e a oportunidade da erudição de Jean Marcel Carvalho França. Em "Visões do Rio de Janeiro Colonial" o leitor tem acesso a 35 descrições; em "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial", a 27. Predominam os relatos de navegadores ingleses, seguidos de franceses, igualmente em bom número, e, por fim, alguns espanhóis que por aqui aportaram.
O conjunto dessas 62 descrições deverá estimular estudos renovados sobre o Rio colonial, visto agora sob uma ótica menos familiar. Além disso, o critério editorial é muito feliz. Todos os relatos são antecedidos por esclarecimentos sobre a viagem e o viajante e sucedidos tanto por comentários relativos à edição consultada quanto por uma bibliografia seleta. O livro traz ainda primorosas ilustrações que complementam o esboço da cidade desenhado nos textos.
No entanto "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial" não é um sisudo livro acadêmico. O olhar estrangeiro proporciona uma leitura cheia de surpresas e, por vezes, surpreendentes antecipações.
Leiam-se, por exemplo, as lúcidas páginas de James Kingntson Tuckey (1805) sobre a escravidão e a crescente insatisfação dos colonos. Por vezes, a simples distância temporal assegura aos textos uma renovada recepção.
É o caso da descrição de René Duguay-Trouin (1712), o almirante francês que, em 1711, saqueou a cidade do Rio de Janeiro. Em sua visão de militar, a cidade se reduz a portos, fortalezas e riquezas a serem apropriadas, mas, para o leitor de hoje, seu relato recorda um romance.
Poderia multiplicar os exemplos, mas, em vez de antecipar o convívio com perspectivas tão diversas do Rio de Janeiro colonial, prefiro associar o interesse que o trabalho de Jean Marcel vem merecidamente despertando a uma outra visão da cultura brasileira. Para tanto, recordem-se alguns momentos da história da terra do pau-brasil.
Os brasileiros aprenderam a pintar suas paisagens e a retratar suas gentes nas aulas da missão artística francesa, aqui desembarcada em 1816. Como estudou Maria Helena Rouanet, em "Eternamente em Berço Esplêndido", descobriram com outro francês, Ferdinand Denis, a chave para a criação da literatura brasileira: um quase nada de interioridade psicológica para um quase tudo de exterioridade da natureza tropical. Em "O Brasil Não É Longe Daqui" (Cia. das Letras), Flora Süssekind propôs que a formação da prosa de ficção na literatura brasileira se estruturou a partir de um intenso diálogo com os relatos de viajantes. Por fim, em "O Trato dos Viventes", Luiz Felipe de Alencastro (Cia. das Letras) tocou na ferida, ao explicitar que a formação do Brasil ocorreu em larga medida fora do Brasil. A operação é por certo sutil e consiste em aceitar como própria a projeção do outro. Antinarciso, o brasileiro aprendeu a reconhecer-se no espelho do olhar estrangeiro.
Talvez por isso os relatos coligidos por Jean Marcel sejam tão atraentes. Lembremos a fórmula de Sergio Buarque de Holanda, em "Raízes do Brasil", mas sem traço algum de melancolia. O brasileiro é mais do que um desterrado em terra própria. Ao que parece, o Brasil é do pau-brasil e não dos brasileiros. O brasileiro é o estrangeiro do Brasil.



Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial
350 págs., R$ 34,50 de Jean Marcel Carvalho França. Ed. José Olympio (rua da Glória, 344, 4º andar, RJ, CEP 20241-180, tel. 0/xx/21 509-6939).



João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).


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