São Paulo, Domingo, 17 de Outubro de 1999
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OUTRO LADO

Embaixador expõe sua versão do episódio


especial para a Folha


O embaixador aposentado Mário Calábria (que nos primeiros anos de sua vida arrastou também o estigmatizante sobrenome Mussolini, raspado do registro civil quando atingiu a maioridade) tem uma versão diferente do episódio de caças às bruxas que agitou o Itamaraty no início da década de 1950. Aos 76 anos, vivendo em Berlim com a mulher, alemã que lhe deu quatro filhos, esse mato-grossense de Corumbá não vê razão para arrependimento, mas diz: "Preferia nunca ter vivido essa história".
Ouvido por telefone na última quarta-feira, ocasião em que soube da morte do poeta, Calábria contou que a famosa carta de João Cabral a Paulo Cotrim lhe foi entregue em bizarras circunstâncias -dentro de uma sauna, na Alemanha- "por um estrangeiro" cuja identidade diz desconhecer, mas que supõe ser um dos incontáveis espiões que infestavam o país naquele momento de acirrada guerra fria entre a União Soviética e as potências ocidentais. Ele diz desconhecer, também, o motivo pelo qual foi escolhido para receber o envelope.
"Fiquei com a batata quente na mão", prossegue Calábria, que, aconselhado por um colega, decidiu repassá-la ao embaixador brasileiro na Alemanha, Faro Júnior. O terceiro-secretário José Maria Bello Filho, que em razão de suas desavenças com Paulo Cotrim ("chegaram a briga de soco") havia sido transferido para a embaixada, em Bonn, teria então, segundo Calábria, se apoderado da carta, entregando-a a Lacerda.
O embaixador aposentado refuta a informação de João Cabral de que essa correspondência foi escrita em tom de brincadeira. "Aí começa a falsidade", devolve Calábria. "Cabral era stalinista e fazia catequese política", afirma o diplomata, acrescentando que a primeira mulher do poeta (Stella, mãe de seus cinco filhos, que morreu nos anos 80) "até achava graça" nesse proselitismo do marido.
Ele afirma ainda ter ouvido o poeta fazer profissão de fé esquerdista no Natal que passaram juntos, em 1952. "Meu azar foi ter ido ao Natal em Londres", lamenta Calábria, explicando que o fato de haver testemunhado a "catequese" política de Cabral o transformou em suspeito quando, pouco depois, estourou a história da carta: "Houve quem me acusasse, primeiro, de tê-la escrito, e, depois, de ter roubado o envelope na casa de Cabral". Calábria diz que em pelo menos uma ocasião tentou se reconciliar com o poeta: quando ele foi eleito para Academia Brasileira de Letras, mandou-lhe uma carta para a qual não houve resposta. "Eu fui informado de que Cabral exibia a minha carta como uma vitória dele", desabafa.
Mário Calábria, que se aposentou em 1985 como ministro de segunda classe, portanto sem haver atingido o último degrau da carreira, diz acreditar que o episódio "alterou totalmente" os rumos de sua vida funcional, na medida em que lhe criou desafetos influentes no Itamaraty. "Sem isso, eu teria talvez passado mais tempo no Brasil, que é onde a carreira de fato avança", especula Calábria.
Na verdade, permanecer no exterior lhe convinha, na medida em que facilitaria a educação de seu único filho homem, hoje com 46 anos, cego de nascença. Nesse sentido, o Itamaraty até colaborou com Calábria, permitindo-lhe passar longos 18 anos em Munique, sede de modernas instituições para quem tem tal tipo de deficiência. "Uma coisa contrabalançou a outra", admite.
A carreira de Mário Calábria levou sucessivamente à Síria, ao Canadá, à Holanda e à Alemanha. Depois da temporada em Munique, foi embaixador comissionado na extinta República Democrática Alemã e, sem ser remotamente esquerdista, se orgulha de haver sido agraciado com a mais alta comenda do governo comunista. Ao se aposentar, por limite de idade, era cônsul-geral na então Berlim Ocidental.
Dono de uma coleção de arte cujas peças mais valiosas são pinturas de Kandinsky e Paul Klee, Mário Calábria tem ainda pendores literários. "Tenho meus pecados", confessa ele, quando indagado se escreve poesia. No momento, prepara suas memórias, nas quais o episódio que tanto infelicitou João Cabral de Melo Neto certamente ocupará muitas páginas. "Vou contar isso direitinho", anuncia Mário Calábria. (HW)


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