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OUTRO LADO
Embaixador expõe sua versão do episódio
especial para a Folha
O embaixador aposentado Mário Calábria (que nos primeiros
anos de sua vida arrastou também o estigmatizante sobrenome
Mussolini, raspado do registro civil quando atingiu a maioridade)
tem uma versão diferente do episódio de caças às bruxas que agitou o Itamaraty no início da década de 1950. Aos 76 anos, vivendo
em Berlim com a mulher, alemã
que lhe deu quatro filhos, esse
mato-grossense de Corumbá não
vê razão para arrependimento,
mas diz: "Preferia nunca ter vivido essa história".
Ouvido por telefone na última
quarta-feira, ocasião em que soube da morte do poeta, Calábria
contou que a famosa carta de João
Cabral a Paulo Cotrim lhe foi entregue em bizarras circunstâncias
-dentro de uma sauna, na Alemanha- "por um estrangeiro"
cuja identidade diz desconhecer,
mas que supõe ser um dos incontáveis espiões que infestavam o
país naquele momento de acirrada guerra fria entre a União Soviética e as potências ocidentais. Ele
diz desconhecer, também, o motivo pelo qual foi escolhido para receber o envelope.
"Fiquei com a batata quente na
mão", prossegue Calábria, que,
aconselhado por um colega, decidiu repassá-la ao embaixador
brasileiro na Alemanha, Faro Júnior. O terceiro-secretário José
Maria Bello Filho, que em razão
de suas desavenças com Paulo
Cotrim ("chegaram a briga de soco") havia sido transferido para a
embaixada, em Bonn, teria então,
segundo Calábria, se apoderado
da carta, entregando-a a Lacerda.
O embaixador aposentado refuta a informação de João Cabral de
que essa correspondência foi escrita em tom de brincadeira. "Aí
começa a falsidade", devolve Calábria. "Cabral era stalinista e fazia catequese política", afirma o
diplomata, acrescentando que a
primeira mulher do poeta (Stella,
mãe de seus cinco filhos, que
morreu nos anos 80) "até achava
graça" nesse proselitismo do marido.
Ele afirma ainda ter ouvido o
poeta fazer profissão de fé esquerdista no Natal que passaram juntos, em 1952. "Meu azar foi ter ido
ao Natal em Londres", lamenta
Calábria, explicando que o fato de
haver testemunhado a "catequese" política de Cabral o transformou em suspeito quando, pouco
depois, estourou a história da carta: "Houve quem me acusasse,
primeiro, de tê-la escrito, e, depois, de ter roubado o envelope na
casa de Cabral". Calábria diz que
em pelo menos uma ocasião tentou se reconciliar com o poeta:
quando ele foi eleito para Academia Brasileira de Letras, mandou-lhe uma carta para a qual não
houve resposta. "Eu fui informado de que Cabral exibia a minha
carta como uma vitória dele", desabafa.
Mário Calábria, que se aposentou em 1985 como ministro de segunda classe, portanto sem haver
atingido o último degrau da carreira, diz acreditar que o episódio
"alterou totalmente" os rumos de
sua vida funcional, na medida em
que lhe criou desafetos influentes
no Itamaraty. "Sem isso, eu teria
talvez passado mais tempo no
Brasil, que é onde a carreira de fato avança", especula Calábria.
Na verdade, permanecer no exterior lhe convinha, na medida
em que facilitaria a educação de
seu único filho homem, hoje com
46 anos, cego de nascença. Nesse
sentido, o Itamaraty até colaborou com Calábria, permitindo-lhe
passar longos 18 anos em Munique, sede de modernas instituições para quem tem tal tipo de deficiência. "Uma coisa contrabalançou a outra", admite.
A carreira de Mário Calábria levou sucessivamente à Síria, ao Canadá, à Holanda e à Alemanha.
Depois da temporada em Munique, foi embaixador comissionado na extinta República Democrática Alemã e, sem ser remotamente esquerdista, se orgulha de
haver sido agraciado com a mais
alta comenda do governo comunista. Ao se aposentar, por limite
de idade, era cônsul-geral na então Berlim Ocidental.
Dono de uma coleção de arte
cujas peças mais valiosas são pinturas de Kandinsky e Paul Klee,
Mário Calábria tem ainda pendores literários. "Tenho meus pecados", confessa ele, quando indagado se escreve poesia. No momento, prepara suas memórias,
nas quais o episódio que tanto infelicitou João Cabral de Melo Neto certamente ocupará muitas páginas. "Vou contar isso direitinho", anuncia Mário Calábria.
(HW)
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