São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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O JARDIM DAS SENSAÇÕES


Em seu novo livro, "A Estrela dos Amantes", o crítico e escritor francês Philippe Sollers saúda os refratários, diz que a sociedade se tornou "invivível" e afirma que a linguagem é hoje vítima de um "puritanismo pornográfico"


Alcino Leite Neto
de Paris

É um romance? Uma novela filosófica? Uma fábula panteísta? Uma sátira social? "L'Étoile des Amants" (A Estrela dos Amantes, ed. Gallimard), de Philippe Sollers, é tudo isso ao mesmo tempo -e secretamente é um livro de auto-ajuda perverso, escrito para os "refratários", sobretudo para eles.
Quem são os "refratários"? São aqueles sujeitos que ninguém consegue sujeitar. "São irresponsáveis. São associais, incontroláveis, irrecuperáveis. Mal vistos à direita, mal vistos à esquerda, vomitados pelo centro, estrangeiros nas margens, onde você quer colocá-los? No além? Nem mesmo lá", escreve Sollers.
Eles estão no meio do mundo, sempre no encalço da beleza, de uma arte de viver. Inventam ilhas para uma existência afirmativa -pequenos paraísos da linguagem e jardins de sensações-, no centro mesmo do inferno social cotidiano, sem esperar pelas promessas transcendentes. "Sociedade, capital do Tédio. Deus se tornou Sociedade, portanto, o Tédio."
Na trama escorregadia do livro, é para uma ilha que partem o narrador e sua amante, Maud. Ele é um escritor; ela, uma aspirante à literatura. O romance, apesar dos diálogos escassos, é como uma longa conversa entre os dois, sob os auspícios dos "velhos textos" -clássicos orientais e ocidentais, portadores das "visões grandiosas" dos "refratários do passado", que o autor cita o tempo todo.
Publicado alguns meses antes de "Como Viver Junto" -as aulas de Roland Barthes no Collège de France-, "A Estrela dos Amantes" guarda correspondências fortes com o curso do ensaísta: ambos manifestam o mesmo desejo de reconstruir a vida entre seus pares, tomando distância do coletivo e se afastando da "Necrópolis" (Sollers) em que se transformou a vida social.
Philippe Sollers, 66, é o pseudônimo de Philippe Joyaux. "Uma Curiosa Solidão" (1958) foi sua estréia na literatura. Com "O Parque" (1961), "Paraíso" (1981) e "Mulheres" (1983), firmou-se como um dos principais autores franceses contemporâneos.
É também uma estrela da vida intelectual parisiense, crítico sofisticado que comparece com frequência na imprensa e agitador cultural intranquilo, editor da prestigiosa revista "L'Infini", que em 1983 substituiu a polêmica e radical "Tel Quel".

O sr. escreve em seu livro: "Eu invento o verbo silenciar ("silencier'), é preciso". O sr. sabia que esse verbo já existe em português?
É mesmo? No espanhol também?
Também.
Então talvez seja uma reminiscência infantil, porque aprendi o espanhol muito novo em Bordeaux. Eu estou hispanizando o francês (risos).
Como o sr. construiu "A Estrela dos Amantes"?
Eu parto sempre de uma situação em que o narrador descobre que o mundo é "invivível". É o caos, a confusão, a usura, o tédio, em suma: a sociedade. E, a partir daí, em todos os meus romances, de uma maneira ou de outra, vai-se procurar uma saída. Vai-se construir pouco a pouco, de maneira muito determinada, um lugar anti-social ou associal ou contra-social. Inventam-se sociedades de prazeres, sociedades secretas. Vai-se começar a viver de maneira clandestina, como o deus de Epicuro, que vive nos intervalos sem se ocupar das questões dos mortais, porque elas são cada vez mais entediantes e opressivas. Assim, em "A Estrela dos Amantes", o narrador vai se reunir a uma jovem, Maud, e partir com ela para um lugar onde poderão se esconder em pleno dia, ficar isolados e reinventar uma situação que é mais ou menos paradisíaca, a fim de escapar da usura e da opressão. Diferentemente de Daniel Defoe (em "Robinson Crusoe"), eu quis colocar os personagens numa ilha onde eles podem usufruir da técnica, ter telefone, televisão etc., pois o que interessa é colocá-los numa situação de reeducação da percepção, da sensação. Meu livro é sobre os cinco sentidos: o que é degustar, tocar... Pensei muito em Nietzsche, quando ele fala que, depois da morte de Deus, é preciso que nós, mortais, aprendamos a pensar os sentidos. Nós não somos, talvez, capazes ainda de pensar os sentidos. O livro, então, traz essa situação de reeducação, de reaprendizagem muito minuciosa: estar atento às flores, saber discernir os pássaros... Tudo de maneira muito ligeira, porque não quis fazer um tratado natural.
Quer dizer que sua ilha não está num além distante, mas é algo que pode se realizar aqui, agora?
Sim, está diante de você. É uma glorificação do presente. Creio que o presente é urgente, porque hoje ou você é lançado numa mistificação da história, por comemorações mais ou menos falsificadas, ou então é pressionado rumo ao futuro, isto é, provavelmente ao caos.
Quando o sr. evoca os "velhos textos" clássicos está pretendendo lutar contra essa falsificação do passado?
Os textos são em geral indianos ou chineses. O que eu queria mostrar, sem o fazer didaticamente, mas em situação, é que estamos numa circunstância tal que os mortos -o que chamamos mortos- se dirigem a nós de uma maneira realmente nova. Nós os conhecemos mal, pensamos que são coisa do passado. Mas não, o passado está aqui. Talvez pela primeira vez possamos ouvir de muito perto o que foi dito através dos séculos. Você abre a Bíblia, os upanixades, você abre o arquivo, mas não para recopiar e sim para que eles falem a você pessoalmente. À medida que a memória é destruída, que o cálculo se intensifica, o lucro e a mercadoria reinam e a soberania da técnica é total e totalizante, é muito estranho que de repente, muito discretamente, se possa, ao contrário, abrir esse arquivo de maravilhas.
O que os velhos textos têm que os contemporâneos não possuem? A sabedoria?
A beleza, pois ela já comporta a sabedoria. A sabedoria seria algo muito didático. Seria já fazer a pregação. Nada de pregações, mas a beleza pura, as palavras, as sensações... Mas eu cito também os contemporâneos, como Pound e Rimbaud. [O crítico italiano] Roberto Calasso tem uma tese muito forte em seu livro "A Literatura e os Deuses". Ele diz que não é mais preciso procurar os deuses no cosmo, porque eles estão na linguagem, se refugiaram ali. Para saber escrever, é preciso saber ler. Por isso há cada vez menos bons escritores, porque ninguém mais sabe ler. Mas, para saber ler, é preciso saber viver. Viver a verdadeira vida é vivê-la lendo e dizendo. Fazer verdadeiramente o amor é dizê-lo também. Não é a pornografia, mas o erotismo com a linguagem. A pornografia é um sintoma da crise de nosso tempo com relação à linguagem. Você tem, de um lado, a linguagem convencional, institucional, recalcada, ou a linguagem da violência e da pornografia. Uma e outra, porém, se dão as mãos hoje, como se vê muito bem nos Estados Unidos, um país extraordinariamente puritano e ao mesmo tempo capaz de uma grande mise-en-scène pornográfica.
O que é exatamente o "puritanismo pornográfico" de que fala em seu livro?
No século 19, o sexo era o diabo, a blasfêmia. Hoje o sexo é uma mercadoria como qualquer outra. Evidentemente o mercado reduz isso ao mínimo de significação, com uma certa brutalidade e violência, para realizar a circulação mercantil. E ao mínimo de palavras também. Por isso os filmes pornográficos têm uma prevalência da imagem e uma linguagem próxima da afasia ou da idiotia. Eu gostaria de fazer um filme pornográfico com a "Ética" de Espinosa, mas ninguém me daria um euro ou US$ 1 para isso. Seria, contudo, algo muito belo. A linguagem foi reduzida à comunicação, ao cálculo, para dizer o instantâneo que favoreça as trocas comerciais. É a linguagem do valor de troca. Nós somos todos dependentes do que está sendo tamborilado em todas as capitais do mundo, nas Bolsas da Linguagem. E o que acontece com a vida pessoal? Será que ela foi decretada inessencial e dispensável, indefinidamente substituível? Por que alguém reivindicaria a sua experiência de mundo? Não se tem tempo. Passamos pelas coisas muito apressadamente ou de maneira turística ou de modo cansado ou barulhento... Os diferentes totalitarismos do século 20 decretaram que a vida humana é supérflua. Quando ouvimos falar de Stálin, Hitler etc., dizemos: que coisa horrível. Nós, ao contrário, somos bons, somos democráticos e progressistas. Mas talvez a coisa tenha seguido seu curso. É a coletivização geral.
Seu livro desenvolve um conceito, uma imagem, que é a de "refratários". O sr. acha que se trata também de um programa político embutido dentro do romance?
Não, você não pode fazer um programa disso, porque haverá tantos refratários quanto forem as situações dadas. Além do que, há muitos martírios de refratários. Se você é um refratário, vão certamente lhe propor um belo sacrifício -ser queimado vivo, preso, colocado num asilo psiquiátrico. E eu sou do ponto de vista de Voltaire: não aos martírios! É preciso escapar dessa armadilha. É preciso ter máscaras. O refratário tem que aprender a não deixar que o identifiquem. Ele é um incrédulo, um ateu, não no sentido do ateísmo militante. Ele é suspeito, pois se deslocou do barulho, não cedeu no seu desejo pessoal, no desejo de ir mais longe no conhecimento de seu desejo.


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