São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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ARTE EM CONDENSAÇÃO


Transgressões formais na arte contemporânea deixam de lado a crítica política e retomam a capacidade da pintura de explorar as fronteiras indecisas entre o real e sua representação


por Jacques Rancière

No domínio da arte, também o acaso às vezes gera encontros estranhos. Existe em Nova York um museu, o Dahesh, voltado à grande tradição da pintura acadêmica do século 19. Em razão de uma mudança de sede, suas exposições se encontram, por enquanto, abrigadas justamente ao lado do museu Guggenheim. Assim, enquanto o templo da modernidade arquitetônica e pictórica apresenta, sob o título "Moving Pictures" (Fotos em Movimento), uma exposição dedicada ao desenvolvimento contemporâneo da fotografia, do cinema e do vídeo, o edifício vizinho traz a exposição "Against the Modern" (Contra o Moderno). O herói escolhido para liderar essa cruzada sem complexos é um pintor francês do final do século 19: Pascal-Adolphe-Jean Dagnan-Bouveret (1852-1929), que teve seu momento de glória no passado, mas cujas telas, hoje em dia, precisaram ser desenterradas dos porões de museus de cidades do interior da França ou dos Estados Unidos.

Vida cotidiana
É desnecessário dizer que muito poucos visitantes do Guggenheim pensam em dar uma passada pela porta vizinha. Mas aquele que o fizesse correria o risco de sair com as idéias um pouco confusas acerca do que quer dizer "modernidade". Digamos desde já: o honesto Dagnan-Bouveret não tem nenhuma culpa nesse cartório. O visitante provavelmente felicita o pintor por frequentemente abrir mão da representação de grandes cenas mitológicas ou religiosas para dedicar-se a temas tirados da vida cotidiana ou da paisagem rural profunda: uma lavadeira nos cais de Paris, um concerto rústico, uma parada de boêmios, uma romaria na Bretanha, um médico que cuida de um jovem acidentado e, sinal supremo de interesse pela vida moderna, um cortejo de casamento fazendo pose para o fotógrafo. Mas uma lavadeira não faz um Degas nem uma bretã um Gauguin e nem mesmo a melhor das vontades nos possibilita identificar na composição fria e nas cores sem vibração do pintor acadêmico o menor sinal que seja de uma modernidade reprimida ou insuspeita. A perplexidade vem, portanto, do outro lado -das "fotos em movimentos" dispostas em torno da célebre rampa circular e da grande instalação em vídeo de Bill Viola, intitulada "Going Forth by Day" [título que deriva de uma tradução literal do nome do Livro Egípcio dos Mortos, "The Book of Going Forth by Day", um guia para a alma, livre das trevas do corpo].

Mudança de paradigma
Entretanto os responsáveis pela exposição nos oferecem todos os elementos necessários para avaliar o que vemos. Eles nos explicam, sem surpreender, que uma mudança decisiva de paradigma artístico aconteceu há 30 ou 40 anos, com a absorção do vídeo e da fotografia nas "práticas críticas da arte contemporânea". Mas essa informação não nos diz nada sobre o que seriam hoje essas práticas artísticas "críticas" ou "radicais". Certamente podemos dar por certo que os avanços recentes nas áreas da fotografia, do vídeo e das instalações afetaram de maneira durável os conceitos de autonomia da obra, da separação entre as artes e da separação entre arte e comércio, que estavam na base do modelo teórico modernista. De um lado, porém, esse modelo teórico, por maciçamente difundido que tenha sido nos anos 1950, nunca guardou mais do que uma relação muito distante com as práticas modernas da arte, que, por sua vez, nunca deixaram de atravessar essas fronteiras. De outro lado, não parou de crescer a dúvida quanto à capacidade dessas transgressões formais de operar uma crítica política radical. Será que alguém acredita de fato que os grupos de mulheres nuas filmadas por Vanessa Beecroft [artista italiana que participou da 25ª Bienal de SP] no ambiente do museu, o personagem de mangá desviado pelos vídeos de Pierre Huyghe [artista francês que participa atualmente da exposição "Intimidade", no Paço das Artes - SP] ou os discursos contraditórios que o vídeo de Stan Douglas [artista canadense que apresentou o vídeo "Journey into Fear" na 25ª Bienal] apresenta sobre a história da ilha de Vancouver tenham o poder de questionar radicalmente os estereótipos sexuais, as diversões comerciais ou o discurso colonial de um visitante que já não tenha uma opinião formada sobre esses temas?

Retorno da pintura
Debaixo da aparência de crítica dos estereótipos sexuais, comerciais, políticos ou outros, é visivelmente outra coisa que hoje interessa ao artista e chama a atenção do visitante: um certo "retorno da pintura", ao lado dela mesma, sob formas outras que a sua.
É como se essas artes da reprodução e da projeção retomassem, por sua vez, o que foi um dos grandes recursos da pintura, entre naturalismo e simbolismo, expressionismo e surrealismo: a capacidade de explorar as fronteiras indecisas entre o real e o simbólico, de misturar ao olhar comovido lançado sobre a vida ordinária o fascínio com o que ela comporta de estranheza inquietante. Esse fascínio se expõe abertamente em mais de uma obra: nas centenas de fotos de anônimos que [o artista francês] Christian Boltanski expõe numa sala escura, iluminada apenas por algumas lâmpadas nuas, suspensas por cabos longos; nas cenas estranhas de subúrbios comuns fotografadas por Gregory Crewdson [norte-americano], nos "quartos de hotel" de Sophie Calle [francesa], nas fotos feitas por Rineke Dijkstra de adolescentes de corpos indecisos em praias populares ou ainda nos grandes polípticos fotográficos de Sam Taylor-Wood [inglesa], nos quais, por exemplo, uma moderna "Vênus diante do Espelho" se estende sobre cenas pornográficas. Mas é evidentemente a instalação de Bill Viola, no último andar do museu, a que revela claramente uma tendência significativa da arte contemporânea em vídeo. Não existe nenhuma intenção "crítica" nas cinco projeções em vídeo que são exibidas na longa sala escura onde os visitantes se acomodam sobre um tapete para assistir a projeções simultâneas. Em volta da porta de entrada, um grande fogo original do qual emergem, de maneira confusa, uma mão e um rosto humanos. Sobre a parede oposta, é um dilúvio de água que invade uma multidão de personagens urbanos pitorescos, cujos movimentos e traços a câmera nos descreveu em detalhes. A parede da esquerda é inteiramente ocupada por uma floresta areada pela qual passam e repassam interminavelmente, lentamente, diversos personagens cujos pés apenas encostam levemente no chão. A vida é uma passagem, compreendemos, e então podemos nos voltar para a quarta parede, dividida em duas telas. A da esquerda se divide em duas: numa pequena edícula à moda de Giotto, um velho está agonizando, cercado por seus filhos, enquanto num terraço ao estilo de Hopper um personagem contempla um mar nórdico onde, lentamente, enquanto o idoso morre e a luz no quarto se acende, um barco se prepara para zarpar. À direita, os homens exaustos que trabalharam no resgate de um povoado inundado descansam, enquanto, à beira d'água, uma mulher espera pela manhã e o renascimento. Bill Viola não tenta esconder uma certa nostalgia pela grande pintura e os ciclos de afrescos do passado, declarando que sua intenção, aqui, foi criar o equivalente aos afrescos de Giotto na capela da Arena de Pádua. Falta, sem dúvida, o fervor religioso necessário para tal programa, assim como a fé emancipadora para os vídeos e as instalações críticos. O que toma o lugar da história sagrada é a representação dos grandes ciclos do nascimento, da vida, da morte e do renascimento. Não é apenas questão de atração pessoal de um artista. Mais do que com a tradição de arte crítica com a qual se procura assimilá-la hoje, a arte do vídeo possui uma afinidade com a tradição simbolista do final do século 19 e início do século 20. No passado, ela frequentemente compartilhou esse fascínio com os estados imateriais sentidos pelos artistas na era da eletricidade triunfante. O que ela exprime hoje é, mais do que isso, a nostalgia desses grandes afrescos -pictóricos, literários ou musicais- que se procuravam criar na época de Dagnan-Bouveret, quando o fascínio realista pelos detalhes da vida comum vinha de encontro ao fascínio dos simbolistas pela representação dos grandes ciclos da vida.

Deslocamento político
Não existe aí nenhuma relação com qualquer "esgotamento" ou "crise" da modernidade artística. Esta sempre misturou gêneros, fórmulas e tempos, muito mais do que o admitem os catecismos modernistas. Percebe-se hoje, porém, um deslocamento da função política conferida à arte. Os procedimentos e as legitimações da tradição crítica ou irônica dos anos 1960/1970 continuam presentes. Mas as fotografias, as projeções ou instalações de objetos familiares ou estranhos que ocupam o espaço de museus e galerias procuram não tanto suscitar uma crítica da "vida cotidiana" ou um olhar aguçado sobre as formas de dominação quanto avivar uma sensibilidade nova quanto às formas de participação num mundo e numa história comuns.
Em suma, por meio de estratégias e formas muito diferentes, é uma forma de humanismo artístico novo que se afirma. Saber até onde esse humanismo da arte está ligado a uma situação na qual as ideologias consensuais, a preocupação com a reconstituição do "vínculo social" e as preocupações humanitárias tomaram a dianteira sobre a política é uma questão que não pode ser decidida às pressas, mas merece ser estudada com cuidado.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Clara Allain.


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