São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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Em "Torres de Babel", Jacques Derrida repensa os problemas da tradução a partir de um ensaio de Walter Benjamin

A grande confusão das línguas

Torres de Babel
74 págs., R$ 18,00 de Jacques Derrida. Trad. Junia Barreto. Ed. UFMG (av. Antonio Carlos, 6627, Belo Horizonte, MG, CEP 31270-901, tel. 0/xx/31/3499-4650).

Sérgio Telles
especial para a Folha

"Torres de Babel", ensaio de Derrida datado de 1987 e agora aqui traduzido, tem como tema central a tradução. Em vez de se contentar com o corriqueiro "traduttore, traditore", que condensa os impasses inerentes à tradução, Derrida aborda a questão bem a seu estilo. Mais uma vez, seguimos os tortuosos caminhos de seu pensamento, que a cada volta surpreende e encanta o leitor com sua complexa sutileza, mas só se ele (o leitor) estiver atento. Caso contrário, logo ficará perdido no labirinto das longas frases, cheias de parágrafos digressivos, parênteses pretensamente esclarecedores, comentários, adiamentos, adiantamentos e ilustrações. "Torres de Babel" é uma paráfrase de Derrida sobre o famoso ensaio de Walter Benjamin (1892-1940) que aborda a tradução, "A Tarefa do Tradutor" ("Die Aufgabe des Übersetzers"), texto que ele, Derrida, por sua vez, lê numa tradução, realizada por seu mestre Maurice de Gandillac. É interessante lembrar que o próprio texto de Benjamin é, por sua vez, o prefácio de uma tradução por ele feita dos "Quadros Parisienses" de Baudelaire. Está montado então um jogo de espelhos linguísticos, a refletir infinitamente o enigma das línguas.

Arrogância e soberba
O livro abre com o trecho bíblico sobre a Torre de Babel. Ali está escrito que, naquela ocasião, os homens planejavam a construção de uma torre com a qual chegariam aos céus, marcando uma cidade que os uniria e protegeria para sempre, evitando sua dispersão pela face da terra. Ao mesmo tempo, com isso, se fariam um nome. Esse projeto não agradou a Deus, que o interpretou como fruto da arrogância e da soberba dos homens, desafiando-o em sua posição de criador supremo. Deus então raivosamente "clama seu nome: Babel, Confusão", o que estabelece a diversificação das línguas, impede a consecução do projeto, provoca a dispersão dos homens e a incompreensão entre eles, fadando-os à necessidade da tradução. Ao projeto humano, que visava a racionalidade de uma comunicação clara e direta entre os homens, Deus impõe a sua própria língua, que, fragmentada numa miríade de línguas humanas, será para sempre estranha e estrangeira aos homens, que estarão condenados a uma comunicação falha e incompleta, necessitada permanentemente de tradução. Dos trechos pinçados por Derrida do ensaio de Benjamin, o mais importante é aquele em que se estabelece o vínculo entre a linguagem dita "pura" e a "verdade", proposição derivada de um texto de Mallarmé que Benjamin, significativamente, cita em francês, sem traduzi-lo para o alemão, língua na qual escrevia seu texto.

A atenção à forma
Para Benjamin, a tarefa do tradutor não é a recepção, a comunicação ou representação do original. Ele deve centrar seu interesse sobre a forma, coisa que fica patente sempre que se tenta traduzir textos sagrados ou poéticos. A tarefa do tradutor é "fazer amadurecer a semente de uma linguagem pura". Essa "linguagem pura" remete à mítica língua primeira, originária, da qual todas teriam derivado e que garantiria o parentesco essencial entre todas elas. É a portadora da depurada verdade. É a língua de Deus, que, ao se impor em Babel, o fez para "deixar entender que é difícil traduzi-lo e assim entendê-lo". Todo original importante "suporta" e "exige" uma tradução por ser portador de um fragmento dessa "linguagem pura". Cabe ao tradutor captar esse fragmento, essa "semente de linguagem pura", e produzi-lo em sua própria língua. Se as línguas se aproximam e tendem a uma linguagem maior, "pura", que expressaria a "verdade", também acontece que elas se afastam. Há algo intocável e intransferível na passagem de uma para outra, visível na absoluta singularidade com que cada língua expressa seus conteúdos. É isso que marca a diferença entre o original e a tradução.

O fruto e seu invólucro
No original, diz Benjamin, está o "caroço", o núcleo duro que permite a tradução, a reprodução. Ali, teor e linguagem formam uma unidade coesa "como a do fruto e seu invólucro". Já a tradução "envelopa seu teor como um manto real de largas dobras". Enquanto no original há uma natural harmonia e integração entre teor e língua, na tradução há uma solene e severa sobreposição de uma língua sobre o teor que precisa ser mostrado, ele é envolto por um "manto real", que representa a autoridade do simbólico, mas jamais terá a naturalidade que somente o original possui. A relação entre original e tradução tem consequências jurídicas sobre direitos autorais que estabelecem a legitimidade das traduções, que até lhes reconhece uma parcela de originalidade e trabalho autoral. Embora o texto faça muitas referências ao sagrado e à palavra de Deus, isso não deve ser confundido com qualquer posição religiosa ou mística. A "palavra de Deus" é aquela primeira, instauradora da estranheza e da impossibilidade de entendimento direto, a que impõe a tradução, mas que também evoca uma inefável e fugidia verdade, lugar ideal onde "a letra não se dissocia do sentido", onde se borrariam as diferenças entre original e tradução. O "nome de Deus" aqui evoca a nostalgia diante do próprio mistério indecifrável da existência das línguas. Afinal, o que querem elas dizer? O única coisa que podemos constatar é que elas querem simbolizar, representar.

O enigma da origem
Mais ainda, o "nome de Deus" é uma metáfora na própria língua para representar o enigma da origem de tudo -nosso anseio de paternidade, nós, pobres homens órfãos, confrontados com a irreconciliável antinomia das palavras com as coisas, condenados à tarefa de simbolizar. Somos todos "tradutores".
Os grandes originais são portadores de fragmentos da "linguagem pura" e da "verdade", não por expressarem revelações sagradas ou divinas, mas por apontarem profundas verdades humanas, intuídas e buriladas por seus autores e prontamente reconhecidas pelos seus leitores.
Reconhecendo a importância fundamental da "tarefa do tradutor", Walter Benjamin e Jacques Derrida talvez ofereçam algum consolo a essa sofrida classe, quase impedida de exercer com dignidade a sua profissão pelo aviltamento da má remuneração.
O problema da tradução necessariamente interessa, também, aos psicanalistas. Ao interpretar e construir, os psicanalistas estão sempre fazendo traduções do inconsciente para o consciente, tarefa ainda mais complicada e comprometida do que a do tradutor de línguas, tal como vista por Benjamin e comentada por Derrida.
O texto a ser traduzido pelo analista prima pela ausência, pelo negativo. É apreendido nas entrelinhas, nos lapsos, nos erros. É um discurso em permanente latência.


Sérgio Telles é psicanalista e escritor, membro do departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É autor de "Peixe de Bicicleta" (editora da Univesidade Federal de São Carlos).


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