São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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Ponto de fuga

Conto de fadas

No início do século passado, as vanguardas artísticas efervesceram em criações experimentais. O refluxo veio após a crise econômica de 1929, chamado de "retorno à ordem". Com a depressão, com a subida dos governos totalitários, houve um assentamento nos projetos dos artistas. Serenados, eles buscaram reatar com as tradições, preferindo os tons confidenciais e introspectivos aos fogos de artifício das novidades ousadas. A trajetória de três cineastas atuais sugere que um fenômeno semelhante pode estar ocorrendo.
John Woo abandona a coreografia barroca das lutas, o vôo gráfico dos pássaros e dos projéteis, em nome de uma ordenação nas batalhas de "Códigos de Guerra" ("Windtalkers") e de tensões internas aos personagens. David Cronenberg deixa de lado o seu fascínio pelas vísceras expostas, pelas aberrações orgânicas, pelos monstros nojentos, ao realizar "Spider", filme centrado na direção de ator e no clima deletério da Londres suburbana. Pedro Almodóvar se acalma, esquecendo as cores plastificadas com as quais fabricava um inenarrável pop espanhol, em que o erotismo provocador jogava com formas malucas de transexualismo e com o humor mais escrachado. Troca a ironia ferina por uma atmosfera generosa.
Em "Fale com Ela" ("Hable con Ella"), traz uma versão pós-pós-moderna de uma bela adormecida em coma na clínica "El Bosque". É um filme não sobre paixão fulgurante, espetacular, cheia de gestos e juras. Em vez disso, explora os modos misteriosos do amor, duradouros, silenciosos e pacientes.
Quietude - Três cineastas: não é muito como amostragem, mas Woo, Cronenberg, Almodóvar são tão originais e diversos que a virada comum em direção a um cinema de tons baixos e matizes delicados talvez não seja apenas casual.
A qualidade não decaiu; são, todos os três, filmes extraordinários. Prolongam as antigas obsessões desses diretores: apenas, elas são vazadas em moldes mais coesos e estritos. "Fale com Ela", de Almodóvar, retoma a troca de papéis sexuais, mas em deslocamentos leves. Uma mulher exerce a profissão de toureiro, tão marcadamente masculina; um homem evolui com desenvoltura no meio feminino, é enfermeiro, cabeleireiro, manicuro. O macho, galã da história, chora sem parar (Almodóvar disse, numa entrevista, que gostaria de ter visto John Wayne em lágrimas). Tudo isso se encontra longe dos travestis desvairados, do sadomasoquismo hilariante, de ninfomaníacas e freiras dissidentes, do grotesco à beira de um ataque de nervos. Ainda assim, "Fale com Ela" herda essas inquietações sexuais, para dispô-las, discretas, dentro dos afetos amorosos.
O momento mais delirante surge distanciado, transposto para um filme dentro do filme, uma pseudoprodução do cinema mudo. Esse filme no filme é a metáfora para um estupro necrofílico, que, por sua vez, equivale ao beijo trazido pelo príncipe encantado, capaz de acordar a bela adormecida.
Cama - No filme mudo de "Fale com Ela", a imagem da enorme vagina penetrada por um homem minúsculo retoma "Salto Mortal" (1902), um desenho do austríaco Alfred Kubin. Outro artista, Gustave Courbet, pintor francês do século 19, dispunha, em seus quadros, mulheres dormindo. A tela intitulada "O Sono" mostra uma loira e uma morena, admiráveis e monumentais, enlaçadas sobre os lençóis. São prazeres femininos, cujo conhecimento verdadeiro escapa aos homens. Um outro de seus quadros, "A Origem do Mundo", representa uma vagina. Como "Fale com Ela", as obras de Courbet supõem o fascínio dos homens diante dos enigmas femininos, físicos e imateriais. O cérebro das mulheres é um mistério, diz o filme. Nem o cineasta nem o pintor tentam compreendê-lo; quedam antes em contemplação perplexa diante dos belos corpos imóveis.
Vizinho - "O Filho da Noiva", filme argentino, é cinema de fato, comovente e bem-humorado ao mesmo tempo. Não parte, por felicidade, de grandes ambições intelectuais ou poéticas. Vai aos poucos, contando uma história bem tramada, com atores extraordinários. A direção de Juan José Campanella é justa, sensível, sem excesso, sem bisonharia.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br



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