|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+livros
Sem drama
Em trecho de livro inédito, o psicanalista Tales Ab'Saber analisa a cultura da música eletrônica, que dissolve as estruturas dramáticas da vida psíquica e social
TALES AB'SABER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Há em Berlim uma
casa que nunca fecha. Aquela noite
que não termina
jamais de fato pode
começar a qualquer momento
do dia, às 7h da manhã ou ainda
às 10h. Lá todos os tempos se
estendem, e noite e dia se
transformam em outra coisa.
Naquela imensa boate que
pretende expandir o seu plano
de existência, seu tempo infinito, sobre a vida e a cidade, construída em uma antiga fábrica,
uma antiga usina de energia
nazista, todo tipo de figura da
noite se encontra, em uma festa fantástica alucinada que desejaria não terminar jamais.
À luz da vida tecno, as ideias
tradicionais de dia e de noite se
revelam mais frágeis, bem mais
insólitas do que a vida cotidiana sob o regime da produção
nos leva a crer. Para alguns, o
mundo do dia se tornará definitivamente vazio e apenas a
noite excitada e veloz vai concentrar em si o valor do que é
vivo.
Naquela boate, como em
muitas outras -essa estrutura
de diversão é industrial e global-, tudo se encerra apenas
quando o efeito prolongado e
sistemático da droga se encerra. Como uma pausa para respirar, às vezes tendo passado
muitos dias entre uma jornada
de diversão e sua suspensão
momentânea. Para muitos,
apenas pelo tempo mínimo da
reposição das forças até a próxima jornada pela política imaginária da noite. Essa pausa mínima seria, em suma, a própria
vida.
E, ainda, mais. Para outros
tantos, o próprio efeito da droga sob a pulsação infinita da
música eletrônica, experiência
programática e enfeitiçada,
não deveria se encerrar jamais:
estes estariam destinados ao
projeto de dissolução na pulsação sem eu da música tecno, seja a dissolução do espírito, em
uma infantilização definitiva
para os embates materiais da
vida, seja a dissolução do corpo,
ambos igualmente reais.
O bar Panorama de Berlim,
apelidado pelos brasileiros que
habitam a noite tecno mundial
de Paranoia, representa o espírito de totalização da cultura
que a música eletrônica busca
ter em nosso tempo. Aberto para sempre, sonho eterno de Dioniso, são dimensões tradicionais do sujeito de uma era histórica, de tempo e de repouso, de
lazer e de trabalho, que se fecham com ele, não necessariamente em uma superação para
melhor, ideia ela mesma superada pelo transe festivo geral.
Vazio de energia
De fato, após uma noite de vida tecno é forte a experiência
radical de vazio que se torna o
espírito do dia. Toda a trama da
vida se descontinua em uma
nova ordem muito contemporânea de depressão, depressão
da própria energia libidinal que
aparece agora esvaziada, mal
sustentando algum investimento no próprio eu. A energia
foi imensamente gasta à noite.
Foi devastada, tornando o dia
vazio de objeto, porém vivo, vivo no vazio, muito bem articulado à busca pelo excedente absoluto de mais tarde, à noite.
Esse dado negativo que toma
o dia certamente aponta para o
valor esvaziado do que se tornou a vida, do qual se tenta fugir incessantemente, mas, na
nova ordem do humano, se procura não pensar.
Tal negatividade, que corta
as ligações com as coisas do dia
da produção na raiz, portaria
talvez uma esperança utópica,
sempre sinalizada pelos "clubbers", mas de natureza muito
vazia, indeterminada, totalmente esotérica, transposta à
ação da noite. Quem aspira ao
infinito não sabe o que quer,
um dia disse Schlegel [1772-1829] a respeito desse tipo de
salto direto no sentido, que
perde as mediações concretas.
Esta nova ordem da festa, onde a fantasia é o ser, funciona
sobre outros padrões que os das
antigas e tradicionais festividades humanas. A música eletrônica é a mais forte negação do
universo primordial, até ontem, de política dramática própria ao eu da canção.
Com ela o mundo pop chegou
a sua autorrealização conceitual, espécie de vida pura da
técnica, dispensando toda trama imaginária que não seja a
sua pureza abstrata, fixada na
mínima forma -um pouco ao
modo de um retrato de Warhol-, na máxima pulsação para
o aqui e o agora do corpo, como
utopia indeterminada, ou como
mundo realizado em sua música plenamente descarnada.
Com ela a paixão pela alucinose
consentida da noite busca a sua
normalização na vida humana,
e sua pacificação à luz do dia.
"Tecnocorpo"
A música eletrônica redefiniu assim um valor da experiência humana, daquilo que é
estar diante da música. Seus
novos campos do sentido são
muito diferentes da experiência histórica da canção e sua reflexividade ainda referida ao
eu. Eles são dois: o da estetização generalizada da vida, na expansão da política do imaginário e da moda e seu valor de
mercado sobre todos os sujeitos, e o do impulso à ação, à
atuação encenada, impulso à
luta pela existência, que é o mero estado em que a vida está no
mundo dado do capitalismo
avançado.
Essa política mais radical do
"tecnocorpo" em aqui e agora,
longe do espírito que alucina,
própria à nova indústria da diversão, onde impera a música
eletrônica, coloca problemas
complicados. Ela significa o fim
da trama imaginária e suas profundidades dramáticas, em que
o sujeito do inconsciente era lido em um certo teatro simbólico, a famosa triangularidade
edípica, e sua razão narrativa,
que põe o eu, o desejo e o outro,
o tempo e o espaço em alguma
perspectiva.
Neste novo mundo digital e
pós-dramático, tudo é reduzido
ao presente do fluxo e do prazer
constante, autoerotismo social
e tecnicamente produzido, talvez turbulento, mas contínuo,
em que, em sua versão utópica,
o outro é alucinado como mundo amoroso e indistinto, minha
própria continuidade.
A técnica do tempo, nos
"samplers", nas pistas iluminadas a laser e nas novas drogas
sintéticas, encena uma forte
experiência do todo sobre o sujeito, a nova tecnocultura, na
qual as estruturas dramáticas
de uma outra modernidade já
estão ausentes. Essa cena, e sua
política imaginária, se põe porque, de fato, tais estruturas estão falindo, anêmicas e desaparecendo na própria vida social.
Os sujeitos fragilizados e a
crise real -de difícil apreensão,
das estruturas de orientação
moderna da vida, da política à
educação, das nações à forma
família- que o digam; ou melhor, que o dancem. Em parte
esses espaços foram ocupados
pela festa tecno sem fim, que
busca a generalização, e a alucinose generalizada, do valor do
corpo, o império fetichista da
moda, a apresentação em ato
na noite da imagem produzida
do dia, para sobreviver ao sistema catastrófico do mercado.
TALES A.M. AB'SABER , psicanalista, é autor
de "O Sonhar Restaurado" (Ed. 34). Este texto é
um trecho do ensaio inédito "A Música do Tempo Infinito".
Texto Anterior: Saiba mais Próximo Texto: +Lançamentos Índice
|