São Paulo, domingo, 18 de março de 2007

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O poderoso CHEFÃO

Lars von Trier, criador do Dogma, lança comédia com tecnologia experimental e diz estar fascinado por filmes de horror

JACOB WENDT JENSEN

Lars von Trier, o experimentador, fixou novas regras para seu laboratório, desta vez usando um computador acoplado a uma câmera e microfones.
Clicada uma tecla, o computador escolhe aleatoriamente um quadro entre oito opções pré-programadas, e a gravação de som se desloca igualmente entre microfones diferentes.
Tudo isso acrescenta um elemento singular e acidental ao novo filme do diretor dinamarquês, "The Boss of It All" [O Chefe de Tudo], que, com essa exceção, é construído muito como uma clássica comédia americana do gênero "screwball" (amalucada, afiada, típica de Hollywood).
"O fato de não ser uma grande produção internacional realmente garantiu uma dose de calma e paz. Foi ótima a sensação de não ter uma equipe técnica à vista", diz Von Trier.
O diretor descreve "O Chefe de Tudo" como "comédia que não deixa ninguém para trás", mas o bolo cômico possui várias camadas. Para começo de conversa, Von Trier está zombando de si mesmo, já que ele próprio é, de certa maneira, "o chefe de tudo".
Lars von Trier trabalha rápido e geralmente termina um roteiro em poucas semanas.
Algumas horas antes da estréia mundial de "O Chefe de Tudo", ele anunciou que seu próximo filme será intitulado "Antichrist" [Anticristo].
Ele anda assistindo a filmes de horror de todo o mundo, embora sinta um fascínio especial pela Coréia e o Japão.
"Acabei por me dar conta de que o gênero do horror é muito mais livre do que pensava. Qualquer coisa pode acontecer num filme de horror. Devo começar a rodar no próximo verão com três atores principais, de modo que, se conseguirmos o financiamento, será mais um filme falado em inglês."
Enquanto isso, ele não exclui a possibilidade de que o terceiro filme em sua trilogia americana, depois de "Dogville" e "Manderlay", esteja a caminho.
"Eu tenho certeza de que ele será feito algum dia, mas a história precisa manifestar-se um pouco mais assertivamente do que está fazendo no momento", diz Von Trier.

PERGUNTA - Por que optou por fazer uma comédia neste momento?
LARS VON TRIER
- Quis fazer um filme com um processo de trabalho menos pesado. Então escolhi um gênero, a comédia, em lugar de misturar gêneros ou tentar criar algo novo.
De certa maneira, "O Chefe de Tudo" pode ser o único filme que já fiz que se enquadra num contexto de gênero. Pelo menos foi essa a intenção.
Eu me sinto inspirado pelas comédias "screwball", fortemente baseadas no texto; e até certo ponto a história é baseada em algo que aconteceu comigo.
Mas, quando você faz comédia, precisa criar personagens que sejam paródias.
(Os personagens parodiados na comédia de Von Trier incluem Ravn [Peter Gantzler], proprietário de uma firma de tecnologia da informação que quer vender sua empresa.
O problema é que, quando abriu a empresa, ele inventou um presidente inexistente da companhia para servir de fachada quando fosse preciso tomar medidas impopulares.
Quando o comprador potencial insiste em negociar diretamente com o "presidente", cara a cara, o proprietário contrata um ator decadente, Kristoffer [Jens Albinus], para fazer seu papel.
Seguem-se confusões e mal-entendidos diversos, em parte porque Ravn é econômico com as informações que fornece ao ator, que é obrigado a improvisar para escapar de algumas saias justíssimas.
Na verdade, o filme fala muito das qualidades necessárias para ser um ator no trabalho.)

PERGUNTA - Pode dar exemplos de tipos diferentes de atores?
VON TRIER -
Existem, grosso modo, dois tipos de atores. Existe o tipo que nunca toca uma nota em falso, e o outro tipo, aquele que lhe dá 100 mil coisas diferentes entre as quais escolher.
Os dois tipos são extremamente interessantes. Jens Albinus é alguém que oferece ao diretor uma quantidade insana de escolhas. Ele fez um pequeno papel coadjuvante em "Dançando no Escuro", em que teve que entregar uma caixa a Bjork.
Albinus e sua caixa eram impossíveis, porque ele ofereceu informação demais simplesmente entregando aquela caixa.
A cena terminou com ele apenas olhando para cima, sem dizer nada.
Não tenho nada contra um ator "pedir seu personagem". Todos os atores chegam com sua técnica própria, e é preciso estar aberto a isso. Minha maneira de trabalhar consiste em pedir aos atores o máximo possível de variações sobre uma cena.
Quanto mais experiência você tem como diretor, mais terá visto e mais aberto será a todos os tipos de atores diferentes.

PERGUNTA - O sr. emprega um princípio de aleatoriedade, o Automavision, tanto para as tomadas quanto para o som. O que isso envolve?
VON TRIER -
A coisa funciona da seguinte maneira: eu enquadro a tomada do jeito como normalmente gostaria que ela saísse, e então aperto um botão no computador.
Então o programa escolhe uma das oito variantes de quadro. A parte mais importante é programar os elementos fundamentais das variações dos quadros.
Não podemos fazer a câmera girar 180 graus, é claro, senão não haverá tomada. Passamos muito tempo fazendo experimentos com as variáveis. A idéia é tornar as tomadas imprecisas.
E por que isso? Bem, eu sou o tipo de pessoa que gosta de controlar as coisas. Se não estou controlando, prefiro não exercer influência nenhuma.
Depois de "Europa" [1991], que teve elementos rígidos, planejados até o menor detalhe, me senti tentado a experimentar algo completamente diferente e comecei a usar uma câmera nas mãos.
Na verdade, odeio enquadrar tomadas, e, para levar a coisa ainda mais longe, idealizei um sistema novo. As tomadas individuais são enquadradas por uma máquina; a idéia é que o espectador seja obrigado a ficar um pouco mais atento para localizar os atores na tomada.
O espantoso de apertar um botão no computador é que isso eliminou a necessidade de discussões intermináveis sobre onde posicionar a câmera.
Nos primeiros dias nós rimos muito sobre os acidentes que surgiram, mas isso passou em pouco tempo.
O único problema foi um elefante no zoológico que não conseguimos controlar, de modo que eu não recomendaria o sistema para programas sobre animais silvestres (risos).

PERGUNTA - Como o sr. acha que o público vai reagir a esse experimento?
VON TRIER -
Eu penso nas reações possíveis do público, é claro. Comédias são feitas com o público em mente. O estilo Automavision tem a garantia de ativar o público de várias maneiras totalmente novas.
Como o espectador não pode ter a certeza de localizar o protagonista na seção áurea, isso faz com que ele se mantenha mais alerta.
O que me interessa mais, porém, é que todos os cortes se tornam, de certa maneira, cortes descontínuos. Já trabalhei muito com isso antes, então gostei muito da idéia de usar isso.
Originalmente, um corte descontínuo corresponde a limpar a lousa (para recomeçar).
Também aplicamos o sistema Automavision ao som. Todos os cortes então passam a ser cortes descontínuos, e nós temos todas as vantagens.
Podemos excluir vários estágios de desenvolvimento psicológico, e, ao mesmo tempo, conservar todos os seus picos.
Este texto saiu na revista "Film". Tradução de Clara Allain.


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