São Paulo, domingo, 18 de março de 2007

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Duelo de titãs

Em "Tolstói ou Dostoiévski", George Steiner revive a Guerra Fria ao analisar politicamente os dois autores russos

RUBENS FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Publicado em 1959, quando George Steiner, francês radicado nos EUA, tinha 30 anos, o ensaio "Tolstói ou Dostoiévski" se apresenta como um paladino da "velha crítica" -que a edição brasileira designa de forma equívoca com a expressão "velho criticismo".
Tratava-se de se contrapor à "nova crítica" norte-americana, então em voga.
Embora aceitasse alguns pressupostos dos novos críticos, como explica Steiner no prefácio da nova edição, seu livro apostava na velha crítica e pretendia restaurar "a completa autoridade do contexto ideológico-histórico, os componentes econômico-sociais vigentes na produção literária, a identidade existencial do autor e sobretudo as dimensões metafísico-teológicas que deram a noção do canônico às nossas literaturas".
Os próprios termos em que o projeto é formulado valem por um programa das deficiências que se acumulam nas quatro partes do livro. Pois o contexto ideológico-histórico mal chega a ser esboçado. Os componentes econômico-sociais nem sequer são mencionados.
A identidade existencial do autor, no caso de Tolstói [1828-1910] e Dostoiévski [1821-81], resiste a todo esforço de síntese, por conta do dinamismo das situações que enfrentaram e também da instabilidade de ânimo de ambos.
As dimensões metafísico-teológicas, por sua vez, constituem um terreno nebuloso em si mesmo, névoa que se torna ainda mais cerrada quando delas se espera obter a principal chave crítica para essas obras literárias e quando se pretende, ainda por cima, fazer da admissão ao cânone o primeiro sacramento dessa teologia.
E por último o conceito "nossas literaturas" postula uma integração pacífica demais, no caso dos escritores russos do século 19, que escreviam, em boa parte, em profundo atrito com a tradição central européia.
Sem falar que, para os europeus, na época (até 1870, aproximadamente), literatura russa eram duas palavras cuja combinação soava muito estranha.

Guerra Fria
O que deveria ser um estudo contrastivo, em que uma obra ilumina a outra, revela-se, predominantemente, uma tese bipolar e esquemática. Mediante uma retórica impregnada de tonalidades de púlpito, Steiner converte os romances em instrumentos de uma disputa ideológica bem diferente das polêmicas em que as obras se enquadravam em sua origem, polêmicas diretamente ligadas ao destino da Rússia. Trata-se, em Steiner, da contenda ideológica da fase da Guerra Fria, cuja pertinência para nós, hoje, no Brasil, também é escassa ou nula.
Steiner não cansa de repetir que Tolstói e Dostoiévski são autores essencialmente religiosos, que "as mitologias centrais nas obras e vidas pessoais de Tolstói e Dostoiévski são religiosas (...), os dois romancistas lutaram com o anjo, cobrando dele um mito coerente de Deus e uma avaliação verificável do papel de Deus no destino do homem".
Chega a fazer um breve apanhado das fontes religiosas (comprovadas ou hipotéticas) das preocupações que, em algum momento, os dois escritores manifestaram. Porém, isso é só para constar. Ao invés de situar tais idéias no contexto da Rússia da época -onde fariam todo o sentido, pois a religião pouco se distinguia da vida civil-, Steiner as transporta em bloco para a batalha propagandística contra o socialismo, em pleno curso na época em que escreveu o seu livro.
Não que Steiner ignore os dados literários, longe disso. Os trechos em que ele se atém a ler os romances, em que chama a nossa atenção para a argúcia da composição e esmiúça o sentido dos rascunhos e das hesitações dos dois autores durante a elaboração das obras são estimulantes. Também são esclarecedoras as associações entre Tolstói e a epopéia homérica e entre Dostoiévski e o melodrama e a literatura gótica.
Nisso está o melhor do livro, graças à erudição e à amplitude das referências de Steiner. Mas, novamente, parece estar ali para constar -a sua tese central não depende de tais análises.
A rigor, seu esforço para alcançar uma síntese da obra dos dois russos se resume a um quadro em que Tolstói personifica a vontade de buscar uma sociedade perfeita, livre de injustiças e violência, e portanto livre de Deus (em suma, um utópico), enquanto Dostoiévski encarna a denúncia liberal de que isso redundará em tirania e totalitarismo: Deus é necessário porque as imperfeições são o penhor da liberdade.
Uma das coisas estranhas nessa fábula é que o próprio Steiner admite, em passagens avulsas, que Dostoiévski pouco se importava com os direitos civis e era porta-voz de um nacionalismo favorável às guerras.
O Dostoiévski democrata e capitalista e o Tolstói adepto do socialismo e da "bestialidade política" são personagens de uma fábula crítica criada por Steiner, fábula que não deixa de ter o seu tom histérico - arremedo do patos dostoievskiano- e que se prestava bem ao programa da Guerra Fria.
Lido hoje, é como se Steiner, com os passos afoitos de um colonizador, tivesse caído numa armadilha preparada pelos autores que estudava: as obras de Dostoiévski e Tolstói, cada uma a seu modo, investem contra o mundo moderno e expansão capitalista, a partir de um ângulo geográfico e histórico em que as dívidas desse processo são postas na mesa e cobradas.
O ensaio de Steiner apenas confirma e aumenta essa dívida.
RUBENS FIGUEIREDO é tradutor e escritor, autor de "Contos de Pedro" (Cia. das Letras).


TOLSTÓI OU DOSTOIÉVSKI
Autor:
George Steiner
Tradução: Isa Kopelman
Editora: Perspectiva (tel.0/xx/11/ 3885-8388)
Quanto: R$ 55 (296 págs.)



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