São Paulo, domingo, 18 de março de 2007

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O imperador de Cristo

O historiador Paul Veyne apresenta Constantino como o implantador do cristianismo na Roma Antiga, no século 4°

MAURICE SARTRE

Como e por que o Império Romano pagão se tornou cristão? O historiador Paul Veyne oferece uma resposta simples e surpreendente a essa pergunta complexa: porque essa foi a vontade de Constantino!
Um capricho, em suma, mas o capricho de um governante poderoso tem conseqüências diferentes das do capricho de um homem comum. E um capricho ditado pela piedade: depois da batalha da ponte Milvius, em 28 de outubro de 312, Constantino se convenceu de que o Deus único lhe proporcionara a vitória.
Ele se converteu ao cristianismo, profunda e sinceramente, e não pôs em dúvida a superioridade dessa verdade sobre o paganismo majoritário.
A ação de Constantino não foi movida por nenhum cálculo político, nenhuma ideologia. Afinal, 90% dos habitantes do império eram pagãos à época, e ele precisou de uma fé à prova de tudo para remar contra a maré dessa maneira, mesmo sendo um imperador. Mas Constantino, na opinião de Paul Veyne, foi um verdadeiro revolucionário.
A tese deve provocar reações, mas, como todos os livros de Paul Veyne, "Quand Notre Monde Est Devenu Chrétien - 312-394" (Quando Nosso Mundo Se Tornou Cristão, ed. Albin Michel, 322 págs., 18 euros, R$ 50) possui o mérito de retornar à fonte, de nos apresentar a evidência dos fatos e também de desmascarar impressões falsas.
Longe de pensar que o cristianismo se inscreve numa evolução lógica do pensamento religioso ou que corresponde a uma expectativa inelutável da sociedade, Veyne, pelo contrário, insiste em sua novidade absoluta.

Religião moral
Religião de amor em que a moral tem ascendência sobre o ritual, o cristianismo convida o fiel a se indagar se Deus está satisfeito com ele, enquanto os pagãos mediam as homenagens feitas a seus deuses segundo a satisfação que estes lhes davam.
Não se viam fiéis descontentes derrubando estátuas ou apedrejando templos, do mesmo modo que hoje as pessoas se manifestam diante de um ministério ou de uma embaixada estrangeira?
Enquanto os cultos ditos orientais (melhor dizendo, os cultos da salvação) não passam de cultos pagãos banais tingidos com um pouco do Oriente, o cristianismo instaura um corte radical. É inútil, portanto, evocar um suposto "estado da sociedade" propício a essa evolução.
Essa concepção religiosa nova tem a chance, após três séculos de indiferença ou desconfiança (pois a perseguição era rara), de se beneficiar da iniciativa que muda tudo: o apoio oficial do homem mais poderoso do império.
Sem a vontade de Constantino, é muito possível que a cristianização não tivesse acontecido. A escolha pessoal de Constantino provocou uma mudança do mundo: enquanto em 312 o cristianismo era tolerado, em 324 já era o paganismo que se encontrava nessa posição incerta.
Mas o príncipe não obrigou ninguém a se converter; ele rejeitava as conversões forçadas.
Foi uma mudança de posição do império mas também uma mudança da igreja, que tinha sido fundada e se desenvolvera longe do poder imperial, e cuja solidez contribuiu para o êxito do empreendimento de Constantino.
Mas a igreja representava um problema para o imperador: como este poderia tolerar um rival? O tom foi dado a partir de 313, quando ele interveio pessoalmente numa crise interna da igreja, a crise donatista.
Constantino se posicionou num primeiro momento como interlocutor dos bispos, de igual para igual, e se ofereceu para atuar como braço executivo das decisões deles.

O peso do conformismo
Essa transformação revolucionária passou a operar desde 312, mas, apesar disso, a incerteza dominou o século inteiro.
Quando o chefe germânico Arbogasto, pagão, tentou opor o usurpador Eugênio ao muito cristão Teodósio, foi possível imaginar por um instante, nos anos 392-393, que os bons tempos do paganismo tinham retornado no Ocidente.
A derrota de Eugênio na Batalha do rio Frigidus (6 de setembro de 394) pôs fim a essa última tentativa de restauração. A partir de então, o campo ficou livre para a cristianização em profundidade da sociedade.
Dois ou três séculos mais tarde, ainda não era certo que a tarefa tivesse sido concluída, e o que fora conquistado se devia mais ao peso do conformismo do que a uma adesão pensada.
Além do fio condutor indicado pelo título do livro, Veyne enfoca uma centena de questões: a essência do sentimento religioso, a natureza do anti-semitismo cristão comparado ao antijudaísmo pagão (enquanto o pagão criticava o judeu por ser o outro, o cristão o condenava por ser seu irmão apenas pela metade), as relações entre o poder e a vanguarda e, num capítulo luminoso, as ilusórias raízes cristãs da Europa.
Sempre concreto, cético com relação a idéias generalizadas que freqüentemente são mais falsas que banais, o historiador de Roma mais uma vez nos surpreende e encanta."
Este texto foi publicado no "Le Monde". Tradução de Clara Allain.


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