São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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+ sociedade

Pesquisadores de áreas como antropologia, história, sociologia e psicanálise investigam os sentidos do termo "masculinidade" e suas implicações contemporâneas

A gênese cultural dos pitboys

Mirian Goldemberg
especial para a Folha

Recentemente, caminhando ao entardecer na praia de Ipanema, fui abordada por sete meninos que pediram dinheiro. Respondi: "Eu não tenho nada". Eles, então, me ameaçaram: "Está escondido na calcinha. Vamos te cortar toda!". Andei assustada em direção a um policial, que estava a poucos metros. Ele, como se fosse a coisa mais natural do mundo, disse: "Eu não posso fazer nada, são menores... Eles só atacam mulher, homem não tem medo deles". Nas últimas semanas, jovens de classe média provocaram espancamentos em boates da zona Sul carioca. A apologia da delinqüência, que, nesse caso, não pode ser justificada por razões econômicas, aparece como uma espécie de novo estilo de vida de uma parcela significativa da juventude, revelando o fascínio pela imagem masculina violenta, que impõe autoridade pelo terror, pela exibição da força física e de músculos inflados por anabolizantes e horas de exercícios em academias. Os jovens baderneiros retratam um etos masculino que tem na violência e na exibição da supremacia física a prova de sua masculinidade. Lembrei desses dois tipos urbanos -meninos de rua e "pitboys"- e de nossa vulnerabilidade "feminina" diante de ações violentas ao ler a excelente coletânea organizada por Mônica Raisa Schpun -"Masculinidades" [ed. Boitempo, 288 págs., R$ 30,00]. Os artigos do livro trazem interessantes reflexões sobre as diversas dimensões contidas no termo "masculinidades", tendo como base pesquisas realizadas no Brasil e no exterior e ricas discussões teóricas com autores de diferentes áreas de conhecimento (antropologia, sociologia, história e psicanálise).

Lógica de guerra
Véronique Nahoum-Grappe examina as formas de violência exercidas pelos homens contra as mulheres, mostrando os estupros dentro de uma lógica de guerra, como um conjunto de estratégias dirigidas às populações vencidas na ex-Iugoslávia. Lia Zanotta Machado, a partir de entrevistas com prisioneiros que cumprem penas por estupro, agressões físicas contra suas companheiras ou infrações, analisa a construção da masculinidade associada a diferentes formas de violência contra a mulher. Luisa Leonini discute as atuais motivações masculinas para o aumento significativo do consumo de sexo pago nas grandes cidades, como Milão. Daniel Welzer-Lang faz um balanço dos estudos franceses sobre o masculino, desvendando as relações hierárquicas entre os próprios homens. Durval Muniz de Albuquerque Jr. e Rodrigo Ceballos mostram a construção e visibilidade da homossexualidade masculina no Nordeste, a partir da análise de cartas enviadas ao jornal alternativo "Lampião da Esquina". Susan Clayton traz o interessante caso de um operário inglês da indústria naval morto num acidente de trabalho, em 1829, casado durante 21 anos com uma mulher. Somente no momento da autópsia descobriu-se que seu sexo era feminino. Adriana Piscitelli explora as marcas de gênero presentes nos relatos sobre três empresários fundadores de grandes grupos de perfil familiar (Indústrias Matarazzo, Casas Pernambucanas e Sadia). Por fim, Mônica Raisa Schpun analisa a trajetória singular da médica Carlota Pereira de Queiroz, primeira deputada federal eleita no Brasil, em 1933, e suas estratégias de sobrevivência em campos políticos e profissionais masculinos.

Dominantes e dominadas
Após décadas em que os estudos de gênero se ocuparam, quase exclusivamente, em analisar as mulheres, que eram o problema e a categoria a ser observada, classificada e dissecada, nos últimos anos os pesquisadores têm se preocupado em problematizar os homens e a construção social da masculinidade.
Como bem destacou Pierre Bourdieu, em "A Dominação Masculina", a estrutura impõe suas pressões aos dois termos da relação de dominação, portanto aos próprios dominantes, que são "dominados por sua dominação", fazendo um "esforço desesperado e bastante patético, mesmo em sua triunfal inconsciência, que todo homem tem que fazer para estar à altura de sua idéia infantil de homem". Nos casos apresentados, o exercício da violência física ou simbólica pode ser visto como exemplo dessa dominação que o dominante também sofre.
Este livro é uma importante contribuição para compreender as terríveis exigências sociais a respeito de determinados modelos de masculinidade, que escravizam não apenas as mulheres, mas também os homens.


Mirian Goldemberg é doutora em antropologia social e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autora de "A Arte de Pesquisar", "Os Novos Desejos" e "Nu & Vestido" (ed. Record).


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