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Um TARZAN às avessas
PARA ESCRITOR, VIVÊNCIA NO CATIVEIRO NA ZÂMBIA AJUDOU A REDEFINIR
A PRÓPRIA INTERIORIDADE E A REDIMENSIONAR A RELAÇÃO COM O OUTRO
por Paul Theroux
Aconteceu há 40 anos, na África, e ainda hoje
penso nisso: a oportunidade, o auto-engano, o
sexo, o poder, o medo, a confrontação, a estupidez, o equívoco todo da situação. O incidente
serviu de material para um de meus primeiros romances e também para vários contos. Teve um quê de Primeiro Contato, o clássico encontro inesperado entre o
viajante e o nativo oculto, um encontro marcado por tamanha estranheza entre seus protagonistas que, enquanto um lado vê uma aparição, o outro pressente
uma oportunidade. Nunca mais consegui tirar isso da
cabeça.
Eu havia partido da América rumo à África e fazia
quase um ano que estava naquele lugar: Nyasaland.
Veio a independência e, com ela, um novo nome, Maláui. Eu era professor em uma pequena escola. Falava a
língua local, o chicheua. Tinha uma casa e até mesmo
um cozinheiro, um muçulmano yao chamado Jika.
Meu cozinheiro tinha seu próprio cozinheiro, o garoto
Ismail. Vivíamos satisfeitos no sertão, num canto das
montanhas do Sul, entre poeira vermelha, estradas
ruins e maltrapilhos. Tirante o frio úmido que fazia de
junho a agosto, nada disso me parecia estranho. Era essa a África que eu contava encontrar, e ela me agradava.
Costumava dizer: vou levar um choque cultural quando
voltar para casa.
Pouco antes do Natal, fui para a Zâmbia. Segui por estradas secundárias e, no dia 24, parei para tomar uma
cerveja num bar esquálido nas cercanias de Lusaka [a
capital]. O lugar estava quase vazio e entabulei uma
conversa com os dois únicos fregueses que havia ali
além de mim: um homem e uma mulher. "Isto é para
você", disse eu, oferecendo ao homem uma garrafa de
cerveja. "E isto é para a sua mulher. Feliz Natal."
"Feliz Natal", disse o sujeito. "Mas ela não é minha
mulher. É minha irmã. E gostou muito de você."
Quando o bar fechou, os dois me convidaram para ir à
casa deles. Isso implicou uma longa corrida de táxi pelo
sertão. "Feliz Natal. Você paga pra ele." Paguei. Levaram-me a um casebre. Mostraram-me um cômodo acanhado, onde entrei acompanhado da mulher. Pisei numa criança adormecida -ouviu-se um berro. Era um
menino. A mulher o acordou, arrancou-o de seu cobertor e enxotou-o para o aposento ao lado. Então me
mandou sentar, tirou minha roupa e fizemos amor em
cima do pedaço de cobertor ainda aquecido pelo corpo
do menino.
"Não, hoje é Natal"
Foi muito agradável. Já andava
cheio das malauianas, aquela coisa morna, entremeada
de sorrisos e gracejos; sem contar as gozações do Jika, os
olhares de soslaio do Ismail. Mas, de manhã, quando eu
disse que precisava ir embora, que tinha de ir para o
meu hotel em Lusaka, a mulher, Nina, retrucou: "Não,
hoje é Natal" e armou um pampeiro.
George, o irmão, deve ter ouvido o queixume dela,
pois entrou no quarto e disse que estava na hora de ir
para o bar. Ainda não eram nem oito da manhã, mas
mesmo assim fomos e passamos o dia inteiro bebendo,
e, sempre que pedíamos uma cerveja, eles diziam:
"Mzungu", o homem branco paga, e eu pagava. No
meio da tarde estávamos os três embriagados. Escarneceram da mulher por ela estar com um homem branco.
Ela respondeu com uma insolência de bêbada. O irmão
impediu que alguns sujeitos enfurecidos batessem nela.
Espoucaram brigas alcoolizadas no bar.
Voltamos para o casebre no vilarejo e, com um princípio de enjôo, deitei-me no cômodo fedorento. Nina
despiu-me, sentou em cima de mim e pôs-se a rir e a caçoar de mim.
Na manhã seguinte, quando estava me vestindo, ela
perguntou aonde eu ia. Tornei a dizer que precisava ir
embora.
"Não. Hoje é "Boxing Day" [feriado de origem britânica celebrado no primeiro dia útil após o Natal]." E chamou o irmão.
"Vamos", disse George, dando um tapinha nas minhas costas e sorrindo. O significado do sorriso era: trate de me obedecer. Passamos o "Boxing Day" da mesma
maneira que havíamos passado o Natal: o bar, a cerveja,
as brigas, os insultos e, por fim, a atordoante e nauseabunda sensação de embriaguez no meio da tarde. Mais
uma noite, as risadas de Nina ao chegar ao orgasmo e,
pela manhã, o lembrete de que eu estava encarcerado.
"Você fica!"
Em sua recusa a deixar-me ir embora havia, além de
lubricidade, um quê de ameaça. E o irmão a apoiava,
por vezes me acusando de não ter consideração por
eles. "Você não gosta da gente!"
Quando eu retorquia, dizendo que gostava, claro que
gostava, eles sorriam. Então comíamos ovos cozidos ou
pedaços frios de mandioca ou um mingau esbranquiçado e lá íamos nós para o bar, a fim de nos embebedar de
novo naquele lugar imundo. À medida que ia ficando
alta, Nina começava a me bolinar e prometia sexo -a
essa altura uma idéia quase aterrorizadora. Passou-se
mais um dia e me dei conta de que não fazia a menor
idéia de quem eram aquelas pessoas. A comida era nojenta. O casebre, medonho. As pessoas do vilarejo não
pareciam muito amistosas; no bar eram francamente
hostis. Aquela cerveja toda estava acabando comigo. Eu
era o único "mzungu" no lugar e, tanto quanto sabia, o
único também num raio de vários quilômetros.
Afora meu desejo sexual inicial, minha curiosidade,
não tínhamos nada para compartilhar; tudo se resumira
à intenção de nos explorarmos mutuamente
A língua que eu falava, chicheua, não era a deles,
embora a conhecessem. Sua língua -devia ser
bemba- era-me incompreensível, e eu sabia que
tramavam contra mim quando se punham a conversar nesse idioma, trocando palavras rápidas a
meia voz, de modo a não me dar a menor chance de
entender o que diziam. Eu lhes pertencia, era como
um animal valioso que houvessem caçado.
Sempre que precisavam de dinheiro para comprar cerveja, petiscos, presentes ou o que quer que
fosse, pediam para mim. Quando eu dava o dinheiro, tornavam-se excessivamente afáveis, a mulher
me beijava, lambia meu rosto, fazia-se de submissa;
o irmão e os outros beberrões elogiavam-me, louvavam a América, diziam que a Inglaterra era uma
merda, pediam que eu os deixasse usar meus óculos escuros.
Posse útil
Na primeira noite eu trajava um terno claro. Agora o terno estava todo amarrotado e
sujo; minha camisa vivia empapada de suor. Eram
as únicas roupas que eu tinha.
Eles diziam que eu era um amigão, mas não me
enganavam: eu era seu prisioneiro. Estavam sem
dinheiro. Meus vezos e minha arrogância haviam
me transviado do meu mundo e me conduzido ao
deles. E eu representava algo para eles: dinheiro,
sem dúvida; prestígio, talvez; estilo, quem sabe. Depois da primeira noite, não tivemos mais diálogos
sóbrios.
Eu era uma cor, um homem branco, um "mzungu". Eles haviam me capturado e não queriam abrir
mão de sua presa: eu era uma posse útil. Quando
diziam: "Você não sai!", como amiúde faziam, empregavam um tom tão irritantemente alto e ameaçador que eu me enchia de medo. Aquilo que havia
me atraído em Nina, seu despudor, agora me assustava pelo que tinha de feroz e selvagem. A bebida a
ensurdecia e a transformava numa rufiona tão
cruel quanto o irmão. George escrutava-me com
olhos estranhamente injetados, como se eu fosse
um inimigo.
Às vezes, durante a noite, eu era despertado pela
fedentina humana que pairava no casebre.
Acho que era meu quarto dia ali. Estava tão apavorado e os dias eram tão iguais uns aos outros que
havia perdido a noção do tempo. Fomos para o bar
de manhã e ao meio-dia eles continuavam bebendo
-quanto a mim, assim como sucedera com o sexo,
já não sentia prazer na bebida. Permanecia sentado
ao lado deles, pagando tudo o que pediam com
meu maço cada vez menor de notas de "kwacha".
Então disse: "Vou até o chimbudzi".
"Vai com ele", determinou Nina a um dos valentões que adejavam à nossa volta. Protestei.
"Ele não volta", disse ela, e percebi como era ladina. Lera meus pensamentos, mais uma indicação
de sua perversidade. Tirei o paletó e o coloquei em
cima do balcão.
"Eis o meu paletó, tomem um pouco de dinheiro.
Peçam uma cerveja para mim e mais algumas para
vocês. Quando eu voltar, vocês me devolvem o paletó." O "chimbudzi" ficava do lado de fora do bar,
nos fundos da construção coberta com folhas de
zinco. Era um cubículo sem telhado, feito de bambu e estacas de madeira. Larvas se contorciam no
buraco raso da latrina. Permaneci em pé, sentia-me
tão enojado que não tive coragem de abrir a braguilha.
Saí após alguns instantes, olhei em volta e, não
vendo ninguém, comecei a correr; a princípio com
cautela, depois desabaladamente, até alcançar a estrada e acenar para que um carro parasse. É claro
que o sujeito parou. Era africano, eu era branco, estávamos no Natal e ele precisava de dinheiro para a
gasolina. Levou-me ao meu hotel -eu não havia
dormido nem uma noite lá. Pedi ao motorista que
aguardasse por mim, paguei minha conta, entrei
novamente no carro e quando ele perguntou "para
onde?", mandei que seguisse sempre em frente.
Deixou-me a uns 30 quilômetros da cidade, junto
de um hotelzinho de beira de estrada, onde passei
uma noite insone.
Que idiotice a minha, invadir o território dos outros. O tempo que passei com eles não me ajudou a
compreendê-los. Afora meu desejo sexual inicial,
minha curiosidade, meu atrevimento, não tínhamos nada para compartilhar. Tudo se resumira à
intenção de nos explorarmos mutuamente. Eles me
lembraram de quem eu de fato era: um americano
presunçoso. A despeito de minhas posições políticas e de meu trabalho na escola no sertão, eu era
pouco mais que um turista aproveitador. E, para
mim, eles eram uns africanos desesperados agarrando-se à oportunidade de me possuir. Fora como
um Tarzan às avessas, redefinindo a si mesmo. Isso
foi tudo o que consegui vislumbrar.
Sentira medo deles e tratara de dar um jeito de
sair de lá. E o incidente continuou a repercutir dentro de mim, dizendo-me quem eu era. Passei por situações muito mais perigosas na África: brigas sérias, deportações, tiroteios -há coisa mais perturbadora do que se ver sob a mira de uma arma? Contudo essa foi a primeira vez que experimentei para
valer um cativeiro, meu primeiro contato real com
a diversidade, uma situação memorável devido a
seu caráter horrivelmente grotesco. Foi algo que
me deixou aturdido e fez com que eu me sentisse
americano.
Paul Theroux (1941) é escritor e roteirista americano, autor de
"Minha Outra Vida" (Record) e "Morte em Chicago" (L&PM). Este
texto foi publicado originalmente na revista britânica "Granta"
(www.granta.com), que pode ser encomendada no site da livraria Cultura (www.livcultura.com.br).
Copyright: Paul Theroux.
Tradução de Alexandre Hubner.
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