São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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A invenção jurídica do autor

Roger-Pol Droit
do "Le Monde"

É meu livro", diz o autor com orgulho. "É meu livro", diz também o comprador do volume. Ambos têm razão, é mesmo "seu livro", mas, evidentemente, em sentidos diferentes. Um concebeu a obra, o outro possui um exemplar dela. Isso parece muito simples à primeira vista.
Mas, assim que começamos a entrar no detalhe, tudo se complica. O que o autor possui exatamente? Em que sentido? Em razão de que direito? De que, por sua vez, o cliente do livreiro se torna proprietário? A essas perguntas, inspiradas em Kant, assim como o exemplo inicial, outras se acrescentam se incluirmos o editor, os herdeiros, as adaptações... Nesse labirinto de dificuldades, Bernard Edelman constitui um guia excepcional. Poderíamos pensar que é normal: esse advogado é especialista em direito autoral e propriedade intelectual. Mas estaríamos enganados.
Pois é como genealogista, arqueólogo e historiador que explora, em "Le Sacre de l'Auteur" [A Sagração do Autor, ed. Seuil, 380 págs., 22 euros] não a jurisprudência dos casos contemporâneos, mas a implementação jurídica e literária, ao longo dos séculos, da "função autor". Tornou-se habitual pensar que um indivíduo pode criar soberanamente uma obra do espírito, mas nada é menos histórico que tal conclusão.
O grande mérito do livro de Edelman é o de explicar o longo processo jurídico pelo qual se chegou lá. A Antigüidade não conhecia nenhum equivalente desse autor soberano. Os plagiadores existiam, claro. Mas bastava, como fez Cícero, tentar envergonhá-los ao desmascarar sua trapaça. A idéia de processá-los na Justiça não poderia se constituir, à falta de leis adequadas e à falta, sobretudo, da idéia de um texto intangível que emana de um indivíduo-autor.
A obra literária permanece uma realidade instável ao longo da Idade Média. Todo mundo pode legitimamente remodelar um texto, versificar o que é prosa ou o contrário. É preciso que nasça a "república das letras", a constituição dos livreiros, o estabelecimento de privilégios para que novas questões comecem a ser colocadas. Então se desenha lentamente o rosto do autor.
Edelman insiste em uma virada, a de 1637-38, em que evidentemente se reconhece a querela da peça "El Cid". "Não devo senão a mim mesmo todo o meu renome", proclama Corneille em "L'Excuse à Ariste", inaugurando a autocriação do autor, anunciando a ascensão do individualismo e o sagrado futuro de um eu todo-poderoso.
No entanto nenhuma conseqüência jurídica se seguiu. É preciso que terminem de triunfar o indivíduo, os direitos do homem e a Revolução Francesa para que se estabeleça a paisagem que conhecemos. Definitivamente? Nada é muito seguro. Edelman não aposta na morte do autor. Mas o que diz sobre as invenções digitais mostra que o risco existe. O próximo século verá talvez esse autor, de soberania afinal juridicamente estabelecida, morrer sem glória, "assassinado sob o peso da tecnologia e do mercado".


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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