São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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Marco na carreira de Jorge Luis Borges, "O Fazedor" acentua a tendência ao classicismo na obra do autor argentino ao equilibrar invenção e confissão

Repulsa ao excesso

Jorge Araújo - 14.ago.1984/Folha Imagem
Borges (1899-1986) durante visita a São Paulo


Juan José Saer

Muitas coisas em "O Fazedor" causaram surpresa quando de sua publicação, em 1960, e continuam a suscitar reflexão 44 anos mais tarde. A primeira é que, comparado com os anteriores, esse livro de Borges mostrava uma certa simplicidade estilística. Outra fonte de surpresa era a profusão de sonetos e, em geral, de estrofes decassílabas, às vezes enfeadas por academicismos e até por rípios. E uma terceira: se, de modo um tanto grosseiro, classificarmos na obra de Borges os elementos intelectuais, culturais, objetivos, chamando-os "elementos de invenção", e os afetivos e emocionais, chamando-os "elementos de confissão", poderemos verificar que, diferentemente do que ocorre na maioria de seus textos anteriores, em "O Fazedor" os últimos são mais numerosos que os primeiros.

Reconciliação
O prólogo a Leopoldo Lugones, uma das mais belas páginas do livro, evoca de saída a palavra "reconciliação", que serve também para designar a relação que essa nova proporção entre elementos criativos e confessionais tem com certa idéia da literatura. Essa idéia pressupõe um repúdio do excesso, quer seja na ordem da invenção, quer na da confissão, e tende a conceber as obras como produto de um equilíbrio não apenas pessoal, não apenas estético, mas próprio de uma concepção geral do universo e até do próprio universo.
Quero dizer que certa tendência ao classicismo, visível em toda a obra de Borges já desde seus inícios vanguardistas, deixa de ser uma simples tendência para se transformar em prática voluntária (que mais tarde, em seus piores momentos, se tornará voluntarista).
Isso sugere duas reflexões. A primeira é que, longe de ser um mausoléu empoeirado, o horizonte do classicismo está em constante mudança, conforme o ponto em que o observador se coloca, e pretender que existem formas clássicas, utilizáveis como instrumentos, dadas de uma vez e para sempre, é tão irreal quanto o contrário, imaginar a experimentação como uma garantia absoluta de criação e, principalmente, de modernidade.
O fato de um escritor catalogado como vanguardista escrever uma obra que se parece com as escritas antes de ele introduzir suas inovações -"Os Invictos", de Faulkner, por exemplo- não significa um retrocesso, e sim uma nova forma de busca, cujo valor é medido por seus resultados. Na realidade, um dos mais fecundos modos de experimentação e talvez o mais pertinente consiste em elaborar as idéias de classicismo, de tradição, de literatura, e organizá-las numa nova relação.
Assim como, segundo Goethe, costumamos ignorar o que temos de bom, quando um grande escritor que é ao mesmo tempo um grande inovador decide praticar o classicismo, ele modifica a idéia mesma do clássico, aplicando na obra, inconscientemente, toda sua capacidade de inovação já interiorizada. Desse modo, o classicismo de "O Fazedor" é menos perceptível quando o comparamos com a obra de algum clássico do que quando o colocamos ao lado de outras obras de Borges, assim como "Os Invictos", que remete a Mark Twain, se parece menos com "Huckleberry Finn" que com "Santuário" ou "Desça, Moisés".
A segunda reflexão que "O Fazedor" suscita é a necessidade de uma distinção precisa entre obra e carreira literária. É notória a relação existente entre vanguarda e mercado artístico: para alguns, de um ponto de vista sociológico, a atitude de vanguarda é apenas um modo de aumentar o valor do produto artístico, rareando-o, tornando-o inacessível e, graças a sua própria singularidade, colocando-o temporariamente à margem da oferta e da demanda (não se trata de um simples fato econômico, pois a demanda pode ser por notoriedade ou reconhecimento). A tensão que esse mecanismo social impõe ao artista provoca nele uma agonia que parece se manifestar sobretudo na dificuldade do trabalho de criação, realizado, como revelam muitos grandes artistas de nossa época, sem alegria, sem espontaneidade e, principalmente, sem a idéia de predestinação que alimenta o entusiasmo tão particular das investidas literárias juvenis.
O princípio de realidade, que vai arrefecendo esse entusiasmo, expõe os conflitos entre os imperativos da arte e o labirinto social. As exigências internas da própria obra dificilmente coincidem com a estratégia da carreira literária de seu autor. Essa antinomia costuma se resolver quando o autor, ainda em vida, obtém um certo reconhecimento público, porque o mercado artístico e sua própria obra chegam a uma espécie de identificação, de tal maneira que o trabalho de experimentação deixa de desempenhar o papel de superego que criava a tensão e a agonia. A negligência quase triunfal do epílogo de "O Fazedor" revela a serenidade de quem reencontrou, até numa compilação displicente, a certeza de ter uma voz predestinada.
Último grande livro de Borges, "O Fazedor" foi seguido de várias obras apagadas, quase inexistentes, das quais as mais comentadas foram os poemas de "Elogio da Sombra" e os contos de "O Informe de Brodie", em que tudo, afora o texto que dá título ao volume, é imprecisão, inconsistência narrativa, banalidade.
Por outro lado, talvez seja inútil procurar uma relação entre a evolução do pensamento político de Borges e a pouca qualidade de seus últimos livros, porque essa relação pode não existir. É preferível, antes, afirmar que, faz algumas décadas, Borges escreveu quatro ou cinco livros que estão entre os mais perfeitos do nosso tempo e que a gagueira política e literária é um dos direitos -ou um dos inevitáveis estragos- que devemos reconhecer à velhice.

Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.


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